domingo, 19 de maio de 2013

  INSÓNIA.
 
Perguntarás aos peixes
como se dorme
de olhos abertos. Porque o sono
dos vivos é um fosso
de víboras
insones. E precisas
por isso
de estar atento. De dormir
acordado.
 
Albano Martins
In " Escrito a Vermelho"
 PRIMEIRO DIA.


Depois será como se nascêssemos de novo,
trouxéssemos para o dia
a nossa mais funda e mais bela face.

Dia de chuva solar em nossos cabelos ilimitados.
Ergueremos os ombros cansados.
E nos reveremos nas águas
do próprio rio que somos, inextinguível.

Pousarão as aves marinhas e as terrestres
nos nossos ombros escorrendo sol e limos,
e as rãs adormecerão nos pauis
onde nos diluímos sôfregamente raízes.
E os peixes e os navios navegarão em nosso sangue,
na maior das navegações
de todos os tempos.

Erecto estará nosso braço, e formidável.
Sob as nossas mãos
crescerão as formas anunciadas.
E as palavras nos brotarão dos lábios,
e serão searas
e aves do tamanho do mundo.

Papiniano Carlos
(1918-2012)
TENHO DÓ DAS ESTRELAS

Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo…
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir…

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão?

Fernando Pessoa
(1888-1935)
ROSTO AFOGADO


Para sempre um luar de naufrágio
anunciará a aurora fria.
Para sempre o teu rosto afogado,
entre retratos e vendedores ambulantes,
entre cigarros e gente sem destino,
flutuará rodeado de escamas cintilantes.

Se me pudesse matar,
seria pela curva doce dos teus olhos,
pela tua fronte de bosque adormecido,
pela tua voz onde sempre amanhecia,
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra
era um rumor de festa,
pela tua boca onde os peixes se esqueciam
de continuar a viagem nupcial.
Mas a minha morte é este vaguear contigo
na parte mais débil do meu corpo,
com uma espinha de silêncio
atravessada na garganta.

Não sei se te procuro ou se me esqueço
de ti quando acaso me debruço
nuns olhos subitamente acesos
ao dobrar de uma esquina,
na boca dos anjos embriagados
de tanta solidão bebida pelos bares,
nas mãos levemente adolescentes
pousadas na indolência dos joelhos.
Quem me dirá que não é verdade
o teu rosto afogado, o teu rosto perdido,
de sombra  em sombra, nas ruas da cidade?

Ninguém te conheceu,
ninguém viu romper a luz na tua cama,
ninguém sabe, ninguém,
que o teu corpo, continente selvagem,
se desvelava por uma pedra branca,
atirada contra o nevoeiro.

Por isso escrevo esta elegia
como quem oferece a luz dos olhos;
por isso canto o teu rosto afogado
como quem canta um funeral de espigas.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "As Palavras Interditas"
A VELHICE PEDE DESCULPA


  Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.

Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.

Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.

Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.

Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.

Cecília Meireles

(1901-1964)
 In "Poemas"
 (1958)

quarta-feira, 1 de maio de 2013


 PERFIL


Não. Não tenho limites.
Quero de tudo
Tudo.
O ramo que sacudo
Fica varejado.
Já nascido em pecado,
Todos são naturais
À minha condição,
Que quando, por excepção,
Os não pratico
É que me mortifico.
Alma perdida
Antes de se perder,
Sou uma fonte incontida
De viver.
E o que redime a vida
É ela não caber
Em nenhuma medida.





Miguel Torga
(1907-1995)
Cristalizações



   


Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
 Vibra uma imensa claridade crua.
 De cócoras, em linha, os calceteiros,
 Com lentidão, terrosos e grosseiros,
 Calçam de lado a lado a longa rua.

Com as elevações secaram do relento,
 E o descoberto sol abafa e cria!
 A frialdade exige o movimento;
 E as poças de água, como em chão vidrento,
 Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
 Disseminadas, gritam as peixeiras;
 Luzem, aquecem na manhã bonita,
 Uns barracões de gente pobrezita
 E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem as aves; nem o choro duma nora!
 Tomam por outra parte os viandantes;
 E o ferro e a pedra - que união sonora! -
 Retinem alto pelo espaço fora,
 Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
 Cuja coluna nunca se endireita,
 Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
 Pesam enormemente os grossos maços,
 Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
 Que espessos forros! Numa das regueiras
 Acamam-se as japonas, os coletes;
 E eles descalçam com os picaretes,
 Que ferem lume sobre sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente as flores,
 Fundeiam, como a esquadra em fria paz,
 As árvores despidas. Sóbrias cores!
 Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
 Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -
 Carros de mão, que chiam carregados,
 Conduzem saibro, vagarosamente;
 Vê-se a cidade, mercantil, contente:
 Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
 Em arco, sem as nuvens flutuantes,
 O céu renova a tinta corredia;
 E os charcos brilham tanto, que eu diria
 Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
 Eu tudo encontro alegremente exacto.
 Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
 E tangem-me, excitados, sacudidos,
 O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
 De tão lavada e igual temperatura!
 Os ares, o caminho, a luz reagem;
 Cheira-me a fogo, a sílex, a ferrugem;
 Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;
 Dois assobiam, altas as marretas
 Possantes, grossas, temperadas de aço;
 E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
 E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
 Que vida tão custosa! Que diabo!
 E os cavadores pousam as enxadas,
 E cospem nas calosas mãos gretadas,
 Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas
 Uma bandeira penso que transluz!
 Com ela sofres, bebes, agonizas:
 Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
 E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
 Surge um perfil direito que se aguça;
 E ar matinal de quem saiu da toca,
 Uma figura fina, desemboca,
 Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
 E a quem, à noite na plateia, atraio
 Os olhos lisos como polimento!
 Com seu rostinho estreito, friorento,
 Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
 Como lajões. Os bons trabalhadores!
 Os filhos das lezírias, dos montados:
 Os das planícies, altos, aprumados;
 Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
 Furtiva a tiritar em suas peles,
 Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
 Neste Dezembro enérgico, sucinto,
 E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
 Eles, bovinos, másculos, ossudos,
 Encaram-na, sanguínea, brutalmente:
 E ela vacila, hesita, impaciente
 Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
 Sem que inda o público a passagem abra,
 O demonico arrisca-se, atravessa
 Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
 Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

Cesário Verde
(1855-1886)
ANSIEDADE? É POSSÍVEL


Ansiedade? é possível
Assim se chama a este querer não querer voltar a querer o seu contrário

E depois? De que serve reduzir este impossível mal dizível
ao que vem e não vem no dicionário?

Mário Dionísio
(1916-1993)
In "Poesia Incompleta"

COMO NASCEM AS BANDEIRAS

Até hoje, estão assim nossas bandeiras.
Bordou-as o povo com ternura,
coseu os trapos com o sofrimento.

Cravou a estrela com as mãos ardentes

E cortou, de camisa ou firmamento,
o azul para a estrela da pátria.

O vermelho, gota a gota, ia nascendo.

Pablo Neruda

(1904-1973)