quarta-feira, 18 de novembro de 2015



FUGA
 
Numa nuvem de esquecimento
passar a vida,
sem mágoas, sem um lamento,
água correndo, impelida
pelo vento.

Ouvir a música do instante que passa
e recolhê-la no coração,
olhos fechados à dor e à desgraça,
os ouvidos atentos à canção
do instante que passa.

Beber a luz doirada que irradia
dos vastos horizontes,
e ver escoar-se o dia
entre pinhais e montes...
Doce melancolia.

Esquecer todas as agruras
que lá vão
e este negro mar de desventuras
em que voga ao sabor de torvas ondas
meu coração.

Luís Amaro
 

terça-feira, 17 de novembro de 2015

 SE CADA DIA CAI.


Se cada dia cai, dentro de cada noite,

há um poço
onde a claridade está presa.

há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.
 
Pablo Neruda
(1904-1973)

quinta-feira, 12 de novembro de 2015




 ESTOU PERDIDO

Profeta de meus fins não duvidava
do mundo que pintou minha fantasia
nos enormes desertos invisíveis.

Reconcentrado e penetrante, só,
mudo, predestinado, esclarecido,
meu profundo isolamento e fundo centro,
meu sonho errante e solidão submersa,
dilatavam-se pelo inexistente,
até que vacilei, até que a dúvida
por dentro escureceu minha cegueira.

Um tacto escuro entre o meu ser e o mundo,
entre as duas trevas, definia
uma ignorada juventude ardente.
Encontra-me na noite. Estou perdido.

Manuel Altolaguirre
(1905-1959)
Trad. de José Bento.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

 HÁ UMA ROSEIRA DE SOMBRA QUE PERFUMA

Há uma roseira de sombra que perfuma
somente o sonho, e que jamais é
sonho ela própria, mas sombra realidade.
Não faz sonhar acordado nem sonhar
em sonhos, e seus ramos têm rosas
de condensada sombra em que um orvalho
vesperal acha abrigo e tanta vida
concede ao fundo de seu aroma.
Cobre a roseira, com umbrosos ramos
de sombra, as moradas que constrói
ou habita o sonho, e os jardins
por onde passeia a nostalgia
e o desejo, os montes e os vales
- e é só roseira cujas folhas contasses -
abertos ou fechados ao teu sonho.
E o aroma entre sombra de suas rosas
aroma sempre a sombra dessas pétalas.

Ángel Crespo
(1925-1995)
Trad. de José Bento
 MALDIÇÃO
(Poema dedicado a Salazar)


Por ti, pelo teu ódio à Liberdade
à Razão e à Verdade,
a tudo o que é viril, Humano e moço,
a fome e o luto apagaram os lares
e os homens agonizam aos milhares
no exílio, no hospital, no calabouço.

Por ti raivoso abutre
cujo apetite sôfrego se nutre
de lágrimas, de gritos, de aflições
gemem nas aspas da tortura
ou baixam em segredo à sepultura
os mártires que atiras às prisões.

A este claro Povo, herói dos povos,
que deu ao Mundo mundos novos,
mais estrelas ao Céu, mais luz ao dia;
a este livre e luminoso Apolo
atas as mãos, os pés e o colo,
e encerras numa lôbrega enxovia.

Falas do céu, como um doutor no templo
mas tu encarnação e vivo exemplo
da hipocrisia vil dos fariseus,
pelos sagrados laços que desunes,
pelos teus crimes, até hoje impunes
roubas ao mesmo crente a fé em Deus.

Passas... e mirra a erva nos caminhos,
as aves, com terror, fogem aos ninhos,
e ao ver-te o vulto gélido e felino,
mulheres e mães, lembrando os lastimosos
casos de irmãos, de filhos ou de esposos,
bradam crispadas as mãos: Assassino! Assassino!

Passas...  e até os velhos, cujos anos
têm costumado a monstros e tiranos
dizem, com a boca cheia de ira e asco:
- Sobre esta Pátria mísera que oprimes,
jamais alguém foi réu de tantos crimes.
Vai-te! Basta de vítimas! Carrasco!

Passas...  e ergue-se, vai de vale a cerro
dos hospitais, do fundo das masmorras
às inospitas plagas do desterro,
um coro de ais, de imprecações, de morras.

São multidões que rugem num só brado:
- Maldita a hora em que tu foste nado!
- Que se malogre tudo quanto almejas;
- Conturbem-se os teus dias de aflição;
- Neguem-te as fontes água, a terra pão
e as estrelas a luz - Maldito sejas!

Jaime Cortesão
(1884-1960)

 SONHO

Era um menino a sonhar
com um cavalo de cartão.
O menino abriu os olhos
e não viu o cavalinho.
Com um cavalinho branco
ele voltou a sonhar;
pelas crinas o prendia...
Assim não te escaparás!
Mal o conseguiu prender,
logo o menino acordou.
Tinha a sua mão fechada.
O cavalinho voou!
O menino ficou sério,
pensando não ser verdade
um cavalinho sonhado.
Já não voltou a sonhar.
E o menino fez-se moço
e o moço teve um amor,
e dizia à sua amada:
Tu és de verdade ou não?
Quando o moço se fez velho
pensava: Tudo é sonhar,
o cavalinho sonhado
e o cavalo de verdade.
E quando chegou a morte,
o velho ao seu coração
perguntava: Tu és sonho?
Quem saberá se acordou!

António Machado
(1875-1939)
Trad. de José Bento.

 MORTE AO MEIO-DIA.

No meus país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o sol consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meus país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer.

Ruy Belo
(1933-1978)
 AS PALAVRAS

Quebram as palavras o cristal.
Quebram as palavras,
com as suas asas brandas
de delicada ave,
a dureza rude das montanhas.
Quebram as palavras até
os varões de ferro das prisões.
De palavras contra palavras,
às vezes saltam mais violentas chispas,
de irredutível inimizade carregadas,
que do próprio entrechocar
feroz das armas sem perdão,
como, pelo contrário, podem
subitamente florir
incontíveis simpatias,
fulminantes paixões,
avassaladores desejos de mútua posse.

Palavras incendeiam
um entusiasmo, ou o mundo.
Palavras elucidam,
medem, ou tranquilizam,
ou, antes, obscurecem,
confundem, ou perturbam.
Palavras acarinham, consolam, vivificam,
ou magoam, ou ferem, ou são mesmo mortais.
Palavras fazem rir,
ou desencadeiam rios
de comovido pranto.
Palavras são a face mais expressiva das coisas.
Palavras são as coisas na sua abstracção.

Nunca palavras foram, como as que confiei
à mulher que é minha, à mulher de quem sou,
nem palavras tão claras, nem palavras tão negras,
das nossas alegrias,
das nossas apreensões,
nem palavras tão ágeis
de frágil devaneio,
nem palavras tão densas, na sua precisão,
dos sérios pensamentos, ou das decisões graves,
nem palavras tão fundas,
como fundas raízes,
nem palavras apenas balbuciadas de leve,
nem, inclusivamente, palavras só pensadas,
por inutilidade de as dizermos sequer,
expressas e entendidas
num nosso mero olhar.

Às palavras as deixo
discorrer, e são fontes,
ou o vento soprando.
Às palavras as moldo entre os dedos nervosos.
Às palavras as talho na bruteza da pedra,
que desbasto, afeiçoo, amacio e insuflo,
a pouco e pouco dela arrancando o que esconde.
Às palavras as mordo.
Às palavras as rasgo.
Às palavras abraço e as vergo ao meu gosto,
ao meu puro capricho, à minha decisão.
Às palavras as lanço pelo ar como dardos.
Às palavras as espalho, como à roda sementes.
Às palavras as colho, como frutos maduros.
Às palavras as prezo.
Às palavras as peso.
As palavras me doem.
De palavras me nutro.

Palavras que na sua variedade
outras defrontam, negam, desafiam,
ou nelas se completam, ou delas se iluminam,
assim a realidade comentando,
assim a realidade recriando,
melhor no-la revelam,
mais inteira e subtil.

Palavras se debruçam
de outras, misteriosas,
e são assombro, ou medo.
Palavras se interrogam e respondem,
interrogações novas levantando,
com o que o jogo intérmino prossegue,
e em seu orgulho,
humílimo afinal,
são a sabedoria.
Palavras ofegantes, mas serenas,
se esancaram,
ensanguentadas do incessante parto,
do mais alto esplendor do sol ardendo,
da mais vasta planície rodeadas,
e são a liberdadde.

Às palavras me imponho,
como delas sou escravo.
Às palavras me humilho,
como delas me ufano.
Em palavras me enredo.
Por palavras me evado.

Às palavras as escolho,
meticulosamente,
e amoroso as alinho para as pôr a cantar.
Cantai, minhas palavras.
Canta, minha canção.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)



 AMOR

Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!

Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
poderosa e plácida.

Amor, tão chão de Amor,
que sensível és...
Sensível e violento, apaixonado,
Tão carregado de desejos!
Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora.
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência.

Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida...
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti,
e tu de nós?

Irene Lisboa
(1892-1958)
HÁ JUNTO A MIM DEZ NÚMEROS EM CÍRCULO.


   Há junto a mim dez números em círculo.
O princípio e o fim. A quantidade
do que sem nome sou: o meu silêncio.
Tremo ao olhá-los. Falam? Falar-me-ão?
Neles agouro que hei-de vir já morto
chamar em minha vida. Escuto! Não!
Ninguém chama! - Ninguém.

                                                    ...Olho para mim...
Aqui estava em meu leito e já não estou!...
A quantidade de minha existência busco...
Volto a escutar: - chamam?: sim. Sou seu: ninguém.
E a minha voz entra em mim comigo longe!




Emílio Prados
(1899-1962)
Trad. de José Bento.

 QUE CORPOS LEVES, SUBTIS.

Que corpos leves, subtis,
há, sem cor,
tão vagos como as sombras,
que não podem beijar-se
a não ser pondo os lábios
no ar, contra algo
que passa e se assemelha!

Que sombras tão morenas
existem, e tão duras
que seu frio, escuro mármore
não se nos rende nunca
de paixão, entre os braços!

E que faina, ir e vir
com o amor, velozmente,
dos corpos para as sombras,
do impossível aos lábios,
sem parar, sem saber nunca
se é alma de carne ou sombra
de corpo o que beijamos,
se é alguma coisa! A tremer
de acarinhar o nada!


Pedro Salinas
(1891-1951)
Trad. de José Bento

sábado, 7 de novembro de 2015

AS SUAS MÃOS AINDA ACODEM AOS MEUS SONHOS


As suas mãos ainda acodem aos meus sonhos antecipado-se a um
grito negro, a ferros ocultos no meu coração.

A minha velhice torce os seus ossos e queima os seus cabelos, a
minha velhice envolta numa pele húmida de amor

O seu olhar vem de países a que não irei nunca.

Sobre a minha pele fervem as suas lágrimas.

Antonio Gamoneda
Trad. de Jorge Melícias.


 NOCTURNO SONHADO

A terra leva-nos por terra;
Mas tu, mar,
levas-nos pelo céu.

Com que certeza de luz de prata e ouro
as estrelas nos marcam
a rota! - Dir-se-ia
que é a terra o caminho
do corpo,
que o mar é o caminho
da alma -.

Sim, parece
que é a alma a única viageira
do mar, que o corpo, só,
ficou além das praias,
sem ela, a expulsá-la,
pesado, frio, como morto.

Que semelhante
a viagem do mar à viagem da morte, 
à da eterna vida!


Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
Trad. de José Bento.


 VAI DEVAGAR, NÃO CORRAS

Vai devagar, não corras,
pois aonde tens que ir é só a ti!

Vai devagar, não corras,
que o menino do teu eu, recém-nascido
eterno,
não poderá seguir-te!

Juan Ramón Jiménez
(1881-19589
Trad. de José Bento.







CANÇÃO FINAL

As rosas de papel não são verdadeiras
e queimam
como a preocupação de uma sobrancelha, pensativa
ou a sensação de tacto numa camada de gelo.

As rosas de papel são, na verdade,
demasiadas quentes no meu peito.

 Jaime Gil de Biedma
(1929-1990)
Trad. de José Bento.

AMOR MAIS PODEROSO QUE A VIDA

A mesma qualidade que o sol no teu país,
a sair entre as nuvens:
alegre e delicado matiz numas folhas,
fulgor num vidro, modulação
do apagado brilho da chuva.

A mesma qualidade que a tua cidade,
tua cidade de vidro inumerável
idêntica e diferente, mudada pelo tempo:
ruas que desconheço e praça antiga
de pássaros povoada,
a praça em que uma noite nos beijámos.

A mesma qualidade que a tua expressão,
ao cabo dos anos,
esta noite ao fitar-me:
a mesma qualidade que a tua expressão
e a expressão ferida de teus lábios.

Amor que tem qualidade de vida,
amor sem exigência de futuro,
presente do passado,
amor mais poderoso do que a vida:
perdido e encontrado.
Encontrado, perdido...

Jaime Gil de Biedma
(1929-1990)
Trad. de José Bento

 DORME, RAPAZ.


A raiva da morte, os corpos torturados,
A revolução,um leque na mão,
Impotência do poderoso, fome do sedento,
Dúvida com mãos de dúvida,  pés de dúvida;


A tristeza, agitando seus colares
Para alegrar um pouco tantos velhos;
Tudo unido entre campas como estrelas,
Entre luxúrias como luas;

A morte, a paixão nos cabelos,
Dormitam tão minúsculas como uma árvore,
Dormitam tão pequenas ou tão grandes
Como uma árvore crescida até chegar ao solo.

Hoje contudo  também estás cansado."


Luis Cernuda
(1902-1963)
Trad. de José Bento.

domingo, 25 de outubro de 2015

 A RAFAEL MELERO


É proibido chorar.
É proibido ir com os rios para o mar
onde tudo é igual.
É proibido sorrir
de modo subtil, sem nada dizer,
dizendo que tanto faz o sim ou não.
É proibido violentar
e, ainda que armados de razão, atacar.
É proibido forçar.
É proibido falar do fim
quando tudo é no entanto um: ai! não aí,
e um flutuante ver chegar.
É proibido o gesto
de consciência pessoal, piscar de olhos da liberdade,
porque existem os outros.
É proibido morrer
por cultura, cepticismo, ou porque assim
se descansa de existir.
É proibida a moral
das boas intenções, que, associal,
por nada dá o mais próximo.
Há que crer e viver.
Resolutos, ainda que sem ódio, decidir
o dizer sim claramente.
Vem para mais perto, mais perto.
Não me perguntes o que é claro. Também o vês chegar
na unidade dos homens - tu por mim.


Gabriel Celaya
(1911-1995)
Trad. de Egito Gonçalves


 OUTRO REGRESSO


Ainda as palavras graves e já gastas,
os vocábulos do tempo, adjectivos doentes,
chegam a ti rebeldes, não te ajudam.
Tanto melhor; sem elas, assim, entras mais leve
na cidade, teatro, tantos anos,
de teus sonhos, andanças, convivências.
Em suas ruas já te envolvem e confortam
as luzes amarelas, fulgor do teu vazio;
e, qual onda que volta e se quebra fugaz,
a antiga liberdade.

Recolhe a alma, atenta a esta pobreza.

Ricardo Defarges
(1933-2013)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento



 OS PASSOS

Mais noite que nas ruas cabe no homem
quando passa. O que buscamos?
Creio que além existe uma muralha.
Cai a desolação por terra. É solo.
Que charco. Que silêncio.
O limite, que claro. Noite crua,
faz-nos como teu gelo.

O diamante é duro. Está no fim.
O enxofre é ardente. Ultrapassa-se,
transborda, chega ao mais além. O seu triunfo
é um delírio. Oh morte.

Mas nós somos turvos.
Não coalhamos.
Não vemos bem a sombra.
E, contudo, que ágeis,
que fugitivos, ao dobrar a esquina,
subimos pela noite,
fugimos, perdemo-nos
nos anos.

César Simón
(1932-1997)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento

 ALOCUÇÃO PAGÃ

Porventura julgais vós que, por crer
na imortalidade,
terá que ser-vos dada?
É obra da fé, do egoísmo
ou da desolação.
E se existe, não importa não ter nela acreditado:
respostas ignorantes são todas as humanas
se a morte interrogamos.

Continuai vossos ritos ostentosos, oferendas aos deuses
ou grandes monumentos funerários,
as cálidas preces, vossa esperança cega.
Ou aceitai o vazio que virá,
onde nem sequer soprará um vento estéril.
O que terá de vir será de todos,
pois não há merecimento no nascer
e nada justifica nossa morte.

Francisco Brines
(N:1932)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.
 ORDEM DO SONHO


Quando entrei a despedir-me dos âmbitos
a que já rendi meu adeus, não meu esquecimento,
a amada sombra estava a recortar-se,
qual negativo de uma antiga foto,
sobre leitosa luz de um dia que declina:
escura luz ou sombra iluminada,
símbolo, talvez, de uma terrível
desdita.
              Minha mão surpreendida,
que cria estar sozinha,
pôs luz no aposento, não na sombra,
nem no enigma que o tempo me abeirava
para apagar, com cada beijo sábio,
uma dor.
              Já passados, não posso recordá-los.
De mim partiram suas ocasiões, seus nomes.
Só falam em mim suas vozes confundidas.
E nem isso, por vezes: um vento que se afasta
entre o bater do mar, neve a cair.
             Através dos sonhos
o esquecimento abre passagem, os rancores
decaem, lentamente, como outono ante inverno.
A noite e suas preciosas criaturas
limpas de seu passado miserável;
salvas de elas mesmas, de mim mesmo,
de pé sobre outra terra: um paraíso.


Julia Uceda
(N: 1925)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

 QUANDO FICAS SOZINHO

Quando ficas sozinho, és espelho
do que foste:
                     uma manhã
contemplada da janela encostada
da varanda; alguns passos
harmoniosos que não seguiste
para não derramar teu gozo;
umas quantas palavras
que te modificaram mais que o tempo;
um olhar que se afogou
como luz em tuas veias;
uma viagem que não querias
terminar nunca; tua alma ausente
do que te esperava
ao ficares tão sozinho.

Ángel Crespo
(1926-1995)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Tradução: José Bento

sexta-feira, 23 de outubro de 2015


 ALHEIO

Longo se faz o dia a quem não ama
e ele sabe-o. E ele ouve esse toque
breve e duro do corpo, sua alquebrada
canção, a soar sempre à lonjura.
Fecha a sua porta e fica bem fechada;
sai e, por um momento, os seus joelhos
deslizam para o solo. Mas a alvorada
com generosidade perigosa
refresca-o e levanta-o. Muito clara
está sua rua, ele vagueia, pés incertos,
e coxeia em seguida porque anda
só com sua fadiga. E diz ar:
palavras mortas com sua boca viva.
Prisioneiro por não querer, abraça
a sua própria solidão. E está seguro,
mais seguro que ninguém porque nada
possuirá; e ele bem sabe que nunca
viverá aqui, na terra. A quem não ama,
como podemos conhecer ou como
perdoar? Dia longo e ainda mais longa
a noite. Mentirá ao tirar a chave.
Entrará. E nunca habitará a sua casa.

Claudio Rodríguez
 (1934-1999)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Tradução: José Bento
 COMO UM GRANDE BORRÃO DE FOGO SUJO


Como um grande borrão de fogo sujo
O sol-posto demora-se nas nuvens que ficam.
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
Deve ser dum comboio longínquo.

Neste momento vem-me uma vaga saudade
E um vago desejo plácido
Que aparece e desaparece.

Também às vezes, à flor dos ribeiros
Formam-se bolhas na água
Que nascem e se desmancham.
E não têm sentido nenhum
Salvo serem bolhas de água
Que nascem e se desmancham.

Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
(1888-1935)
 NO ALTO DO CARRO DE FENO


Tu tens, graças as Deus, dois bons pulmões.
Se fumas não te miam. E é catita
Também o coração. Quando te pões
Gingando ao querer valsar, não se agita.

Até tens bom nariz para o ar imundo,
Nas favas provas químicos valentes,
Pão sem farelo põe-te furibundo,
Por dia lavas seis vezes os dentes.

Mas uma voz te assusta noite fora,
Que diz: «Falhaste em todo o teu caminho.
Mais vale o pó do enxofre meia hora
Que dez anos de ar puro, mas tolinho.»



Gerrit Komrij
(1944-2012)
Trad. de Fernando Venâncio.
DESPRENDE-TE, CORAÇÃO


Desprende-te, coração, da árvore do tempo,
soltai-vos, folhas, dos ramos esfriados,
outrora abraçados pelo sol,
soltai-vos como lágrimas de olhos largos de longes.

Esvoaça ainda a madeixa dias inteiros ao vento
na fronte tisnada do deus do campo,
sob a camisa aperta o punho
já a ferida aberta.

Por isso resiste, quando o dorso macio das nuvens
voltar a curvar-se para ti,
não te iludas se o Himero te encher
de novo os favos.

De pouco vale ao lavrador uma erva na seca,
de pouco um verão, face à nossa grande estirpe.

E que testemunha afinal o teu coração?
Entre ontem e amanhã balança,
silencioso e estranho,
e o seu bater
é já a sua queda para fora do tempo.

Ingeborg Bachmann
(1926-1973)
 in "O Tempo Aprazado"
Trad. de João Barrento.

O MAR

Antes que o sonho (ou o terror) tecesse
Mitologias e cosmogonias,
Antes que o tempo se cunhasse em dias,
O mar, o sempre mar, já estava e era.
Quem é o mar? Quem é aquele violento
E antigo ser que rói os pilares
Da terra e é um e muitos mares
E abismo e esplendor e acaso e vento?
Quem para ele olhar vê-o pela primeira vez,
Sempre. Com o assombro que as coisas
Elementares deixam, as belas
Tardes, a lua,o fogo de uma fogueira.
Quem é o mar, quem sou eu? Sabê-lo-ei no dia
Que se segue à agonia.


Jorge Luis Borges
 (1899-1986)
Trad. de José Agostinho Baptista.

domingo, 18 de outubro de 2015

PEREGRINO


Regressar? Regresse o que sentir
Após longos anos e uma longa viagem,
Cansaço do caminho e a cobiça
De sua terra, sua casa, seus amigos,
Do amor que, ao regressar, o espere, fiel.

Mas tu? Voltar? Não penses regressar,
Mas continuar livre, para a frente,
Disponível para sempre, moço ou velho,
Sem filho que te busque, como a Ulisses,
Sem Ítaca à espera e sem Penélope.

Continua, continua e não regresses,
Fiel até ao fim do caminho e de tua vida,
Não sintas a falta de um destino mais fácil,
Teus pés sobre a terra nunca antes pisada,
Teus olhos enfrentando o jamais visto.

Luis Cernuda
(1902 – 1963)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento

sábado, 17 de outubro de 2015




 JUÍZO FINAL


Eu pecador, artista do pecado,
comido pela ânsia até aos ossos,
eu, tropel de esperanças e fracassos,
escultura de dor, firma do vento.

Eu, pecador, enfim, desesperado
de sombras e de sonhos: eu confesso
que sou um homem em modo de falar-vos
da vida. Pequei. Não me arrependo.

Nasci para contar com estes lábios
que a morte varrerá um dia destes
as descidas mais esplêndidas a pique
daquele belo avião de carne e osso.

De asas para cima, arremessou os braços
fazendo alarde de tão alto invento;
penas de níquel; lentas, escrevei,
Ei-las aqui, fincadas neste solo.

Este é meu sítio. Meu terreno. Campo
de aterrar de minha ânsia. Céu
do avesso. Meu sítio e não o troco
por nenhum. Caí. Não me arrependo.

Ímpetos novos nascerão, mais altos.
Chegarei por meus pés - para que os quero? -
a pátria do homem: ao céu limpo
dessas sombras e dessas esperanças.

 Blas de Otero
(1916-1979)
Trad. de José Bento
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"

NA PROA

Este é o tempo de alargar o passo
a sair par o mar, rasgando o vento,
Homens, erguei os ombros
sonoramente, sob o sol que nasce.

Este é o mar, as armas são aquelas
que, estrepitosamente, se desfazem.
Homens, içai. erguei
de encontro à paz os inflamados mastros.

Espanha, coluna da minha alma. Unha
e carne da minha alma. Arranca-me
o teu cálice das mãos.
E amarra-as à tua cinta, minha mãe.

Blas de Otero
(1916-1979)
Trad. de José Bento
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"





 TERRA

Humanamente falando, é um suplício
ser homem e suportá-lo até às fezes,
saber que somos luz e sofrer frio,
humanamente escravizados pela morte.

Atrás do homem vem soltando gritos
o abismo, adiante abre seus hélices
a vertigem, e, afogando-se em si mesmo,
no meio deles, o medo cresce, cresce.

Humanamente falando, é o que digo
não há forma de morrer que não nos gele.
Feroz é a sombra e viva é sempre a faca.
Que fazer, homem de Deus, senão morrer?

Humanamente, em terra, é o que escolho.
Morrer horrivelmente, para sempre.
Devolver-me, morrer, não ter nascido
humanamente nunca em nenhum ventre.

 Blas de Otero
(1916-1979)
Trad. de José Bento

 SÓ A NATUREZA É DIVINA, E ELA NÃO É DIVINA...


Só a Natureza é divina, e ela não é divina...

Se às vezes falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às coisas,
E impõe nome às coisas.

Mas as coisas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande e a terra larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...

Bendito seja eu por tudo quanto não sei.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol.


Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
(1888-1935)

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

ÁGUA


A água pura dos poços
que a alma teve
leva já lodo à superfície:
é o escuro tempo da velhice
e nós tão moços.

A água tormentosa
que a alma agora tem
cai dos meus olhos tristes:
ó tempo, ó tempo alegre,
onde é que existes?

Carlos de Oliveira
(1921-1981)
In "Trabalho Poético"


sábado, 10 de outubro de 2015

 AGORA QUE ESTOU QUASE NA MORTE E VEJO TUDO JÁ CLARO.


Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro,
Grande Libertador, volto submisso a ti.

Sem dúvida teve um fim a minha personalidade.
Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisa
Mas hoje, olhando pra trás, só uma ânsia me fica —
Não ter tido a tua calma superior a ti-próprio,
A tua libertação constelada de Noite Infinita.

Não tive talvez missão alguma na terra,

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa
(1888-1935)

 A MÚSICA


Arrasta-me por vezes como um mar, a música!
Rumo à minha estrela,
Sob o éter mais vasto ou um tecto de bruma,
Eu levanto a vela;

Com o peito prà frente e os pulmões inchados
Como rija tela,
Escalo a crista das ondas logo amontoadas
Que a noite me vela;

Sinto vibrar em mim as inúmeras paixões
De uma nau sofrendo;
O vento, a tempestade e as suas convulsões

Sobre o abismo imenso
Embalam-me. Outras vezes é a calma, esse espelho
Do meu desespero!

Charles Baudelaire
(1821-1867)
In "As Flores do Mal"
Trad. de Fernando Pinto do Amaral.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

IMPROPÉRIA

Que venha a luz da terra iluminar a treva.
Que venha a luz do céu iluminar a treva.
Que venham ambas, numa só, iluminar a treva.

Trazer conhecimento;
Visão, sobretudo visão pra quem a pede.
Pra quem a não pede... mas que venha cedo.

A hora é de pasmar, calamitosa.
A hora funde a espada nas entranhas.
A hora é de comer raízes frias
Ou de tecer mais espessa a teia que nos cobre.

fbrque nem tudo se perdeu, nem tudo
É como quer quem se vendeu aos poucos
A outrem ou a si — pior que tudo.
Porque nem sempre é preciso descer escadas
Perseguido pelo fantasma que em nós vive.

Porque ainda há vozes traiçoeiras
Capazes de indicar caminho ignoto.
Eu canto, mas imploro, eu invoco
A multidão dos anjos debruçada
Sobre o ser vivo, sobre um corpo morto
Geladamente; iluminado apenas
Por assassinos focos...

Eu canto: sonho e vivo, mas não tremo,
Invoco de novo os anjos — testemunhos
Calados, pacientemente aflitos
Do mal que cresce;
Nos afunda, afoga
Em cada um de nós.

Porque tudo se perdeu ou perde.
Nem tudo é como queríamos que fosse
Sonhado ou procurado...
Porque nem sempre a fome é saciada,
Menos a sede, ainda a mais violenta,
Eu canto, eu imploro, eu invoco:

Que venha a luz da terra iluminar a treva.
Que venha a luz do céu iluminar a treva.

Mas se a hora é de comer raízes frias
(Meus queridos anjos tão abandonados...)
Que venha Cristo em fogo alimentar-nos!




Ruy Cinatti
(1915-1986)

FERIDA

Quando um signo adverso em mim se instala e me enche
de vazio, corrente vida acima prossigo, o coração aberto
— e sua fábrica antiga — a uma ferida de névoa
em minha porção humana encomendada,
para tornar em estilhas o córtice de um vento
que em seu punho me abafa. Ninguém demora nada
já passado. São só as trevas que voltam
e se afastam a fugir, deixando chaga idêntica
após cada regresso. E eu gostaria, às vezes,
de ficar para sempre entre os caniços.

María Victoria Atencia
(N: 1931)
Trad. de José Bento
A CAMINHADA

Éramos gente afeita ao dom da mansidão
e à vaga lembrança de um caminho para um sítio.
E ninguém deu a ordem. — Quem saberia seu instante? -
Mas todos, ao mesmo tempo e em silêncio, deixámos
o abrigo habitual, o lume aceso que enfim se apagaria,
as ferramentas dóceis pelo contacto com as mãos,
o cereal crescido, as palavras a meio, a água a derramar-se.
Sinal nenhum chegou. Pusemos-nos de pé.
Não voltámos o rosto. Começámos a andar.

María Victoria Atencia
N:1931
Trad. de José Bento

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

ERA MINHA DOR TÃO ALTA


Era minha dor tão alta
que a porta da minha casa
donde saí soluçando
chegava à minha cintura.

Que pequenos pareciam
os homens que iam comigo!
Cresci como uma  labareda
de pano branco e cabelos.

Se prostrassem minha fronte
os touros bravos saíam,
luto em desordem, dementes,
contra os corpos humanos.

Era minha dor tão alta
que avistava o outro mundo
olhando sobre o poente.

Manuel Altolaguirre
(1905-1959)
Trad. de José Bento

SEPARAÇÃO


Levo em mim a solidão,
torre de cegas janelas.

Quando meus braços estendo
abro suas portas de entrada
e dou caminho macio
a quem quiser visitá-la.

Pintou a lembrança os quadros
que enfeitam as suas salas.
Minhas venturas de outrora
com a dor de hoje ali contrastam.

Que juntos os dois estávamos!
Quem o corpo?Quem a alma?
Nossa ultima despedida,
que morte foi tão amarga!

Dentro de mim levo agora
a solidão alta e delgada.


Manuel Altolaguirre
(1905-1959)
Trad. de José Bento

 FAZ FALTA SER CEGO

Faz falta ser cego,
ter como metidas nos olhos raspaduras de vidros,
cal viva,
areia a ferver,
para não ver a luz que salta em nossos actos,
que ilumina por dentro a nossa língua,
a nossa palavra quotidiana.

Faz falta querer morrer sem lápide de glória e alegria,
sem participação nos hinos futuros,
sem lembrança nos homens que julguem o passado sombrio da Terra.

Faz falta querer já na vida ser passado,
obstáculo sangrento,
coisa morta,
esquecimento seco.

Rafael Alberti
(1902-1999)
Trad. de José Bento




 AS INQUIETAÇÕES





Esquece as inquietações
Todas as gares gretadas oblíquas sobre a estrada
Os fios telegráficos de que pendem
Os postes fazendo trejeitos que gesticulam e as estrangulam
O mundo estende-se alonga-se e contraí-se como um harmónio que uma mão sádica atormenta
Nos rasgões do céu as locomotivas em fúria
Escondem-se
E nos buracos
As rodas vertiginosas as bocas as vozes
E os cães malditos que uivam no nosso encalço
Os demónios andam à solta
Ferragens
É tudo um acorde falso
O brum-ru-rum das rodas
Choques
Saltos
Somos uma tempestade sob o crânio de um surdo...

 Blaise Cendrars
(1187-1961)
Trad. de Liberto Cruz)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O VENTO

 Partirei, disse ela, sem norte
A  noite sob a lua é muito fria
Melhor seria, meu amor, de dia
Pois agora o céu é frio como a morte.
Então teve ela um ligeiro transporte
E chama em trovas de errante magia
Todos os filhos do vento forte.
Amado, abraça-me! até ele passar
Eu não partirei.Espera!
Assim esperei aqui por ela pois soube aceitar.
Mas se eu não segurar esse vento
No castelo do meu ser, lá dentro,
Sem ar, por sua ida, morrerei

Ezra Pound
(1885-1972)
ACONTECEU-ME DO ALTO DO INFINITO

Aconteceu-me do alto do infinito
Esta vida. Através de nevoeiros,
Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,
Vim ganhando, e través estranhos ritos

De sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incógnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscrito...

Caiu chuva em passados que fui eu.
Houve planícies de céu baixo e neve
Nalguma cousa de alma do que é meu.

Narrei-me à sombra e não me achei sentido.
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido...

Fernando Pessoa
(1888-1935)
 BRISA MARINHA




Triste carne, ai de mim! Já li os livros todos.
Fugir! Longe fugir! As aves sinto a modos
De ser ébrias de espuma entre o mistério e os céus!
Nada, nem os jardins espelhados nos meus
Olhos, o coração retém quase afogado,
Ó noites! nem da lâmpada a ausente claridade
No branco do papel que o vazio rejeita
E nem a jovem mãe que ao peito o filho aleita.
Hei-de partir! Veleiro a mastrear, tu, larga
As amarras, demanda outra exótica plaga!
Um Tédio, desolado por esperanças cruéis,
Crê ainda nos lenços molhados dos adeus!
E talvez que esses mastros atraindo os presságios
Sejam dos que o tufão verga sobre os naufrágios
Perdidos, já sem mastros, em estéreis ilhéus...
Mas os marujos cantam, ouve, coração meu!


Stéphne Mallarmé
(1842-1898)

domingo, 4 de outubro de 2015

APOSTILA


Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Milton...
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!
Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos — nem mais nem menos —
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos —
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.
Verbalismo...
Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça...
Não ter um acto indefinido nem factício...
Não ter um movimento desconforme com propósitos...
Boas maneiras da alma...
Elegância de persistir...
Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!
(Passageira que viajaras tantas vezes no mesmo compartimento comigo
No comboio suburbano,
Chegaste a interessar-te por mim?
Aproveitei o tempo olhando para ti?
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto a vida?)
Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa
(1888-1935)

segunda-feira, 28 de setembro de 2015


OUTONO

O outono vem vindo, chegam melancolias,
cavam fundo no corpo,
instalam-se nas fendas; às vezes
por aí ficam com a chuva
apodrecendo;
ou então deixam marcas, as putas,
difíceis de apagar, de tão negras,
duras.
 
Eugénio de Andrade
(1923-2005)

terça-feira, 22 de setembro de 2015

ALMA DE CÔRNO
Alma de côrno – isto é, dura como isso;
Cara que nem servia para rabo;
Idéas e intenções taes que o diabo
As recusou a ter a seu serviço –
 
Ó lama feita vida! ó trampa em viço!
Se é p’ra ti todo o insulto cheira a gabo
– Ó do Hindustão da sordidez nababo!
Universal e essencial enguiço!
 
De ti se suja a imaginação
Ao querer descrever-te em verso. Tu
Fazes dôr de barriga á inspiração.
 
Quér faças bem ou mal, hyper-sabujo,
Tu fazes sempre mal. És como um cú,
Que ainda que esteja limpo é sempre sujo.
 
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Nota: Soneto atribuído a F.P. e escrito em 1910.

 OBSESSÃO

Quero a Noite completa, desumana.
A Noite anterior. A Noite virgem
de mim. A Noite pura. Quero a Noite,
aonde é impossível encontrar-te.

Que não há rio nem rua nem montanha
nem floresta nem prado nem jardim
nem pensamento algum nem livro algum
em que não me apareças sorridente.

Sebastião da Gama
(1924-1952)
In "Pelo Sonho é que Vamos"