segunda-feira, 27 de junho de 2011

Rabindranath Tagore


SE É ASSIM QUE DESEJAS


Se é assim que desejas,
se for assim do teu gosto,
cessarei de cantar!
Se com isso agitar
teu coração,
do meu olhar o triste brilho
desviarei do teu rosto...
E se eu de súbito, te assustar
no teu passeio despreocupado,
afastar-me-ei do teu lado
e tomarei outro brilho...

Se eu te embaraçar - ai de mim -
quando teceres as tuas flores,
flor encantada,
esquivar-me-ei do teu
solitário jardim
e da tua doce imagem...
E se eu tornar a água turva
e agitada,
jamais remarei a minha barca
para a tua margem..."

Rabindranath Tagore
(1861-1941)
Trad. de Victor de Sá Coelho
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"

domingo, 26 de junho de 2011

Fausto e Zeca Afonso cantam Eugénio de Andrade " Não canto porque sonho "

Eugénio de Andrade


NÃO CANTO PORQUE SONHO.


Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
teu sorriso puro,
a tua graça animal.

Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
ao vê-los nus e suados.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "As Mãos e os Frutos"

Jorge de Sena


COMO DE SÚBITO NA VIDA.


Como de súbito na vida tudo cansa!
e cansa-nos a vida e nos cansamos dela,
ou ela é quem se cansa de nós mesmos,
na teima de existir e desejar?
Porque, neste cansaço, não o que não tivemos,
ou que perdemos, ou nos foi negado,
o que de que se cansa, mas também
o quanto temos, nos ama, se nos dá
a até os simples gozos de estar vivo.
Um dia é como se uma corda se quebrara,
ou como se acabara de gastar-se,
que nos prendia a tudo e tudo a nós.
Não é que as coisas percam importância,
as pessoas se afastem, se recusem,
ou nós nos recusemos. Não.é mais
ou menos que isto- se deseja igual
ao como até há pouco desejávamos.
É talvez mais. Mas sem valor algum.
O dia é noite, a noite é dia, a luz
se apaga ou se derrama sobre as coisas
mas elas deixam de ter forma e cor,
ou se sumir no espaço como forma oculta.
E o que sentimos é pior que quanto
dantes sentíamos nas horas ásperas
da fúria de não ter ou de ter tido.
Porque se sente o não sentir. Um tédio
Não como o tédio antigo. Nem vazio.
O não sentir. Que cansa como nada.
Até dizê-lo cansa. É inútil. Cansa.


Jorge de Sena
(1919-1978)

José Gomes Ferreira


Ó PINHEIRO...


Ó pinheiro
verdadeiro,
estou farto
do teu cheiro
tão bom a caruma,
mas que encobre
com pássaros e bruma
o suor da gente pobre.

Prefiro os pinheiros
da minha imaginação
com ramos cheios de astros
e ventos à solta
-a brandirem nos mastros
bandeiras de lágrimas de revolta.

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
In "Poesia-III"

sábado, 25 de junho de 2011

Armindo Rodrigues


DESPENTEIA OS CABELOS


Despenteia os cabelos e sorri-me,
minha alta e constante namorada.
Embora talvez isso seja um crime
enquanto o mundo mau se não redime,
agora quero não pensar mais nada.
Despenteia os cabelos e sorri-me,
minha alta e constante namorada.

Seja a vida serena ou seja inquieta,
sempre na vida cabe um grande amor.
Eu sou o que o teu sonho em mim projecta.
Tu és o aroma com que se completa
o meu sonho impossível de ser flor.
Seja a vida serena ou seja inquieta,
sempre na vida cabe um grande amor.

Despenteia os cabelos e aproxima
a tua face límpida da minha.
Um mesmo pensamento nos anima.
Movem-nos iguais ódios e igual estima.
O meu desejo o teu o adivinha.
Despenteia os cabelos e aproxima
a tua face límpida da minha.

Só tu és para mim consolação
de tanto desalento que sofri.
Cada mão tua em cada minha mão
torne em luz toda a minha confusão
e toda a luz em só te ver a ti.
Só tu és para mim consolação
de tanto desalento que sofri.

Despenteia os cabelos e sorri-me,
minha alta e constante namorada.
Embora talvez isso seja um crime
enquanto o mundo mau se não redime,
agora quero não pensar mais nada.
Despenteia os cabelos e sorri-me,
minha alta e constante namorada.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "Cerejas-Poemas de amor de autores Portugueses contemporâneos-
(Gonçalo Salgado e Maria João Fernandes)

Manoel de Andrade


O MARINHEIRO E O SEU BARCO

(Para Daniela)


Lembro-me de um tempo imenso,
de um menino de espumas e areia
do mar que tive em minha infância.
Depois a vida cresceu dentro de mim,
as tardes me acostumaram com os barcos partindo
e no meu pequeno peito nasceu um sonho de marinheiro.

Recordo que em mim tudo era barco
e que a existência chamava-me de todos os portos do mundo.
Recordo meus salgados olhos tatuados com invisíveis rotas
navegando errantes sobre o horizonte.

Sim, há coisas tristes na vida
como um sonho de criança
quando morre em nosso coração de homem.
E hoje,
quando vejo minha pátria naufragada
e meu povo reconstruir com sangue
seu barco despedaçado,
sinto que em mim renasce transformado
o mesmo sonho antigo;
então meu coração se banha com as águas amargas desses anos
e penso naquele transparente canto de pérolas e algas
que herdei de ondas remotas
em tudo que em mim ficou de verde e de imenso;
e sonho novamente com um visionário caminho para a vida,
com seus barcos de pão e de peixes
com gaivotas jovens
e sua brancura abrindo-se com o amanhecer.

E penso o meu tempo
com seus caminhos longos e difíceis
e o sinto com a esperança das águas nas nascentes
e seu deslumbramento da desembocadura.
E mais além
penso em um oceano com novas longitudes,
em uma bússola de estrelas
guiando meu povo a uma aurora boreal.
E penso nesses povos antigos
que partiram um dia em busca de uma terra longínqua,
em busca de novos campos para suas sementes
e de um berço de sol para seus filhos.

Ah irmãos!
quantos mares desconhecidos nos esperam!
Quantos caminhos até chegar à nossa sonhada Canaã!

Sim... há coisas belas na vida...
como o homem com seu barco e seu destino
como a alma extraordinária dos camaradas
a ternura escondida em seus punhos
e seus gestos de vida e de amor.
E penso nesse porto ainda distante
no trigo maduro
na doçura das laranjas na próxima estação.
Penso em uma iluminada manhã
quando voltar a pisar o chão da pátria
e abraçar minha filha bem amada.

Manoel de Andrade
In "Poemas para a Liberdade"

Oscar Cerruto


CANTAR


Minha pátria tem montanhas,
não mar.

Ondas de trigo e trigais,
não mar.

Espuma azul os pinheirais
não mar.

Céus de esmalte fundido
não mar.

E o coro rouco do vento
sem mar.

Oscar Cerruto
(1912-1981)
In "Obra Poética"
Trad. de Maria Teresa Almeida Pina.

José António Labordeta " Canto a la Libertad "

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Eugénio de Andrade


TODA A POESIA É LUMINOSA

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Manuel Alegre


COISA AMAR

Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como dói

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

Manuel Alegre

Paul Celan


FALA TAMBÉM TU


Fala também tu,
fala em último lugar,
diz a tua sentença.

Fala —
Mas não separes o Não do Sim.
Dá à tua sentença igualmente o sentido:
dá-lhe a sombra.

Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanta
quanta exista à tua volta repartida entre
a meia-noite e o meio-dia e a meia-noite.

Olha em redor:
como tudo revive à tua volta! —
Pela morte! Revive!
Fala verdade quem diz sombra.

Mas agora reduz o lugar onde te encontras:
Para onde agora, oh despido de sombra, para onde?

Sobe. Tacteia no ar.
Tornas-te cada vez mais delgado, irreconhecível, subtil!
Mais subtil: um fio,
por onde a estrela quer descer:
para em baixo nadar, em baixo,
onde pode ver-se a cintilar: na ondulação
das palavras errantes.

Paul Celan,
(1902-1987)
in "De Limiar em Limiar"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

Carlos Drummond de Andrade


POEMA DA PURIFICAÇÃO


Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.

As água ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.

Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mário Henrique Leiria


O MENINO E O CAIXOTE


-Não pode ser - disse o senhor Sousa ao filho, o Ernestinho de oito anos.
-Mas, papá, eu vejo nos filmes. Todos têm - afirmou a criança, à procura de uma salvação para aquilo que lhe parecia um desejo certo.
-Onde é que já se viu um leão em casa? Só nessas fitas idiotas. E, além disso, o menino não vê que não há espaço? Para a semana arranjo-lhe um gato bonito, daqueles que bebem leitinho e fazem miau.
O Ernestinho desistiu de convencer o pai. Para quê? Era um homem com bigode, sempre a explicar o que não era preciso. Nem sequer percebia de leões.
Sentou-se no chão a pensar. Com certeza que devia haver um leão, ali em casa! Não era a vassoura atrás da porta, nem a cadeira larga da mãe dormir aos domingos, nem sequer o embrulho do lixo à espera de ser deitado fora. Foi investigar, toda a gente sabe que os leões estão onde menos se espera.
Na cozinha, lá ao fundo, estava o caixote vazio que trouxera as compras da Cooperativa. O Ernestinho pousou-lhe a mão, acariciou-o com ternura e um certo receio. O caixote rugiu e sacudiu a areia amarela e antiga que lhe aquecia a juba. O menino puxou-o ao de leve, como quem ensina e acompanha, e o caixote seguiu-o, pisando firme.
O Ernestinho sentou-se no chão da sala. Entre o sofá e a mesinha da televisão o caixote ficava mesmo bem, confortável, como na caverna onde nascera e dera o primeiro rugido.
-Agora vamos caçar, Baluba - explicou o Ernestinho ao caixote.
-Que faz o menino aí com esse caixote? - perguntou severamente o senhor Sousa, abrindo a porta, de sobrolho franzido.
O menino olhou para o pai, assustado, e depois para o seu amigo Baluba.
-Mata o velho, Baluba! - gritou, num desespero.
O leão saltou veloz e, com uma única dentada eficaz, arrancou a cabeça do senhor Sousa.

Mário Henrique Leiria
(1923-1980)
In "Contos do Gin-Tonic"

Sophia de Mello Breyner Andresen


NÃO TE CHAMO PARA TE CONHECER


Não te chamo para te conhecer
Eu quero abrir os braços e sentir-te
Como a vela de um barco sente o vento

Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser

Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
In "Obra Poética"

Sophia de Mello Breyner Andresen


ÀS VEZES JULGO VER NOS MEUS OLHOS


Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.

Mas dessa fabulosa descoberta
Só me vem o terror e a mágoa
De me sentir sem forma, vaga e incerta
Como a água.

Sophia Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
In "Obra Poética"

António Machado


PROVÉRBIOS E CANTARES


XXI

Ontem eu sonhei que via
Deus e a Deus falava;
e sonhei que Deus me ouvia...
Depois sonhei que sonhava.

XXIX

Caminhante, são teus passos
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se o caminho a andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se voltará a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar

XLV

Morrer...Cair como gota
deste mar no mar imenso?
Ou ser o que nunca fui:
alguém, sem sombra e nem sonho,
um solitário que avança
sem caminho e sem espelho?

L

-O nosso espanhol boceja.
É fome? Sono? Fastio?
Doutor, terá o estômago vazio?
-O vazio é antes da cabeça.

LIII

Já há um espanhol que quer
viver e a viver começa,
entre uma Espanha que morre
e outra Espanha que boceja.
Espanholito que vens
ao mundo, que Deus te guarde.
Uma das duas Espanhas
teu coração gelará.

António Machado
(1875-1939)
Trad. de José Bento.

Jaime Gil de Biedma


NÃO VOLTAREI A SER JOVEM


Que é certo a vida passa
só se começa a compreender mais tarde
– como todos os jovens, decidi
levar a minha vida por diante.

Deixar marca eu queria
e partir entre aplausos
– envelhecer, morrer, eram somente
as dimensões do teatro.

Porém passou o tempo
e a verdade mais amarga assoma:
envelhecer, morrer,
é o argumento único da obra.

Jaime Gil de Biedma
(1929-1990)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

Alexandre Dáskalos


TESTAMENTO


Eis-nos aqui no caminho
Traçado por nossa mão.
Cada braço traz o punho
e cada punho um punhal.

Bandoleiros na vida,
vida errante era o destino!
Nas costas nasceram traços
da vida dura sem pão.

Rugas dos covais da vida
cemitérios da ilusão!...
Mortos, mortos, mas com vida
quase á beira do chão.

Quase à beira do chão
rastejantes, vermes, podres!...
Pobre miséria do mundo
só o dinheiro é patrão.

Só o dinheiro é patrão
dos vermes sujos do chão
Cada verme traz um punho
com uma faca na mão.

Alexandre Dáskalos
(1924-1961)

Mário Saa


QUADRAS DA MINHA VIDA


Os ecos nos meus sentidos
Dos meus afectos doentes
São mais longos, mais compridos
Do que rastos de serpentes.

Nasci profundo e pegado
A turbilhões de aflição:
Na cara trago estampado
O meu perfil de obsessão.

Não creio que possa amar
Nem neste mundo ter jeito
De me encostar a outro leito
Sem desatar a chorar.

Enterro os dias e os ais,
Sou uma pilheira de mortos,
Não tenho espaço pra mais!
Que se comam uns aos outros...

Mário Saa
(1893-1971)
In "A Poesia da Presença"

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Mário Dionísio


ESTAMOS AGORA EM PAZ


Estamos agora em paz
sabendo simular o esquecimento

sentados

com os olhos no vento
lá de fora atirado para antes
de nós as mãos caídas
nos joelhos mas nada suplicantes
só esvaídas

conformados
com não nos conformarmos

resignados
a esperando não esperarmos

como se tudo fosse um imenso tanto faz

Mário Dionísio
(1916-1993)
In "Terceira Idade" (1982)

Armindo Rodrigues


HINO AO HOMEM


Homem, se homem queres ser
E não uma sombra triste,
Olha para tudo o que existe
Com olhos de bem o ver.

Nada receies saber.
Ao que não amas, resiste.
Mesmo vencido, persiste
E acabarás por vencer.

Quere e poderás poder.
Vai por onde decidiste.
A liberdade consiste
No que a razão te impuser.


Armindo Rodrigues
(1904-1993)

José de Almada Negreiros


ENCONTRO

(A Carlos Queiroz)


Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá para o futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.

Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.

O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce á cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.

Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.

Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.

Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.

José de Almada Negreiros
(1893-1970)
In "Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI)

Barbara - " Dis, quand reviendras-tu? "

Jacques Brel (1929-1978) "Jojo"

Rua de Évora.

Manuel António Pina (Prémio Camões de 2011)


SAUDADE DA PROSA


Poesia, saudade da prosa;
escrevia "tu", escrevia "rosa";
mas nada me pertencia,

nem o mundo lá fora
nem a memória,
o que ignorava o que sabia.

E se regressava
pelo mesmo caminho
não encontrava

senão palavras
e lugares vazios:
símbolos, metáforas,

o rio não era rio
nem corria e a própria morte
era um problema de estilo.

Onde é que eu já lera
o que sentia, até a
minha alheia melancolia?

Manuel António Pina
In "Poesia, Saudade da Prosa"

terça-feira, 21 de junho de 2011

José Manuel de Vasconcelos


TERRITÓRIO


Um céu de sombras
vermelho por dentro
clareira solta
sobre o mar
O sonho como um galo branco
iluminado de noite
para que os ossos da névoa
ganhem contornos de pele
Um pássaro vibrando
na solidão de cada ferida
O granítico ódio
destas ruas sem rostos
deste pranto sem corpo
de país castigado.

José Manuel de Vasconcelos
In "A Mão na Água que Corre"

segunda-feira, 20 de junho de 2011

João Apolinário


RECUSO-ME


Recuso-me a ficar amolecido
Tragicamente cilindrado
E muito antes de lutar ficar vencido
E muito antes de morrer violado

Recuso-me ao silencio e á mordaça
Serei independente, livre e exacto
A verdade é uma força que ultrapassa
A própria dimensão em que combato

Recuso-me a servir a violência
Embora a minha voz nada valha
Mas que fique ao menos na consciência
De que tentei romper esta muralha

Recuso-me a ter medo e a estiolar
Na concha dos poetas sem mensagem
Que me levem o corpo e a coragem
Mas que me fique esta voz para cantar

João Apolinário
(1922-1988)

Patxi Andion "Una Dos y Tres)

Amancio Prada canta Rosalía de Castro (Adios rios, adios fontes)

Jaime Gil De Biedma


MESMO QUE SÓ UM INSTANTE


Mesmo que só um instante, desejamos
descansar. Sonhamos entregar-nos.
Não sei, mas em qualquer lugar
desde que a vida deponha seus espinhos.

Um instante, talvez. E regressamos
atrás, ao passado enganoso que se fecha
sobre o temor actual, que dia a dia
outrora também conhecemos.

Esquece-se
depressa, esquece-se o suor de tantas noites,
a ânsia nervosa que amarga o melhor ganho,
levando-nos a ele rendidos de antemão
sem mais que esse vazio de chegar,
a indiferença estranha do que já está feito.
De modo que cada vez que este temor,
o eterno temor que possui nosso rosto
nos assalta, gritamos invocando o passado
-invocando um passado que jamais existiu-

Para crer ao menos que em verdade vivemos
e a vida é de mais do que esta pausa imensa,
vertiginosa,
quando a própria vocação, aquilo
sobre que fundamos um dia o nosso ser,
o nome que demos à nossa dignidade
vemos que não era mais
que um desolador desejo de esconder-se.

Jaime Gil De Biedma
(1929-1990)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

Manuel António Pina (Prémio Camões de 2011)


ESPLANADA


Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

Manuel António Pina
In "Poesia, Saudade da Prosa"
(Uma antologia pessoal)

Juan Ramón Jiménez


NADA



A teu abandono oponho esta elevada
torre do meu divino pensamento.
Daí verá o coração sangrento
a cor do mar, por ele purpurada.

De minha sombra farei a madrugada,
minha lira guardarei do fútil vento,
dentro em mim buscarei o meu sustento...
Mas, ai! e se esta paz não fosse nada?

Nada, sim, nada, nada!... Ou que, já nu,
meu coração se afogasse e deste modo
fosse o mundo um castelo oco e novoento... –

Que a Primavera humana és tu, és tu,
a terra, o ar, a água, o fogo todo!
E eu sou apenas meu próprio pensamento!

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
(Prémio Nobel em 1956)
In "Antologia Poética"
(Trad. de José Bento)

Juan Ramón Jiménez


VOZ IMENSA



Somente abrem a paz um sino além, um pássaro...
Dir-se-ia que os dois conversam com o ocaso.

É de ouro e silêncio. A tarde é de cristais.
Embala as frescas árvores uma pureza errante.
E, para além de tudo, sonha-se um rio límpido
que, separando pérolas, foge rumo ao infinito.

Solidão! Solidão! Tudo é silente e claro.
Somente abrem a paz um sino além, um pássaro...

O amor vive longe. Sereno, indiferente,
o coração é livre. Nem triste, nem alegre.
Distraem-no brisas, cores, toques, perfumes…
Nada como num lago de sentimento imune.

Somente abrem a paz um sino além, um pássaro...
Dir-se-ia que o eterno está aqui, ao nosso lado.

Juan Ramón Jiménez
(1881-19589)
(Prémio Nobel de 1956)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

Camilo Pessanha (Numa velha parede, algures, em Évora)


ENCONTRO.


Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
--- Bom dia, companheiro --- te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.

É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.

É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto

Que chorámos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.

Camilo Pessanha
(1867-1926)

terça-feira, 14 de junho de 2011

Jorge de Sena


EPÍGRAFE PARA A ARTE DE ROUBAR

Roubam-me Deus
Outros o Diabo
-Quem cantarei?

Roubam-me a Pátria
e a Humanidade
outros ma roubam
-Quem cantarei?

Sempre há quem roube
Quem eu deseje
E de mim mesmo
Todos me roubam
-Quem cantarei?

Roubam-me a voz
quando me calo
ou o silêncio
mesmo se falo
-aqui del-rei?

03/06/1952
Jorge de Sena
(1919-1978)
In "Antologia Poética"

Jorge de Sena


DESTA VERGONHA...


Desta vergonha de existir ouvindo,
amordaçado, as vãs palavras belas,
por repetidas quanto mais traindo
tornadas vácuas da beleza delas;

desta vergonha de viver mentindo
só porque escuto o que dizeis com elas;
desta vergonha de assistir medindo
por elas as injúrias por trás delas

ao mesmo sangue com que foram feitas,
ao suor e ao sémen por que são eleitas
e à simples morte de chegar-se ao fim;

desta vergonha inominável grito
a própria vida com que às coisas fito:
Calai-vos, ímpios, que jurais por mim!

12/2/1954

Jorge de Sena
(1919-1978)
In "Antologia Poética"

Manuel António Pina


COMPLETAS


A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

Manuel António Pina
In "Poesia, Saudade da Prosa"
(uma antologia pessoal)

sábado, 11 de junho de 2011

Mário Beirão


A ELEGIA DAS GRADES


A fome, um dia, arrastou-me
Para as grades da prisão:
Sou o bastardo sem nome,
O deserdado sem pão!

Meu ar é dúbio, suspeito:
Vinte prisões conto já,
Vinte facadas no peito,
Na alma quantas não há!

Ninguém me quer, sou da vasa;
Nas minhas carnes espúrias
Marcaram, a ferro em brasa,
Tatuagens rubras de injúrias.

Quando eu canto, o povo em massa
Chora ouvindo a minha voz;
Novo Camões da desgraça,
Canto a dor de todos nós!

Nas lajes do corredor .
Ressoam passos... Quem vem?
Ferrolhos, chaves, rumor. ..
Encarceraram alguém!
Ferros de El-rei! Que ironia!
Soubesse El-rei da traição,
E caridoso viria
Dar-nos lágrimas e pão!

Aqui, em torpe igualdade,
Anicham-se os pais e os filhos;
Cabeças fora da grade,
Famintos e maltrapilhos!

A sombra, espertando o instinto,
Espessa de ardis, oprime;
Abismam-se as almas ... Sinto
Correr-me a larva do crime!

Noites de febre e miasmas,
De delírios e cruezas ...
Perpassam brancos fantasmas,
Brandões, fogueiras acesas!

Aos areais da desgraça
Lançou-me torva maré ...
Vejo toda a minha raça
Ardendo em autos-de-fé!

Adeus, a noite vai alta!
Por entre névoas, mui cedo,
Vou de súcia com a malta,
Na leva para o degredo!
Que importa morrer de todo
Nos ermos de água sem fim?
Eu já morri de algum modo:
Sou a lembrança de mim!

Saudades, brumas, acenam ...
Eu, no escuro, a murmurar:
«- Os crimes dos que condenam
Nem o inferno os quer julgar!»

Çala a tua alta Epopeia,
Ó povo de Pedro Sem!
Maré cheia, maré cheia,
Já se não salva ninguém!

Mário Beirão
(1890-1965)
In "Antologia de Poemas Portugueses Modernos"
Por Fernando Pessoa e António Botto.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Manuel da Fonseca


MALTÊS

I

Em Cerromaior nasci.

Depois, quando as forças deram
para andar, desci ao largo.
Depois, tomei os caminhos
Que havia e mais outros que
Depois desses eu sabia


E tanto já me afastei
Dos caminhos que fizeram,
Que de vós todos perdido
vou descobrindo esses outros
Caminhos que só eu sei.

II

Veio o guarda com a lei
No carro das carabinas.


Cercaram-me num montado;
puseram joelho em terra;
gritaram que me rendesse
à lei dos caminhos feitos.
Mas eu olhei-os de longe,
tão distante e tão de longe,
o rosto apenas virado,
que só vi em meu redor
dez pobres ajoelhados
perante mim, seu senhor.

III

Gente chego às janelas,
saíram homens à rua:
- as mães chamaram os filhos,
bateram portas fechadas!


E eu, o desconhecido,
o vagabundo rasgado
entrei o largo da vila
entre dez guardas armados;
- mais temido e mais armado
que o deus a que todos rezam.


- Que nunca mulher alguma
se rendeu mais a um homem
que a moça do rosto claro
ao cruzar os olhos pretos
com o meu olhar de rei!

IV

...E vendo que eu lhes fugia
assim de altiva maneira
à sua lei decorada,
lá,
longe do sol e da vida,
no fundo duma cadeia,
cheios de raiva me bateram.
Inanimado,
tombei por fim a um canto.


E enquanto eles redobravam
sobre o meu corpo tombado,
adormecido
eu descansava
de tão longa caminhada!...

Manuel da Fonseca
(1911-1993)
In "Obra Poética"

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Alexandru Vlahuta



DESPEJO



Gente coitada, não pagou a renda
E a tralha para a rua lhes deitaram:
Roupas de pobre – só trapos rasgados...
Esta mudança parece agonia.

E a chuva molha com seu ar de troça
Velhos farrapos, móveis roídos
Pelo caruncho, nus, desvergonhados.
Há dentro deles uma alma que chora.

E a cama ainda pensa nas carícias
Que amparou e que à dor deitaram
Dois magrizelas com as mãos de cera...
Oh, malditos amores de pobreza!

E grita ao vento: Mas por que direito
A mulher fraca, esfomeada, atira
Nova vida ao inferno – por um beijo?
Entre os pobres o amor é crime.

Chia a carroça à chuva: sua ruína
Devagar vai seguindo um operário,
Cabeça baixa, seco, de dor mudo,
E os olhos tristes para trás nem vira.

Ao lado, a mulher, cansada, leva
Dois miúdos pela mão. E em silêncio
Vão sem parar – nem eles sabem onde,
E a chuva os açoita sem piedade.

Tormento horrível, quase ameaça
Oculta-se no monte de farrapos,
No carro velho que a gemer estala,
Nos quatro vagabundos macilentos.

Essa miséria que os caminhos trava,
Os móveis desengonçados, gastos,
Que a lama cortam rumo ao futuro,
São como início de uma barricada.

Alexandru Vlahuta
(1858-1919)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
Trad. de Doina Zugravescu.

Friedrich Nietzsche


O FANAL


Aqui, onde entre mares cresceu a ilha,
pedra e ara súbito como torre erguida,
aqui ascende sob um negro céu
Zaratustra os seus fogos das alturas,-
fanal para navegantes sem rumo,
ponto de interrogação para os que têm resposta...

Esta chama de ventre esbranquiçado
-sua cobiça lança línguas a distâncias frias,
dobra o pescoço para alturas mais puras -
cobra erguida a pino, de impaciência:
este sinal o pus eu em frente a mim.

A minha própria alma é esta chama:
insaciável de distâncias novas,
lança ao alto, ao alto o seu ardor silente.
Porque fugira Zaratustra dos bichos e dos homens?
porque se escapou de repente de toda a terra firme?

Seis solidões conhece ele já -,
mas o seu próprio mar não lhe era solitário bastante,
a ilha deixou-o subir, sobre o monte ele se fez chama,
a uma sétima solidão
lança buscando agora o seu anzol por sobre a fonte.

Navegantes sem rumo! Destroços de astros velhos!
Ó mares de futuro! Ó céus inexplorados!
Lanço agora o anzol a tudo o que é solitário:
dai resposta à impaciência da chama,
agarrai para mim, pescador nos altos montes,
a minha sétima última solidão! -

Friedrich Nietzsche
(1844-1900)
IN "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
Trad. de Paulo Quintela.

Fernando Guimarães


TUDO O QUE VÊS CHEGA DE LONGE.


Tudo o que vês chega de longe: apenas um contorno
ou uma sombra que se desloca devagar. Há gestos
semelhantes a folhas que não caem. Principia agora
a luz a espalhar-se à nossa volta e a verdade torna-se
mais simples. É como um rosto que reconhece a sua idade.

Fernando Guimarães
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"

domingo, 5 de junho de 2011

Mário Castrim


DIVINA MÚSICA


Esta mesa em que escrevo foi pensada
para ter muitos amigos à volta dela.
Podemos encaixar-lhe duas tábuas
torná-la mais comprida.
Haverá mais pratos, mais cadeiras.
Todas as mesas são pequenas se não contam
com todas as estrelas do céu.
Não mata a fome nenhum pão que não repartas.

Está velha, a mesa. Protesta
Chia, range, resmunga
grita, geme, lamenta-se.
Se poisas os cotovelos
se levantas os cotovelos
se estendes a toalha
se tiras a toalha
se lhe sacodes as migalhas,
aqui d'el Rei que a matam!

Vejam. Toda riscada.
toda esfolada.
Os golpes, os rasgões. E sob
a pele fina do contraplacado.
Vemos a pele viva do castanho.
O que não a invalida, notem bem.
Ninguém trabalha melhor do que ela
em questão de talher, de copos, de terrina.
Com a toalha posta
(ou,digamos, depois de maquilhada)
a porcelana de nobreza, os vidros
de bem com a luz, ei-la orgulhosa
da sua condição.

Então a mesa onde se come sofre tanto?
Havendo toalhas de algodão, de plástico,
sem falar da toalha de linho
que sai da arca
quando é Natal?

Como se diz em televisão
a questão
é muito pertinente.
A mesa porventura é desordeira
violenta
acaso andou na guerra?

Não, pobrezinha dela!

Conto em duas palavras.

Quando o meu filho era pequeno
eu comecei a ter
sensivelmente
a mesma idade que ele
nos intervalos das refeições
a mesa transformava-se em mesa de ténis.
Fixava-se a rede ao meio
com uns parafusos
e jogava-se durante todo o dia.
Não é preciso acrescentar mais nada.
E apesar dos riscos
feridas
fendas
cicatrizes
apesar da cabeça andar à roda
a mesa foi feliz.
Raras serão as mesas de sala de jantar
Que têm tanto de vida pra contar.

Escrevo. E enquanto escrevo
os versos não estão quietos
mexem a cabeça de um lado para o outro
seguem o movimento da bola
e o som da raqueta na bola
e o som da bola na mesa
«ora num lado ora noutro».
Divina
esta música!

Para os meus versos, a mesa está sempre nova.
Tem um papel de seda.
Tem o sol,
ora num lado,
ora noutro.

Mário Castrim
(1920-2002)
In "Viagens em Casa"
Editorial Caminho 2011.

Paco Ibañez canta Luis de Góngora . "Y Ríase la Gente"

Luis de Góngora


ANDE EU BEM QUENTE E RIA ESSA GENTE


Tratem outros do governo
do mundo e das monarquias,
que é governo de meus dias
boa manteiga e pão tenro,
e pelas manhãs de inverno
compota, mel, aguardente,
e ria essa gente.

Coma em dourada baixela
o Príncipe mil cuidados,
como pílulas dourados;
que numa mesa singela
eu prefiro uma morcela
que no assador rebente,
e ria essa gente.

Quando cobrir as montanhas
de branca neve Janeiro,
tenha eu cheio o braseiro
de bolotas e castanhas,
e quem as doces patranhas
do Rei que penou comente,
e ria essa gente.

Busque muito em hora amena
o mercador novos sóis:
eu conchas e caracóis
entre a areia mais serena,
escutando Filomena
sobre o choupo da nascente,
e ria essa gente.

Passe à meia-noite o mar
e arda em amorosa chama
Leandro pra ver sua dama;
que eu prefiro atravessar
do golfo do meu lagar
a branca ou rubra corrente,
e ria essa gente.

Já que o Amor é tão cruel
que de Píramo a sua amada
torna tálamo uma espada
onde se unem ela e ele,
Tisbe me seja um pastel,
a espada seja o meu dente,
e ria essa gente.

Luis de Góngora
(1561-1627)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

sábado, 4 de junho de 2011

Daniel Filipe


A INVENÇÃO DO AMOR

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e
detergentes na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa
esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor


Em letras enormes do tamanho do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
e fome de ternura e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
Embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções paras os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos
Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências
O perigo justifica-o
Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas


Fechem as escolas
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste
Inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo
Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros. É absolutamente vital que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio
das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam
ao temor do castigo

Que todos estejam a postos
Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição será movida
nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa

Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância. Está em jogo a cidade o país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas

Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los
É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa nas montanhas

Foi condenado à morte é evidente
É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boîtes com orquestra privativa
Não estarão nunca aí
Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece
A identificação é fácil
Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí
Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa
Um tiro no coração de cada um
Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos e da mulher

Mas ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto
Quer dizer que fostes contagiados Que estais também perdidos para nós
É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte o tiro indispensável
Não há outra saída A cidade o exige
Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja
matai-o Mesmo que tenha comido à vossa mesa e crescido a vosso lado
matai-o Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até ao fim da noite Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável

Procurem a mulher e o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua
No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios Crê-se que a situação vai atingir o climax
e a polícia poderá cumprir o seu dever

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
A voz do locutor definitiva nítida
Manchetes cor de sangue no rosto dos jornais

É PRECISO ENCONTRÁ-LOS ANTES QUE SEJA TARDE

Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado
a vida igual a sempre conversas de negócios
esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de automóveis
Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
ou marinheiro em terra a afogar a distância
no corpo sem mistério da prostituta anónima
Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência um universo do amor
E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los

Importa perguntar em que rua se escondem
em que lugar oculto permanecem resistem
sonham meses futuros continentes à espera
Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
abrigo fraternal deixam correr o tempo
de sentidos cerrados ao estrépito das armas
Que mãos desconhecidas apertam as suas
no silêncio pressago da cidade inimiga

Onde quer que desfraldem o cântico sereno rasgam densos limites entre o dia e a noite E é preciso ir mais longe destruir para sempre o pecado da infância erguer muros de prisão em circulos fechados impor a violência a tirania o ódio

Entretanto das esquinas escorre em letras enormes
a denúncia total do homem e da mulher
que no bar em penumbra numa tarde de chuva
inventaram o amor com carácter de urgência

COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA

Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as saídas encerramos o aeroporto patrulhamos os cais há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de ferro

É na cidade que é preciso procurá-los
incansavelmente sem desfalecimentos
Uma tarefa para um milhão de habitantes
todos são necessários
todos são necessários
Não sem preocupem com os gastos a Assembleia votou um crédito especial
e o ministro das Finanças
tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública


Depois das seis da tarde é proibido circular
Avisa-se a população de que as forças da ordem
atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
depois daquela hora Esta madrugada por exemplo
uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
um marinheiro grego que regressava ao seu navio

Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu
Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso
O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas
do Governo pelo engano cometido
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
Todos compreenderam que não era caso para um protesto diplomático
e depois o homem e a mulher que a policia procura
representam um perigo para nós e para a Grécia
para todos os países do hemisfério ocidental
Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo
que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
sujo insignificante e porventura bêbado


SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA

Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher
Escondidos em qualquer parte da cidade
Repete-se é indispensável encontrá-los
Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante recompensa
destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo
Apela-se para o civismo de todos os habitantes
A questão está posta É preciso resolvê-la para que a vida reentre na normalidade habitual
Investigamos nos arquivos Nada consta
Era um homem como qualquer outro
com um emprego de trinta e oito horas semanais
cinema aos sábados à noite
domingos sem programa
e gosto pelos livros de ficção cientifica
Os vizinhos nunca notaram nada de especial
vinha cedo para casa
não tinha televisão,deitava-se sobre a cama logo após o jantar
e adormecia sem esforço

Não voltou ao emprego o quarto está fechado
deixou em meio as «Crónicas marcianas»perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
à saída do hotel numa tarde de chuva
O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota
Gostava de gatos dizem Mas mesmo isso não é certo
Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência
era bem paga e tinha semana inglesa
passava as férias na Costa da Caparica.

Ninguém lhe conhecia uma aventura
Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
quando o pai sofreu um colapso cardíaco
Não pedia empréstimos na Caixa
Usava saia e blusa
e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu

Esperam por ela em casa: duas cartas de amigas o último número de uma revista de modas a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos Ficou provado que não se conheciam Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva sorriram inventaram o amor com carácter de urgência mergulharam cantando no coração da cidade

Importa descobri-los onde quer que se escondam antes que seja demasiado tarde e o amor como um rio inunde as alamedas praças becos calçadas quebrando nas esquinas

Já não podem escapar Foi tudo calculado
com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco
A policia e o exército estão a postos Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo
(Mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
une fenêtre eclairée).

Daniel Filipe
(1925-1064)
In "A Invenção do Amor e outros Poemas"

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Luis Cernuda


ONDE HABITE O ESQUECIMENTO


Onde habite o esquecimento,
Nos vastos jardins sem madrugada;
Onde eu seja somente
Lembrança de uma pedra sepultada entre urtigas
Sobre a qual o vento foge à sua insónia.

Onde o meu nome deixe
O corpo que ele aponta entre os braços dos séculos,
Onde o desejo não exista.

Nessa grande região onde o mar, anjo terrível,
Não esconda como espada
Sua asa em meu peito,
Sorrindo cheio de graça etérea enquanto cresce a dor.

Além onde termine este anseio que exige um dono à sua imagem,
Submetendo a sua vida a outra vida,
Sem mais horizonte que outros olhos frente a frente.

Onde dores e alegrias não sejam mais que nomes,
Céu e terra nativos em redor de uma lembrança;
Onde ao fim fique livre sem eu mesmo o saber,
Dissolvido em névoa, ausência,
Ausência leve como carne de uma criança.

Além, além, longe;
Onde habite o esquecimento.

Luis Cernuda
(1902-1963)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento

Luís Veiga Leitão


BEL


Hálito de terra depois da chuva:
cálida ternura
aflorando
do lábio

Teu corpo
leveza que pesa
um saber sábio
secreto
da Natureza

Por isso os bichos te amam
em suas falas naturais:
os felinos
os caprinos
e os poetas – bichos marginais

Luís Veiga Leitão
(1915-1987)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"

Joaquin María Bartrina


SE NÃO...


Se não há alma, nem Deus, nem outra vida
depois desta terrena,
- porquê, para quê, quem a este horrível
suplício desta vida nos condena?
Porquê esta aspiração ao infinito
que em mim eu experimento,
não posso dominar, e nela encontro
a par minha esperança e meu tormento?
O pulsar de meu peito fatigado
- é o som do remoinho
ao debaterem-se as asas de um pássaro
que já tenta voar dentro do ninho?

Joaquin María Bartrina
(1850-1880)
Trad. de José Bento
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro"