quarta-feira, 30 de março de 2011

José Gomes Ferreira


XXXVII


(Prega, prega, Voz Solene!)


Homem,
preso pela sombra a todas as pedras,
preso pelos olhos a todas as aves,
preso pelo corpo a todas as raízes,
preso pela sede a todas as fontes:

Olha bem de frente para as algemas,
asas pesadas de frio,
e levanta-te a cantar.

Ah! mas não deixes que nenhum eco
enferruge os teus passos de resignação.

Nem escutes
no tinir das cadeias
sinos de céus arrastados!

Nem te cegues a inventar
nas úlceras dos espartos
sinais de começo de asas.

Que ninguém se iluda de liberdade
nem sangue de grito nos pulsos.

Levanta-te a cantar
-através de pântanos e de rochas
esburacadas de caveira...-
e leva de rastos o mundo
a que te prendem todas as grilhetas
-homem livre que caminhas
amarrado ao Carro da Morte
até o Grande Silêncio.

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
In "Poesia-I" 5ª Edição.
Compugráfica Lisboa 1972.

Miguel Torga


ALENTEJO


A luz que te ilumina
Terra da cor dos olhos de quem olha
A paz que se adivinha
Na tua solidão
Que nenhuma mesquinha
Condição
Pode compreender e povoar!
O mistério da tua imensidão
Onde o tempo caminha
Sem chegar...

Miguel Torga
(1907-1995)
In "Diário XII"
Sousel, 20 de Outubro de 1974.

Miguel Torga


SECURA


Tarde de primavera.
Como quem é do mundo,
Bebo sol e quimera,
E mergulho as raízes mais no fundo.

Vida!
O tutano da terra - seiva!
A semente aquecida
No carinho da leiva!

O que um ser de dois pés sabe dizer!...
Infelizmente, isto de germinar,
Nem se faz a morrer,
Nem se faz a pensar."

Miguel Torga
(1907-1995)
In "Diário I"
Coimbra, 30 de Março de 1938.

domingo, 27 de março de 2011

José Gomes Ferreira


JÁ NÃO É O AMOR DO MUNDO


Já não é o amor do mundo
que me impele contra as grades.
Mas esta dor de vergonha
diante das pedras e das árvores
a acusarem-me de ramos estendidos:
«Eh! cobarde dos pequenos minutos
coroados de pétalas de tédio
nega ao menos o teu destino vil
de morrer em vão!»

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
in "Poesia-I 5ªedição (1972)

sábado, 26 de março de 2011

Gunnar Ekelõf


SNAKEHEAD


Muito se pode dizer acerca do Diabo:
Ele não está morto, está vivo.
Como poderia ele ter sido abolido
por um deus que sempre está ausente?

Ele está presente:
Vê com os teus próprios olhos, vê com os seus olhos.
Pode revelar-se em qualquer parte.
Talvez seja bom, talvez sejas tu
talvez tu sejas mau, mas tu existes:
Então o que é um bem ausente? um mal presente?
Uma força: sempre activa!

Gunnar Ekelôf (Suécia)
(1907-1968)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro"
Trad. de Ana Hatherly.

Marko Rístic


MEMENTO


Nenhum dia sem sangue
Nenhum dia sem sonho
O primeiro e o último
Nenhum dia sem fundo

A noite no fundo do dia
Nenhuma sem manhã
Nenhuma sem vigília
Hoje e amanhã

A neve não cai para matar o mundo
A morte o vai matando
Mas a opressão o vai oprimindo
O mundo não cai para mudar a neve
A chuva o vento a cidade
Outrora ou agora

A não cai para amedrontar você
Da prisão e da armadilha
Da má notícia-insónia
E da manhã-cesto
Cheia de uvas cheia de metal
Cheia de sol cheia de trevas

A treva não cai para lembrar a queda
Sobretudo aquilo que bate e mata
O medo não cai para lembrar a miséria
De tudo aquilo que dói e arde

Cai para todo animal
Mostrar-nos o rastro
No medo na morte na neve

Se é diabo ou demónio
No vale ou na colina

Mundo consciência dia e sonho
Sangue na neve
Neve queda morte e pão
Sangue no pão
Guerra paz irmão e banquete
Sangue no vinho

Nenhuma noite mas que não lembre o dia
Nenhum sonho sem vigília
Nenhum dia sem terror
Nenhuma irmã sem irmão ensanguentado
Nenhuma que consiga não odiar até ao fim

Até o último bocado sangrento de pão
Até o último bocado sangrento de guerra
Até o último golpe de vingança
Até a primeira noite sem morte
Até a primeira manhã sem submissão
E o primeiro dia sem fundo

Marko Rístic (Sérvia)
(1902-1984)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro"
Trad. de Aleksandar Jovanovic

Gabriela Mistral


RIQUEZA

Tenho a ventura fiel
e a ventura perdida:
uma é qual uma rosa,
e a outra como um espinho.
De tudo o que me roubaram
nunca fui despossuída:
tenho a ventura fiel
e a ventura perdida,
e estou tão rica de púrpura
como de melancolia.
Ai, como é amada a rosa
e que amante é o espinho!
Como o duplo contorno
dos frutos que gémeos vivem,
tenho a ventura fiel
e a ventura perdida…


Gabriela Mistral (1889-1957), in "Rosa do Mundo" assírio & Alvim, 2001
Trad. José Bento

La Non Demande en Mariage - Georges Brassens

quarta-feira, 23 de março de 2011

Sebastião da Gama


CANTILENA


Cortaram as asas
ao rouxinol.
Rouxinol sem asas
não pode voar.

Quebraram-te o bico,
rouxinol!
Rouxinol sem bico
não pode cantar.

Que ao menos a Noite
ninguém, rouxinol,
ta queira roubar.
Rouxinol sem Noite
não pode viver.

Sebastião da Gama
(1924-1952)
In "Cabo da Boa Esperança"

segunda-feira, 21 de março de 2011

Agostinho da Silva


(Neste dia dedicado à POESIA)


Eu não quero ter poder
mas apenas liberdade
de falar aos do poder
do que entenda ser verdade.

A quem jamais me dá ordens
faço o que não apeteço
mas sou contra se alguém manda
pois sirvo não obedeço.

O que chamamos verdade
é coerência inventada
por um saber que imagina
que sabe e não sabe nada.

Somos todos parecidos
mas não surgimos a esmo
ser diferente do mundo
é ser igual a si mesmo.

Agostinho da Silva
(1906-1994)
in "Quadras Inéditas"

domingo, 20 de março de 2011

Afonso Duarte


ESTEPA


Desterro dos desterrados,
Meu coração é estepa delicada:
E meu cabelo neva
Sem Pátria, minha amada
Minha amada.

Vou como ovelha tresmalhada
Que viu lobo,
Homem do povo, homem do povo
Que chora em sua Pátria amada.

Sem nada, sem nada.
Sinto-me velho já do meu cansaço;
Sou como o pobre que trabalha a terra
Com o seu braço.

Meu coração é estepa delicada
E a minha alma é louca:
Ah! o heroísmo de cavar a terra
Sem o pão nosso cada dia para a boca!

Afonso Duarte
(1884-1958)

Afonso Duarte


NÃO SOU UM VELHO VENCIDO!


Não sou um velho vencido!
Mesmo à beira da morte
Quero erguer o braço forte
Da razão de ter vivido.

Voz de amor por quanto louvo
Caia-me o coração exangue,
Mas sem traição do meu sangue
Que é a voz do meu povo.

Afonso Duarte
(1884-1958)
In "Lápides"

sábado, 19 de março de 2011

José Gomes Ferreira


LII


Sol!
Porque desenhas com luto
a minha sombra nas pedras?
Pois não vês que já estou farto
deste eterno tropeçar
na noite dos meus passos?

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
in "Poesia-III"

José Gomes Ferreira


L


Ah! como odeio
este sentir-me alheio
a tudo quanto amo
e creio!
Os pobres, o Sonho, o Mundo de Outro Pão...

(E saber que nunca voltam ao ramo
as sombras das folhas no chão!...)

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
in "Poesia-III"

sexta-feira, 18 de março de 2011

Sebastião da Gama


LÍRICA


Sou feio, sou feio...
Quem gosta de mim?

Quebrei os espelhos
e as águas dos lagos
turvei as...
Não gosto de ver me
senão nos espelhos
dos olhos, das falas
dos outros.

As coisas que diz
a gente, sorrindo!...

Sou lindo, sou lindo,
se tu me sorris...

Sebastião da Gama

Sophia de Mello Breyner Andresen


PUDESSE EU...

Pudesse eu não ter laços nem limites
Oh vida de mil faces transbordantes
P'ra poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)

Daniel Filipe


4ª CANÇÃO


Roga por nós, ó pátria, ó sonho sem fronteira!,
por nós, a quem recusam a alegria,
a liberdade, o pão de cada dia
a vida verdadeira!

Ó pátria canta! Do teu presepe imaginário,
ergue a voz dulcíssima, magoada,
e estilhaça de esperança as paredes do aquário,
ó pacífica pomba engaiolada.

Contigo iremos pela noite fora,
cantando.« Erguendo rútilas bandeiras
por sobre aldeias, campos, sementeiras,
como os arcanjos portadores da aurora».

Daniel Filipe
(1925-1964)
In "Pátria Lugar de Exílio"

Daniel Filipe


1ª CANÇÃO


De ti sabes o nome
a hora exacta o martelo no relógio
a escassa visão do tempo novo a vida
sempre imatura e entanto desejada

De ti sabes a calma citadina
a distância entre a casa e o emprego o perfil
da amante
o sabor do café matinal
a maresia súbita

De ti sabes a idade a altura o peso e o vigor
dos músculos a suave atracção
da porta do cinema
a misteriosa voz lunar palavras soltas
gagarine vostov estação espacial

De ti sabes os sinais característicos
quando pode ser escrito medido registado
em fichas passaportes cartões de identidade

Só não sabes da bala da pólvora da arma
só não sabes das mãos como as tuas plebeias
erradas mãos de povo
só não sabes do medo do ódio da terrível impotência

só não sabes da morte antes do tempo
exilado na pátria numa tarde de Maio.

Daniel Filipe
(1925-1964)
In "Pátria Lugar de Exílio"

quarta-feira, 16 de março de 2011

Joaquim Namorado


CÍRCULO VICIOSO


A mim próprio,
passo a passo,
me conquistei,
me libertei
dos grilhões que me prendiam
e dos fantasmas
que em mim viviam.

Agora,
vivo de novo amarrado
e de novo povoado
pelos grilhões que quebrei,
pelos fantasmas que matei.

Joaquim Namorado
(1927-1988)
In "Incomodidade"

terça-feira, 15 de março de 2011

Sebastião da Gama


LEMBRO DISCRETAMENTE O VAGO INSTANTE



Lembro discretamente o vago instante,
no fundo da minh'alma acontecido,
em que todos os que tinham desistido
de não sei que batalhas malogradas,
pegaram novamente nas espadas,
dispostos a vencer ou a morrer...

Sebastião da Gama
(1924-1952)
In "Cabo da Boa Esperança"

Federico Garcia Lorca


A ROSA MUTÁVEL


Quando se abre na manhã,
rubra como sangue está.
O orvalho não a toca
com medo de se queimar.
Aberta à luz do meio-dia
é dura como um coral.
O sol assoma nos vidros
só para a ver rebrilhar.
Quando nos ramos começam
os pássaros a cantar,
e quando a tarde desmaia
nas violetas do mar,
torna-se branca, tão branca
como uma face de sal.
E logo que a noite toca
brando corno de metal,
e as estrelas avançam
enquanto se esconde o ar,
no risco fino da sombra,
começa-se a desfolhar.

Federico Garcia Lorca
(1898-1936)
In "Antologia Poética"
Selecção e tradução de Eugénio de Andrade
(Coimbra Editora,Maio de 1946)

segunda-feira, 14 de março de 2011

Ruy Cinatti


LINHA DE RUMO


Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Encontro-me parado...
Olho em meu redor e vejo inacabado
O meu mundo melhor.

Tanto tempo perdido...
Com que saudade o lembro e o bendigo:
Campo de flores
E silvas...

Fonte da vida fui. Medito. Ordeno.
Penso o futuro a haver.
E sigo deslumbrado o pensamento
Que se descobre.

Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Desterrado,
Desterrado prossigo.
E sonho-me sem Pátria e sem Amigos,
Adrede.

Ruy Cinatti
(1915-1986)

Daniel Filipe


TRESPASSE


Quem tiver sonhos, guarde-os bem fechados
— com naftalina — num baú inútil.
Por mim abdico desses vãos cuidados.
Deixai-me ser liricamente fútil!

Estou resolvido. Vou abrir falência.
(Bandeira rubra desfraldada ao vento:
"Hoje, leilão!") Liquida-se a existência
— por retirada para o esquecimento ...

Daniel Filipe
(1925-1964)
In "O Viajante Solitário"(1951)

Joaquim Namorado


PACIÊNCIA


Paciência lhe disseram,
agora não pode ser.
Paciência, lhe tornaram.
agora não posso dar.
Cem dias de paciência
nem chegam para um jantar.

Joaquim Namorado
(1914-1986)
In "Incomodidade"

domingo, 13 de março de 2011

Luís Veiga Leitão


A ESCRITA:


Filho do povo criado nas alturas
com pinheirais em torno e um vento cru
rachando a solidão das fragas duras
que nos tratam por tu.
Daí
esta sede saibrosa que nos cresta
(nem sei ó meu irmão como tu medras)
Daí
esta fome surda de giesta
comendo a terra das próprias pedras
Filha dos montes que não tem nome
e pastora de um corpo a ver que o rebanho
do tempo breve come.
Um relâmpago a tua formosura.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
in "Dispersas"

José Gomes Ferreira


XXVI

(Derrocada.)

Vale-me orgulho,
ou lá o que és
deste chão peninsular
- e ata-me aos pés
o pedregulho
dos cadáveres hirtos lançados ao mar.

Vem com mãos de metal
endireitar-me a espinha
e ordena que se cale
esta voz a chorar dentro da minha.

Ergue-me da lama onde o o céu atola
os corações dos sapos caídos da lua
e leva-me pela gola
de rua em rua.

Abre
na súplica deste meu olhar de desprezo
um clarão de desafio de sabre
ao mundo em peso.

E dá-me depois um destino de asas pretas
à sombra dos meus passos
- cabeça erguida, a atirar planetas
para os espaços.

Eu, o poeta militante,
que por ódio à dor que se mascara
desci do meu mirante
e vim para a rua de lágrimas na cara.

Não lágrimas de mãos postas
ao luar gemebundo
(a fingir que trago às costas
a dor do mundo)...

...Mas estas - vede -
lágrimas de cicatriz
que correm no sangue da sede
dos homens viris.

Lágrimas que só ostento
para as guardar secretas
(o eterno tormento
de todos os poetas).

Ah! mas que nenhum Sonho, nenhuma Voz me embale
- nem a tua, orgulho, que possuis
a limpidez dum punhal
em mãos azuis.

Não me tragas penugens de regaços
quando me deito,
nem me leves nos braços
para outro leito.

Não me persuadas
do que há nos meus versos palavras de magia
que vão à frente, das lâmpadas atadas,
a iluminarem a morte que nos guia.

Nem me iludas de que posso transformar a Terra
e arrancar os mortos das mortalhas
com os meus versos de tremor de terra
- afinal pássaros de nuvens a cantar nas muralhas,

Não, orgulho. Dá-me apenas esta lâmina de olhos nus
com lágrimas por dentro a rasgarem a realidade
- para poderem ver bem o fel, o suor, o pus
e a solidão da Verdade.

Agora só estes cães nos olhos de quem rilha
o último osso do amor caído de outra mesa...

(Mas ai também de quem é puro
por viver numa ilha
cercada por um muro!
- a pensar na impureza.)

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
In "Poesia III"

António Arnaut


DEIXEM-ME SONHAR


Deixem-me sonhar, à procura
dos sinais ocultos do caminho,
É nas asas do sonho que a loucura
faz o ninho.

Deixem-me ser livre como o vento
sem rumo nem compromisso.
O sonho é o lugar do pensamento
insubmisso.

António Arnaut
In "Miniaturais Outros Sinais"
(Poema 17 pág. 75)
(Livraria Almedina, Coimbra 1987)

José Gomes Ferreira


LIX


Todas as noites toca um telefone na Lua.

Sou eu, sou eu a marcar o número automático dos poetas de hoje
para gritar cá de baixo em código de astros:

Está lá? Está lá? Aqui Terra, zero, zero, zero, zero, zero.
S.O.S.! Fome, ódio de mil patas, tiranos com cutelos de cinzas,
mortos que só vêem o céu através dos caminhos das raízes
- e as mães a baterem nos filhos
para lhes ensinarem a instrução primária das lágrimas.
Aqui escravos, preguiça, azorragues de chumbo derretido,
exportação de tédio dos palácios dos ricos, carregamentos de bocejos,
suor em latas para discursos de demagogos,
mordaças com restos de bocas de cadáveres,
fúria de túmulos, guerra, raptos, incestos, automóveis imbecis,
saques, mandíbulas nos olhos a roerem o azul
- e os dedos de súbito de ferro-em-brasa nos seios das mulheres,
lodo de sol aparente
que continuam a ser deusas nos jantares de cerimónia
com os colos luzidios das horas empertigadas.
Aqui planeta zero, zero, zero, nada, torres de musgo,
punhais a rasgarem noites em vez de chagas,
países de arame farpado, vulcões de sangue,
batalhas trespassadas do frio dos esqueletos concretos
- e ainda por cima a carne das mulheres só é real um momento,
um momento apenas
e em vão tentamos fixá-la com um sopro de frio
no rasto deste defunto com um caixão às costas
cheio de corações vivos.

S.O.S! S.O.S.!

Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
e vinde salvar-nos!

Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos,
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens…
E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!

Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
in "Poesia III"

Luís Veiga Leitão



RESISTÊNCIA

Não. Digo à explosão de ameaça
e à rapada paisagem do desterro.
E não. Digo à minha carcaça
encalhada em bancos de ferro
e ao cordame dos nervos, fustigado,
a ranger no silêncio a sós:
Por cada nervo quebrado
que se inventem mais nós.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Noite de Pedra"

Adolfo Casais Monteiro


MADRUGADA


Ah! Este poema das madrugadas,
que há tanto tempo enrodilhado
num sem-fim de estados de alma
me obcecava, tirânico,
sem se deixar fixar! ...

Madrugada... e esta solidão crescendo,
esta nostalgia maior, e maior, e maior,
de não se sabe o quê
— nunca se sabe o quê...
que haverá nestas horas sozinhas e geladas,
para assim trazer à tona as indefinidas mágoas,
as saudades e as ânsias sem motivo
— de que não sabemos o motivo?...

Vieram as saudades do tempo de menino
— ou dum paraíso lá não sei onde?
Ah! que fantasmas pesaram sobre os ombros,
que sombras desceram sobre os olhos,
que tristeza maior fez maior o silêncio?
A que vem esse calor distante e absorto,
esse calar, esses modos distraídos?
Meu pobre sonhador! a esta hora
porventura se desvenda a Suprema Inutilidade?
e a definitiva ilusão de tantos gestos?

Interroga, interroga...
vai sonhando,
sem que saibas sequer o caminho que segues
vai, distraído e pensativo,
alheio de hoje,
vivendo já o derradeiro segundo...

Que a madrugada tem o pungir das agonias,
mas alheio, como o fim dum pesadelo...

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1072)
In "Poemas dum Tempo Incerto"

sábado, 12 de março de 2011

José Régio


A UM CAMARADA


Se me dás essa mão calosa e deformada,
Aperto-ta na minha, camarada.
Também, do meu labor, sou eu cativo,
E a tinta que me suja a mão é sangue vivo.

Também, na minha testa, há gotas de suor.
Gelado, o meu. Não sei se teu, pior.
Exausto, ao fim do dia, és uma simples besta
Que dorme; e a insónia, a mim, mais me regela a testa.

Com pedra, terra, cal, cimento, ferro, aço,
Povoas ou constróis cidades. O que eu faço
Não se vê tanto! é longe; é lá no escuro
Das teias do passado e do futuro.

Pedem-te os filhos pão, que após sofrer, lutar,
Nem sempre terás tu para lho dar.
E a mim, - canções, fervor, calor contra o seu frio;
E eu finjo encher a mão no coração vazio!

Teu nome, obscuro som, conhecem-no bem poucos.
Mas o meu, como os doutros que tais loucos,
Já sem sentido por demais ouvido,
Pregoam-no os jornais; - e é o dum desconhecido.

Talvez tu, auto-escravo fixo à terra,
Nunca erguesses o olhar ao céu, e ao que ele encerra.
Eu ergo-o; mas, daquela imensidão composta,
Recaio sobre mim num grito sem resposta.

Cumpre-se, em ambos nós, a velha praga...E em breve,
sobre ti, sobre mim, nos seja a terra leve.
Deixa-os, esses que odeiam, entre nós erguer a espada!
Dá-me a tua mão suja e honesta camarada.

José Régio
(1901-1969) in "A Chaga do Lado" (Sátiras e epigramas)
(Portugália Abril de 1956)

José Gomes Ferreira


XXXIV

(Cantámos em redor da Estátua)


Em multidão
os homens parecem maiores do que são.

Nela
a nossa voz,
tão rude quando cantamos sós,
parece mais bela.

Num coro de cantar
sai cá para fora
tudo o que há em nós de sol no luar.

(O resto - os sonhos mesquinhos -
fica para a solidão
dos caminhos.)

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
In "Poesia III"

José Gomes Ferreira


A MINHA SOLIDÃO.



(Durante dias andei ruminar estes versos.)

A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas...

...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

...Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o Calafrio.

...Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas...
- única chama consciente
com boca nas estrelas.

...Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
com o mundo em redor.

...Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.

...Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.

...Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia...
E até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia.

Não. A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar o céu estrelado...

...mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.

José Gomes Ferreira
in "Poesia-III"

Federico Garcia Lorca


ESPANHA!


Não faças caso de lamentos
nem de falsas emoções,
as melhores devoções
são os grandes pensamentos.
E ainda que por momentos
o mal que te feriu se agrave,
ergue-te indómita e brava;
em vez de caires cobarde,
estala em pedaços e arde,
pois antes morta que escrava!

Federico Garcia Lorca
in "Garcia Lorca Antologia Poética"
Selecção e tradução de Eugénio de Andrade
(Coimbra Editora Maio de 1946)

Joaquim Namorado


ULTRAGE AO PUDOR


As mãos dos escultores te modelaram
nua
os pintores te pintaram
nua
os poetas te cantaram
nua
e os homens te amaram simplesmente
nua...

Mas Satanás vestiu-te
e lá tinha as suas razões...

Joaquim Namorado
(1921-1981)
In "Incomodidade"

Amândio César




CAMINHADA



Irmãos!
Não estive nas câmaras de gás,
Nem vi o arame dos campos de concentração.
Fui talvez o último que cheguei,
Mas cheguei

Não vim para banquetes,
Pois nesta hora desfraldada
Só há choros e lutos,
E esperanças, ainda esperanças,
Numa futura caminhada.

Irmãos!
Nós somos talvez dum mundo nôvo
E teremos de construir o mundo nôvo.
Eu sou talvez o último que cheguei
Para os dias do futuro.

Amândio César
(1921-1987)
In "Coração sem Expedientes"

terça-feira, 8 de março de 2011

No "Dia Internacional da Mulher" (Uma singela Homenagem)



É por ti que escrevo que não és MUSA nem DEUSA.


É por ti que escrevo que não és musa nem deusa
mas a mulher do meu horizonte
na imperfeição e na incoincidência do dia-a-dia
Por ti desejo o sossego oval
em que possas identificar-te na limpidez de um centro
em que a felicidade se revele como um jardim branco
onde reconheças a dália da tua identidade azul
É porque amo a cálida formosura do teu rosto
a latitude pura da tua fronte
o teu olhar de água iluminada
o teu sorriso solar
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte
nem a túmida integridade do trigo
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis
para a oferenda do meu sangue inquieto
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol
que quer resplandecer em largas planícies
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso.

António Ramos Rosa
In "O Teu Rosto"

Paco Ibañez canta León Felipe. "Como Tú"

León Felipe


TALVEZ ME CHAME JONAS


Não sou ninguém:
um homem com um grito de estopa na garganta
e uma gota de asfalto na retina.
Não sou ninguém. Deixai-me dormir!
Mas às vezes ouço um vento de tormenta que me grita:
«Levanta-te, vai a Ninive, cidade grande, e brada contra ela.»
Não faço caso, fujo pelo mar e deito-me a dormir no canto mais escuro da nave,


até que o Vento teimoso que me segue
volte a gritar-me outra vez:
«Dorminhoco, que fazes aí? Levanta-te.»
-Não sou ninguém:
um cego que não sabe cantar. Deixai-me dormir!
E alguém, esse Vento que busca um funil de trasfega, diz junto mim, dando-me com o pé:
«Aqui está; farei um trombeta com este cone de metal velho e vazio;
por ele meterei minha palavra e encherei de vinho novo a velha cuba do mundo. Levanta-te!»


- Não sou ninguém. Deixai-me dormir!
Mas um dia lançaram-me ao abismo,
as águas amargas cercaram-me até à alma,
a ulva enredou-se na minha cabeça,
cheguei até às raízes dos montes,
a terra lançou sobre mim suas fechaduras para sempre...
(Para sempre?)
Quero dizer que estive no inferno...
De lá trago a minha palavra.
e não canto a destruição:
apoio a minha lira na crista mais alta deste símbolo...
Sou Jonas.

León Felipe
(1884-1968)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

León Filipe


SEI TODAS AS HISTÓRIAS.


Eu não sei muitas coisas, é verdade.
Apenas falo do que tenho visto.
E já vi:
que o berço do homem o embalam com histórias,
que os gritos de angústia do homem os afogam com histórias,
que o pranto do homem o tapam com histórias,
que os ossos do homem os enterram com histórias,
e que o medo do homem...
inventou todas as histórias.
Sei muito poucas coisas, é verdade,
mas adormeceram-me com todas as histórias...
e sei todas as histórias.

León Felipe
(1884-1968)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Fernando Echevarria


ESTRELA


Tu. Tu de luz. Agressivo
ponto de amor. Rompes lábios
celestes. E ninguém sabe os
limites de ti. Que vivo
longe arrastas a presente,
com tal paixão, que se sente
o teu coração aqui.
Coração que os beijos mordem
com tal vento de desordem
que os lábios chegam a ti.

Fernando Echevarria
in "Tréguas para o Amor"

Eugénio de Andrade


RETRATO


No teu rosto começa a madrugada.
Luz perfeita,
abrindo como uma rosa
transparente e molhada.

Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
casta, fresca e madura.

Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma!

Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "Os Amantes sem Dinheiro"

Eugénio de Andrade


TU ÉS A ESPERANÇA...


Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de Setembro,
quando a luz é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundos, como quem bebe a madrugada.

Eugénio de Andrade
(1923-2oo5)
in "As Mãos e os Frutos"

domingo, 6 de março de 2011

Ferreira Guedes


POEMA DE AGRADECIMENTO

(Para Bertrand Russel)

Cala a espingarda, irmão
é um companheiro que se perde
em cada bala, como nós
tão puro e tão jovem
Cala a espingarda

Cala a espingarda, irmão
não cubras de sangue o rosto
e tua esperança de ódio
quando já o coração floresce
Cala a espingarda

Cala a espingarda, irmão
longe, tua noiva espera
que lhe leves apenas
uma flor nas mãos
Cala a espingarda

Ferreira Guedes
In "De Palavra em Punho"
(Antologia Poética da Resistência de Fernando Pessoa ao 25 de Abril)

Sophia de Mello Breyner Andresen


PARTIDA

I


Como uma flor incerta entre os teus dedos
Há a harmonia dum bailar sem fim,
E tens o silêncio indizível dum jardim
Invadido de luar e de segredos.

II

Nas tuas mãos trazias o meu mundo.
Para mim dos teus gestos escorriam
Estrelas infinitas, mar sem fundo
E nos teus olhos os mitos principiam.

Em ti eu conheci jardins distantes
E disseste-me a vida dos rochedos
E juntos penetrámos nos segredos
Das vozes dos silêncios dos instantes.

III

Os teus olhos são lagos e são fontes,
E em todo o teu ser existe
O sonho grave, nítido e triste
De uma paisagem de pinhais e montes.

Na tua voz as palavras são nocturnas
E todas as coisas graves, grandes, taciturnas
A ti são semelhantes.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
In "Dia do Mar"

Sophia de Mello Breyner Andresen



LUAR

O luar enche a terra de miragens
E as coisas têm hoje uma alma virgem,
O vento acordou entre as folhagens
Uma vida secreta e fugitiva,
Feita de sombra e luz, terror e calma,
Que é o perfeito acorde da minha alma.


Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
In "Obra Poética)

Sophia de Mello Breyner Andresen



AUSÊNCIA

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia Mello Breyner Andresen
(1919-2004)

Bocage


O ELEFANTE E O BURRO

No tempo em que ainda falavam
Os animais como a gente,
É tradição que tiveram
Conferência em caso urgente.

O burro, que não sei como
Se introduziu no conselho,
Quis, fingindo-se estadista,
Também meter o bedelho.

E, num tom que diferia
Bem pouco do que hoje é zurro,
Foi revolvendo a questão:
Discreteou como um burro.

Depois de lhe ter ouvido
Alguns conceitos de arromba
O carrancudo elefante
Lhe disse, torcendo a tromba:

«Esse tempo que tens gasto
Inutilmente a chamar,
Insensato, não podias
Aproveitá-lo em pastar?

Vens afectar eloquência,
Animal servil e abjecto!
Um tolo nunca é mais tolo
Que quando quer ser discreto».

Bocage
(1765-1805)

sábado, 5 de março de 2011

António Gedeão


DESENCONTRO


Que língua estrangeira é esta
que me roça a flor do ouvido,
um vozear sem sentido
que nenhum sentido empresta?
Sussurro de vago tom,
reminiscência de esfinge,
voz que se julga, ou se finge
sentindo, e é apenas som.
Contracenamos por gestos,
por sorrisos por olhares
rodeios protocolares,
cumprimentos indigestos,
firmes aperto de mão,
passeio de braço dado,
mas por som articulado,
por palavras, isso não.
Antes morrer atolado
na mais negra solidão.

António Gedeão
(1906-1997)

sexta-feira, 4 de março de 2011

Luís Veiga Leitão


ACRE E DURA CARNE



Pátria onde nasci Desespera
vê-la tão seca na matriz
Acre e dura carne (austera)
no coração do meu país

Flor de saibro O rosto mole
vem da névoa cega e fria
Rastros de carro do sol
carregando o corpo do dia

Ondas de pedra –a fúria nos arcos
da voz: Morda aguente e fique!
E os pinhais –cascos de barcos
que navegaram a pique

Mentira o Fado que se toca:
Na pedra mais pedra mais secreta
abre-se e rasga-se uma boca
onde um pássaro canta e dejecta

Lá a cabra o vento o poeta
naturais de alma e corpo ao léu
trazem nos ventres o demo
e à flor dos cornos o céu

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"

quinta-feira, 3 de março de 2011

Amândio César


QUE HORA É ESTA?


É em vão que o sol doira
As asperezas da terra:
Secou na seara loura
Toda a esperança que ela encerra.

Baldadas todas as horas,
Todos os passos sem fim:
Murchou de vez o alecrim,
Secaram roxas amoras.

É quente a água das fontes,
Escalda o sangue nas veias:
São de fogo os grãos de areias
E as pragas negras dos montes.

Para quê lutar ainda
Numa luta sem sentido?
Sofre-se por se ter sofrido
Estas angústia que não finda.

Angústia que sobe à boca
Que amarga como a amargura
-Existência mal segura,
Fazenda que mal dá roupa.

Cansaram-nos assim de tudo,
Todos nos pesam de mais
-Os poetas são jograis
E o seu cantar quase mudo.

Amândio César
(1921-1987)
In "As Margens da Memória"