segunda-feira, 15 de julho de 2013

 COMUNICADO


Falta um combate ainda, o decisivo.
Ganhei quantos perdi, porque resisto.
Mesmo cansado e mutilado, existo,
Num vitalismo cósmico ostensivo.

Filho da Terra, minha mãe amada,
É ela que levanta o lutador caído.
Anteu anão,
Toco-lhe o coração,
E ergo-me do chão
Fortalecido.

Mas há fúrias hercúleas contra mim:
O tempo, a morte, e o próprio desencanto
De viver...
Pode, porém, ainda acontecer
Que, mesmo nessa hora, a consciência
Negue, de frente, a própria violência
Que me vencer...


Miguel Torga
(1907-1995)

domingo, 14 de julho de 2013


 FLOR DA LIBERDADE


Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós… Também nós… E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
A sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
Ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.

Sepultos insepultos,
Vivos amortalhados,
Passados e presentes cidadãos:
Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!
E essa flor que nunca desespera
No jardim da perpétua primavera.

Miguel Torga
(1907-1995)

sexta-feira, 12 de julho de 2013

 CARTA

Há muito tempo, sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesma envelhecí: olha em relevo
estes sinais em mim, não das carícias


(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a tua menina, que a sol-posta
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes é tanta
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

E quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.


Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
 AVE DA ESPERANÇA


Passo a noite a sonhar o amanhecer.
Sou a ave da esperança.
Pássaro triste que na luz do sol
Aquece as alegrias do futuro,
O tempo que há-de vir sem este muro
De silêncio e negrura
A cercá-lo de medo e de espessura
Maciça e tumular;
O tempo que há-de vir - esse desejo
Com asas, primavera e liberdade;
Tempo que ninguém há-de
Corromper
Com palavras de amor, que são a morte
Antes de se morrer. 


Miguel Torga
(1907-1995)