quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

 ALFABETO DO MUNDO


Em vão me demoro a soletrar
o alfabeto do mundo.
Leio nas paredes um escuro soluço,
ecos afogados em torres e edifícios,
indago a terra com o tacto
cheia de rios, de paisagens e cores,
mas engano-me sempre ao copiá-los.
Preciso de escrever cingindo-me a um risco
sobre o livro do horizonte.
Desenhar o milagre desses dias
que flutuam envoltos na luz
e se desprendem em cantos de pássaros.
Quando na rua os homens que vagueiam
do seu rancor à sua fadiga, matutando,
se me revelam inocentes mais que nunca.
Quando o batoteiro, a adúltera, o malandro,
os mártires do ouro ou do amor
são só signos que nunca li bem,
que ainda não consigo anotar em meu caderno.
Quanto eu queria ao menos um instante
que esta página febril de poesia
gravasse em sua transparência cada letra:
o o do ladrão o t de santo,
o gótico ditongo do corpo e seu desejo,
com a mesma escrita do mar nos areais,
a mesma cósmica piedade
que a vida desdobra ante meus olhos.

Eugenio Montejo
(1938-2008)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
Trad.de José Bento

domingo, 24 de fevereiro de 2013

 CAMPOS DE  SÓRIA (IV)


As figuras do campo sobre o céu!
Dois lentos bois lavram
numa colina, ao começar o Outono,
e entre as negras testas recurvadas
sob o pesado jugo,
pende um cesto de juncos e giesta,
que é um berço de um menino;
e atrás da junta avançam
 um homem que se inclina para a terra
e uma mulher que nos regos abertos
lança a semente.
Sob uma nuvem de carmim e chamas,
no oiro fluido e esverdeado
do poente, as sombras agigantam-se.

António Machado
(1875-1939)
Trad. De José Bento.
O IRRECUPERÁVEL
 

O irrecuperável
Recuperado ei-lo aqui sorrindo
Com a boca torcida mas feliz
Com os braços esmagados mas feliz

O que não volta eis volta
Por ignoradas mãos
Numa hora esquecida
Entre as horas marcadas

Possivel o recomeço
Possivel o sobressalto
Possivel o sonho solto
Possivel um mundo novo
Possivel o impossivel 
 
Outro é o destino do homem
 
Mário Dionísio 
(1916-1993)
In "O Riso Dissonante"
(1950)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

EIS-NOS AQUI

Eis-nos aqui, sentados à lareira
Do desespero.
O borralho ideal vai-se apagando,
Enquanto o vento da realidade
Sopra lá fora.
É esta a nossa hora
De amor
Ou de traição?
Porque fechamos todas as portas
Do coração,
Entanguidos de frio e de terror?
Se o temporal entrasse,
Talvez a labareda se ateasse
E nos desse calor ...

Miguel Torga
(1907-1995)
 CONTRACANTO
Aqui longe do sol que mais farei
Senão cantar o bafo que me aquece?
Como um prazer cansado que adormece
Ou preso conformado com a lei.

Mas neste débil canto há outra voz
Que tenta libertar-se da surdina,
Como rosa-cristal em funda mina
Ou promessa de pão que vem nas mós.

Outro sol mais aberto me dará
Aos acentos do canto outra harmonia,
E na sombra direi que se anuncia
A toalha de luz por onde vá.
José Saramago
(1922-2010)
In "Os Poemas Possíveis"
Zeca Afonso 2/8/1929 - 23/2/1987. No 26º aniversário da sua morte.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013




SE CANTASSE.


Se cantasse, talvez o coração
Sossegasse no peito.
Mas vou perdendo o jeito
De cantar
A vida, devagar,
Leva-nos tudo,
E deixa-nos na boca o gosto de ser mudo.

Miguel Torga
(1907-1995)
Coimbra, 12 de Outubro de 1974

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

 HÁ EM TUDO QUE FAZEMOS


Há em tudo que fazemos
Uma razão (?) singular:
É que não é o que queremos.
Faz-se porque nós vivemos,
E viver é não pensar.

Se alguém pensasse na vida,
Morria de pensamento.
Por isso a vida vivida
É essa coisa esquecida
Entre um momento e um momento.

Mas nada importa que o seja
Ou que até deixe de o ser:
Mal é que a moral nos reja,
Bom é que ninguém nos veja;
Entre isso fica viver.

Fernando Pessoa
(1888-1935)
 FRESTA.

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

SÚBITA MÃO DE ALGUM FANTASMA OCULTO.


Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.

Mas um terror antigo, que insepulto
Trago no coração, como de um trono
Desce e se afirma meu senhor e dono
Sem ordem, sem meneio e sem insulto.

E eu sinto a minha vida de repente
Presa por uma corda de Inconsciente
A qualquer mão nocturna que me guia.

Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria.

Fernando Pessoa
(1888-1935)
 ONDE FICAVA O MUNDO?


 Onde ficava o mundo?
Só pinhais, matos, charnecas e milho
para a fome dos olhos.
Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.
E o mar? E a cidade? E os rios?
Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,
onde chiam carros de bois e há poças de chuva.
Onde ficava o mundo?
Nem a alma sabia julgar.
Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.
Em cada dia o povo abraçava um outro povo.
E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:
a estrada branca e menina é uma serpente ondulada
e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.

Fernando Namora

(1919-1989)

domingo, 17 de fevereiro de 2013





AS PEDRAS AGONIZAM NAS MINHAS MÃOS.


Já nada resiste
às poéticas implicações
Que me obrigam a dar vida
Aos objectos mais imprevistos
Que subitamente impressionados
Me cinturam
E me subjugam
E me libertam
As pedras agonizam
Nas minhas mãos
As pedras agonizam
Nas minhas mãos
As pedras agonizam
Nas minhas mãos
Porque nelas impunemente
Nelas apenas pontificava
Este silêncio inaudível
Mas palpável e dissolvente
Este silêncio amaldiçoado
Gerações e gerações
De poetas e guerrilheiros
Que me partiram dolorosamente
Na lucidez plena
Deste império de solicitações

Oh as pedras agonizam
Nas minhas mãos
Para ressurgirem
Uma a uma reanimadas
No fluxo dialéctico
Da minha própria inspiração
E assim as domino e comprometo
Assim as devolvo comungadas
À mais poética intimidade

E as pedras oh camaradas

As pedras então se reacendem
Nas mãos de qualquer um.

Rui Nogar
(1935-1994)
HAJA NÉVOA!

Haja névoa!
Dancem os véus na minha alma
(E externos nas luzes próximas,
Que se recusam como estrelas na distância).
Haja névoa!
Paire nela a memória dos maníacos
Sonhando na penumbra dos portais
Assassínios brutais.
Haja, haja névoa!
Aqui e além no mar.
No mar, nos mares, para que todas as viagens,
Para que todos os barcos em todas as paragens,
Na iminência dos naufrágios improváveis
- Improváveis, possíveis -,
Se gastem nos avisos aflitos
Das luzes, dos rádios, dos radares,
Dos gritos
Dos apitos.
Haja, haja névoa...
Desgastem-se os contornos
Das coisas excessivamente conhecidas.
Não haja céu sequer.
Névoa, só névoa!
E eu, nas ruas distorcidas,
Livre e tão leve
Como se fosse eu próprio a névoa
Da noite longa duma existência breve.

Reinaldo Ferreira
(1922-1959)
 PERPLEXIDADE.


Hesito no caminho.
Ninguém segue este rumo...
É noutra direcção
Que o vento leva o fumo
Das paixões...
Chegar, sei que não chego,
De nenhuma maneira;
Mas queria ao menos ir no lírico sossego
De quem não se enganou na estrada verdadeira.


E não vou.
Cada vez mais sozinho
Na solidão,
Duvido da certeza dos meus passos.
Vejo a sede ancestral da multidão
Voltar costas às fontes que pressinto,
E fico na mortal indecisão
De afirmar ou negar o cego instinto
Que me serve de guia e de bordão.


Miguel Torga
(1907-1995)
 O PÃO.


De sol a sol, o arado lavra a terra.

De sol a sol, cai o suor ao chão.
E como cada gota é um grão
Da sementeira,
É puro sofrimento que, à torreira
Da futura colheita,
Ceifa, malha e peneira
A fome insatisfeita.
 
Miguel Torga
(1907-1995)

sábado, 16 de fevereiro de 2013

 LEVAI-ME.

Levai-me por piedade onde a vertigem
com a razão me arranque a memória.
Por piedade! Tenho medo de ficar
com a minha dor a sós! 


Gustavo Adolfo Bécquer
(1836-1870)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

 SOU UM EVADIDO.

Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.

Fernando Pessoa
(1888-1935)
E, ENORME, NESTA MASSA IRREGULAR.


E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés de fel como um sinistro mar!


Cesário Verde
(1855-1886) 
MESA DE SONHOS


 Ao lado do homem vou crescendo

Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas

Ao lado do homem vou crescendo

E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida

Alexandre O'Neill

(1924-1986)
In "No Reino da Dinamarca"

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

 POR...

Por um olhar, um mundo;
por um sorriso, um céu;
por um beijo...não sei
que te daria eu.


Gustavo Adolfo Bécquer
(1836-1870)
 
 ENQUANTO HOUVER.


Enquanto houver uns olhos que reflectem
outros olhos que os fitam,
enquanto a boca responda a suspirar
aos lábios que suspiram,
enquanto sentir-se possam ao beijar-se
duas almas confundidas,
enquanto exista uma mulher formosa,
haverá poesia!


Gustavo Adolfo Bécquer
(1836-1870)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

NUNCA A ALHEIA VONTADE CUMPRAS POR PRÓPRIA.


  Nunca a alheia vontade, inda que grata,
Cumpras por própria.
Manda no que fazes,
Nem de ti mesmo servo.
Ninguém te dá quem és.
Nada te mude.
Teu íntimo destino involuntário
Cumpre alto.
Sê teu filho.

Ricardo Reis / Fernando Pessoa

(1888-1935)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013


DE QUE ME RIU EU?
 


De que me rio eu?... Eu rio horas e horas
só para me esquecer, para me não sentir.
Eu rio a olhar o mar, as noites e as auroras;
passo a vida febril inquietantemente a rir.

Eu rio porque tenho medo, um terror vago
de me sentir a sós e de me interrogar;
rio pra não ouvir a voz do mar pressagio
nem a das coisas mudas a chorar.

Rio pra não ouvir a voz que grita dentro de mim
o mistério de tudo o que me cerca
e a dor de não saber porque vivo assim.


António Patrício
(1878-1930) 

É URGENTE O AMOR.
 

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.


Eugénio de Andrade
(1923-2005) 

 QUE MÚSICA ESCUTAS TÃO ATENTAMENTE.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim

Eugénio de Andrade
(1923-2005)



FRATERNIDADE.


Fraternidade
de débeis sentimentos inexactos,
cada qual com a sua verdade,
que só a imaginamos
para destruir
o sonho injusto dos factos.
Mas não me digam que vai continuar a desistência,
este eterno sempre da repetição da mesma coisa,
este terror medíocre de sentirmos debaixo dos pés
a impossível Ponte
que nunca poisa
nem poisará
em nenhum horizonte.

José Gomes Ferreira
(1900-1985)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O REGINO


O Regino era um homem sem trabalho;
de tanto padecer fez-se mendigo
e levava já de ofício vinte anos.
De cór sabia o bater das portas,
os degraus das catedrais
e as pedras de todos os caminhos;
polia com as costas as esquinas,
aquecia ao sol suas sardinhas.
Tinha calos de pedir esmola,
a mão curtida pelos ventos
e uma ferida no centro da palma
por onde já caíam as moedas.
Fora seu ofício o de mineiro
porém tossia quando ia à mina
e o médico aconselhou «mudança de ares»;
mendiga desde então
pelas aldeias da serra.


Glória Fuertes
(1917-1998)
RENOVAÇÃO.




Em cada dia morre um homem em mim.

Em cada dia nasce um homem em mim.

Só o itinerário é o mesmo, e isso decerto basta.

E eu tenho saudade dos homens que fui!

E eu anseio, espero os homens que serei!

Dia após dia, eu me renovo, sigo sempre.

Meus olhos de ontem não são meus olhos de hoje.

Um mundo morre, outro mundo nasce em cada dia.

 
Papiniano Carlos
(1918-2012)
A PRIMEIRA PRISÃO...


A primeira prisão é a pele que nos veste,
a segunda a família que nos coube em sorte,
e, limitado a sul, limitado a norte,
limitado a leste, limitado a oeste,
em seguida o país,
em que habita uma gente
que o que faz ou não faz,
que o que diz ou não diz
nos marca para sempre, irremediavelmente.


Armindo Rodrigues
(1904-1993)
 LEGADO.


O que eu espero, não vem.
Mas ficas tu, leitor, encarregado
De receber o sonho.
Abre-lhe os braços, como se chegasse
O teu pai, do Brasil,
A tua mãe, do céu,
O teu melhor amigo, da cadeia,
Abre-lhe os braços como se quisesses
Abarcar toda a luz que te rodeia.

Não lhe perguntes porque tardou tanto
E não chegou a tempo de me ver.
Uns têm a sina de sonhar a vida,
Outros de a colher.

Miguel Torga
(1907-1995)

domingo, 10 de fevereiro de 2013

 VAIS MORRER COM A SAIA ROTA

(Balada duma heroína que eu inventei)



Vais morrer com a saia rota
sem flores nos cabelos...
-Mas isso que importa
se depois de morta
até as mãos da terra
hão-de florescê-los ?

Vais morrer de blusa no fio,
sem laços nas tranças ...
-Mas isso que importa
se depois de morta
até as mãos do Frio
penteiam as crianças ?

Vais morrer espantada na rua,
sem fitas nos caracóis ...
-Mas isso que importa
se depois de morta
até as mãos da lua
enfeitam os heróis ?

Vais morrer a cantar numa esquina,
de sapatos velhos ...
-Mas isso que importa
se depois de morta
continuarás a ser a menina
que nunca teve espelhos ?

Vais morrer com olhos de águia presa
e meias de algodão ...
-Mas isso que importa
se depois de morta
a tua beleza
não caberá num caixão?
E há-de rasgar a terra
e romper o chão
como uma primavera
de lágrimas acesa
que os homens atiram, em vão,
para a natureza?

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
In "Heróicas"
 NÃO, NÃO QUEREMOS CANTAR...


(Junto a minha voz ao coro dos poetas mais novos. Recuso-me a ter mais de vinte anos.)

Não, não queremos cantar
as canções azuis
dos pássaros moribundos.

Preferimos andar aos gritos
para que os homens nos entendam
na escuridão das raízes.

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição.
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros.
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto.
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária
a falarem de amor
ao pé duma máquina de tempestade
a soluçar cidades de fome
na cólera dos ruídos...

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há melhor orgulho
do que o nosso destino
de nascer em todas as bocas...

...Nós, os poetas viris
que trazemos nos olhos
as lágrimas dos outros. 

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
In "Heróicas"

 QUE ME IMPORTA CANTAR.


Que me importa cantar!
Eu não sou poeta de canções
para embalar
ninhos nos corações.

Sou este ímpeto de gelo de lâmina
que se levanta mudo
diante de tudo.

(E quem me impede
de ter alma e sede?)

Mas quando canto
— as minhas canções ásperas
de vagabundo
sabem ao espanto
dum rio sem foz…

E na minha voz
sangra o desespero do mundo.

José Gomes Ferreia
(1900-1985)
In "Heróicas"

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

 ROTAÇÃO.


É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,
mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;
e se outras voltas me fazem ver nos teus
os meus olhos, não é porque o mundo parou, mas
porque esse breve olhar nos fez imaginar que
só nós é que o fazemos andar.

Nuno Júdice

LIBERDADE


Liberdade sem pão não é liberdade.
Sem liberdade, o pão é escuro e amargo.
Enquanto a alvorada é uma rosa branca,
o pino da tarde é um toiro bravo.
Entre o destino aceite e o escolhido,
é o mais custoso o que mais me quadra.
Pode viver-se preso e ser-se livre.
Pode viver-se livre e ser-se escravo.

 
Armindo Rodrigues
(1904-1993)

 ESTOU PERDIDO.


Profeta de meus fins não duvidava
do mundo que pintou minha fantasia
nos enormes desertos invisíveis.

Reconcentrado e penetrante, só,
mudo, predestinado, esclarecido,
meu profundo isolamento e fundo centro,
meu sonho errante e solidão submersa,
dilatavam-se pelo inexistente,
até que vacilei, até que a dúvida
por dentro escureceu minha cegueira.

Um tacto escuro entre o meu ser e o mundo,
entre as duas trevas, definia
uma ignorada juventude ardente.
Encontra-me na noite. Estou perdido.

Manuel Altolaguirre
(1905-1959)
Trad. de José Bento.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013


 OUTRA VIAGEM.

Já nos campos de Jaén
amanhece. O comboio,
nos seus luzentes carris,
vai tragando matagais,
alcacéis,
terraplenos, pedregais,
olivedos, casarios,
pradarias e cardais,
montes e vales sombrios.
No postigo embaciado,
passa esta dobadoira
do campo de primavera.
A luz do tecto cintila
do meu vagão de terceira.
Entre grandes nuvens brancas,
ouro e trigo;
E a névoa da manhã
a fugir pelos barrancos.
Este insone sonho meu!
Este frio
de acordar sem ter dormido!
Ressoante,
arquejante,
o comboio. E o campo voa.
Na minha frente, um senhor
sob a manta adormecido;
e um frade; e um caçador
- o cão aos pés estendido.
Contemplo a minha bagagem,
meu velho saco de couro;
e recordo outra viagem
até às terras do Douro.
Outra viagem: aquela
pela terra de Castela
- pinheiros na madrugada,
entre Almazán e Quintana!
Ai, alegria
de viajar em companhia!
Ai, união,
que a morte rompeu um dia!

Ah, mão fria
que apertas meu coração!
Anda, comboio, caminha,
fumegando,
carregando
teu batalhão de vagões,
fatigando
bagagens e corações!
Solidão,
sequidão.
E tão pobre vou ficando
que já nem ao certo estou
comigo, nem sei se vou
só comigo viajando.


António Machado
(1875-1939)
Trad. de David Mourão-Ferreira)
PORTO

A cidade equestre
No rio mergulha
Seus cascos de granito
E sobe
A galope
Encosta arriba

Num salto a prumo
(Lá onde o casario morre)
Upa!
É uma torre

Torre de pedra e nuvem
De pássaros de fogo
De corpo de mulher
Torre de tudo e de quanto
O sonho a palavra o canto
Pode e quer

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
(Desenho de Luís Veiga Leitão)

ONDE, AGUARDANDO, ESPERASSE.

Onde, aguardando, esperasse, 
Onde, cantando, me ouvisse, 
Onde, podendo, bastasse, 
Onde, vivendo, existisse, 

Onde o intuito trouxesse
O corpo de se cumprir
E eu todo sempre me desse,

Aí seria também
De exílio a minha atitude.
O que é longe é sempre o Bem,
Por mais que a alma se mude.
 
Reinaldo Ferreira
(1922-1959) 

CHAMO-TE.

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio 
E suportar é o tempo mais comprido. 

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade, 
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe. 

Há muitas coisas que não quero ver. 

Peço-Te que sejas o presente. 
Peço-Te que inundes tudo. 
E que o Teu reino antes do tempo venha 
E se derrame sobre a Terra 
Em Primavera feroz precipitado.



Sophia de Mello Breyner Andresen 
(1919-2004) 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013









DEIXEI ATRÁS OS ERROS DO QUE FUI.



Deixei atrás os erros do que fui,
Deixei atrás os erros do que quis
E que não pude haver porque a hora flui
E ninguém é exacto nem feliz.

Tudo isso como o lixo da viagem
Deixei nas circunstâncias do caminho,
No episódio que fui e na paragem,
No desvio que foi cada vizinho.

Deixei tudo isso, como quem se tapa
Por viajar com uma capa sua,
E a certa altura se desfaz da capa
E atira com a capa para a rua.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

domingo, 3 de fevereiro de 2013

PANFLETO.

Fere-me esta idolatria mais do que todos os crimes:
Tanto fervor desviado e perdido!
Tanta gente ajoelhando à passagem do tempo
e tão poucos lutando para lhe abrir caminho!
Há uma vida inteira a jogar e gastar
no pano verde imenso das campinas do mundo.
Há desertos cativos de uma ausência dos povos.
Há uma guerra devastando a vida,
enquanto a supuserem redimida!
E em nós a redenção quase perdida!...
Vamos rasgar, ó poetas, esta mentira da alma,
vamos gritar aos homens que os enganam,
que não é a força, que não é a glória,
que não é o sol nem a lua nem as estrelas,
nem os lares nem os filhos, nem os mares floridos,
nem o prazer nem a dor nem a amizade,
nem o indivíduo só compreendendo as causas,
nem os livros nem os poemas, nem as audácias heróicas,
- a redenção sou eu, se formos nós sem forma,
sem liberdade ou corpo, sem programas ou escolas!
Aqui está a redenção. Tomai-a toda.
E se é verdade a fome,
se é verdade o abismo,
se é verdade o pensamento húmido
que pestaneja ansioso nos cortejos públicos,
se são verdade as redenções que mentem:
Matem essa gente para salvar a Vida!
E matem-me com elas para que as queime ainda!
 
 
Jorge de Sena
(1919-1978)
 DUALISMO

Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Como se, a arder, no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.

Pobre, no bem como no mal, padeces;
E, rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.

Capaz de horrores e de acções sublimes,
Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:

E, no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demónio que ruge e um Deus que chora.

Olavo Bilac
(1865-1918)
  DIZEM QUE...


Dizem que o «Tempo acalma»-
Nunca o tempo acalmou-
A dor real é que se faz mais tensa
Como os Tendões, com a idade-


O Tempo é uma Prova de Tormento-
Mas não é o seu Remédio-
E se tal coisa prova, também prova
Que não houve Doença.-


Emily Dickinson
(1830-1886)
In "Cem Poemas"
Trad. de Ana Luísa Amaral.
  QUANDO...

Quando livros já não tiver
lerei as estrelas -
quando elas se cansarem
da minha solidão
lerei a palma
da mão.

Casimiro de Brito.

 O RELÓGIO.


"Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo fora.

O tempo que foi constante
no meu contratempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.

Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora.

José Carlos Ary dos Santos
(1937-1984)






sábado, 2 de fevereiro de 2013

EM LOUVOR DA ALEMANHA.





Imperiais, burgueses, grosseria
como de duques de uma Idade-Média
sonhada por românticos no vómito
da cervejaria a mais - e todavia
a pompa de sentir que a realidade
é como esse equilíbrio de ser besta
à beira de sonhar-se o universo.
 
Jorge de Sena
(1919-1978)

 

 APOLOGIA DO SONHO

 

Que do sono só se salva o sonho
quando, sendo penosa a cadência dos dias,
esse sonho se torna licor inebriante
que por dentro nos lava ou rasura o frio
de viajar por entre as catacumbas.

Que esse sonho salva, bem sabemos,
nas tão difíceis contas a prestar
à razão mais corrente e à voz mesquinha:
dizerem que dormir é descansar
para voltar - sem sonho - à mesma vinha
que, no dia-a-dia, se tem de amanhar...

João Rui de Sousa.