sábado, 27 de abril de 2013

 HOMEM DIANTE DO MAR


É como eu, sinto a angústia e o sangue.
Sublime na tristeza, segue em direcção ao mar,
para que o sol e o vento possam mitigar a sua agonia.
Sereno jaz o rosto, e o coração em ruínas
quer viver ainda para morrer mais.

É como eu, vejo com os olhos extraviados.
Procura a guarida da noite marinha,
arrasta também a consumida parábola de um voo
sobre o velho coração.

Segue vestido com a solidão nocturna.
As mãos suspensas sobre o frémito oceânico,
suplica ao tempo marinho que o liberte
do golpe sem tréguas a agitar
o seu velho coração repleto de sombras.

Sinto como se ele fosse o meu retrato
moldado pela cólera eterna
de um mar interior. Sublime na tristeza
tenta, em vão, não calcinar a areia
com o ácido amargo das suas lágrimas.

É como se fosse meu
o seu velho coração repleto de sombras.

Hérib Campos Cervera
(Paraguai)

(1905-1953)
Trad. de Jorge Henrique Bastos.
 EU VENHO DO OUTRO LADO


Eu venho do outro lado
Eu venho do outro lado e não tenho memórias
Nasci como os mortais, eu tenho uma mãe.
E uma casa com muitas janelas,
Tenho irmãos, amigos.
E uma cela com uma janela fria.
Minha é a onda, quebrada pelas gaivotas,
Tenho minha própria visão,
E uma muda extra de grama.
Minha é a lua no limite distante das palavras,
E a recompense dos pássaros,
E da imortal oliveira.
Eu caminhei por este continente antes das espadas
Tomarem o corpo vivente das sagradas escrituras.
Eu venho do outro lado. Represento o céu exteriorizado em sua mãe
Quando o céu a martiriza
Quando me puno para meu próprio aprendizado.
Para uma nuvem retornando.
Eu aprendi todo o valor das palavras no galanteio do sangue
Então eu pude exceder a regra.
Eu aprendi que todas as palavras se sacrificam
Para formar uma única palavra: pátria…


Mahmud Darwisk
(1941-2008)
Trad. de Fábio Vieira.

terça-feira, 23 de abril de 2013

A CORAGEM


No sofrimento, o muito que aprendemos
nunca mais deixará esta bagagem
que levamos, agora que sabemos
qual é a cor dos olhos da coragem.

Por tudo, tudo aquilo que perdemos
na voragem dos monstros, na voragem
cruel, a liberdade que hoje temos
vem compensar os gastos da viagem.

Viagem  longa e por caminhos falsos,
com ciladas, e a dor dos pés descalços,
e calúnias, e mortes tantas vezes.

Nos olhos da coragem descobrimos
com quantos sacrifícios conseguimos
devolver Portugal aos portugueses.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "26 Sonetos"
Lisboa 1979.


LEVAI-ME POR PIEDADE ONDE A VERTIGEM
 

Levai-me por piedade onde a vertigem
com a razão me arranque a memória.
Por piedade! Tenho medo de ficar
com a minha dor a sós!


Gustavo Adolfo Bécquer
(1825-1870) 

domingo, 21 de abril de 2013

NO SILÊNCIO VAZIO


No silêncio vazio
que o medo impõe à vida
corre um estranho arrepio.
Vozes uivam de cio
na noite corrompida.

Porque choram as rosas?
Porque choram os cravos?
Noite, que mortes gozas
onde acabam chorossas
as esperanças dos bravos?

Quem viu rosas doridas?
Quem viu cravos chorando?
Nem com milhões de vidas
sarariam as feridas
que em nós estão sangrando.

De cada sombra espreita
o ódio frio e fero.
Quem à dor se sujeita
torna a vida mais estreita
que a suspeita de um zero.

não chores, esperança, o rumo
que o chão te subverteu.
Ergue-te, voz, a prumo.
Raiva, some-te em fumo.
Rasga, sonho, o teu véu.


Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "A Esperança Desesperada"
Coimbra 1948.

sábado, 20 de abril de 2013

INSTRUÇÃO PRIMÁRIA

Não saibas: imagina…
Deixa falar o mestre, e devaneia…
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.

Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões…
Um á-bê-cê secreto
Que soletras à margem das lições…

Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia...

Miguel Torga 
(1907-1995)

sexta-feira, 19 de abril de 2013

 DA MANEIRA MAIS SIMPLES.


É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Ás vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.


Eugénio de Andrade
(1923-2005)
COM SAL E SOL, EU ESCREVO


Escrevo no meio de tantas derrocadas,
tantas ruínas, tanto desespero,
mas também tanta esperança renovada,
tantos jovens que, no meio do desencanto,
mantêm a pureza das cascatas,
tantas crianças que são a primavera
que chegará um dia e ficará
no coração da terra, quantas vezes
mutilada, humilhada por aqueles
que trazem a ganância no seu sangue.
Com sol e sal eu escrevo.
E todos juntos vamos transformar,
com tudo o que nós temos de coragem,
este mundo idiota
que envia flores aos mortos
e atira pedradas aos vivos.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Com Sol e Sal, Eu Escrevo"
O VOO CONTRA O VENTO


Para voar não basta equipamento,
não basta equipamento e equipagem,
qualquer invento que enfrentar o vento
enfrenta o vento se tiver coragem.

Se não tiver deixou de ser invento,
ou fica invento e não será viagem,
viagem contra o vento é portento
de quem fez o invento à sua imagem.

Lá no fundo do voo, bem no fundo,
lá onde as praias dos confins do mundo
se espraiam numa doce claridade

a liberdade aguarda o viajante,
o que era longe já não é distante
e o viajante alcança a liberdade.

Sidónio Muralha
(1920-1982) In "26 Sonetos"
Lisboa 1979.

AS SOMBRAS ARMADAS


As sombras armadas
traçando no escuro
armadilhas cerradas
com grades cruzadas
e paredes de muro

vigiam caladas
o nosso futuro

João Apolinário
(1924-1988)
In "O Guardador de Automóveis"
Edição de 29 de Dezembro de 1956.




SERENIDADE


Quando ponho os olhos nas coisas,
quando a mim mesmo me  observo,
não é uma paz impossível que procuro,
mas a explicação universal de cada tumulto,
o repouso, na ferocidade inconsciente do mundo,
desta aspiração que me queima
de uma impossibilidade que nunca poderei sentir.

Odeio e amo com a mesma naturalidade
com que as pedras caem para baixo
e não para cima,
com que cada vida caminha para a morte
e indiferentes à morte outras vidas começam
para caminharem para a morte por sua vez.

Odeio e amo e ainda bem
que não sou capaz só de amor ou só de ódio,
que não me deixariam ver o aspecto verdadeiro
de uma natureza caótica que não escolhi
mas é a única
 em que a minha vida fugaz decorre.

Ainda bem que sou capaz de analisar  tudo
e a desordem da vida me agrada
mesmo quando, por mais esforços que faça,
não vislumbro nela
 nem uma imitação de harmonia.

Assim, a compreensão de cada tragédia,
de cada riso,
de cada monstruosidade,
de cada pavor,
não são para mim uma simples curiosidade,
nem um abismo de que me debruço perversamente,
mas apenas uma necessidade
que a minha presença me impõe,
idêntica à de beber água quanto tenho sede.

Bem vejo que a vida é breve e quando se se chega
ao fim e se repara nos erros cometidos,
já não há remédio senão cruzar os braços,
porque o passado ficou irremediàvelmente  para trás.

Bem vejo que a vida é uma aventura
que maior parte das vezes só traz
desilusões, lágrimas, perplexidades.
Mas é a única oportunidade
que cada um de nós tem
no imenso desdobrar dos séculos implacáveis.



Não serve para nada para além de nós.
Mas visto que é assim
e não pode ser de outro modo,
ainda mais alegremente atiro
a minha voz para o fragor
das  outras vozes e das tempestades,
e quero que o mundo pareça cada vez mais amplo
 e cada vez mais claro a todos os olhos.

Toda a experiência feita de suor, de lágrimas,
de combates perdidos, de rumos errados,
que cada um acumula no decurso da vida,
cada um a perde no mesmo tempo
que a última palavra lhe cai dos lábios
como um fruto bichoso que o vento arranca.
Mas o mundo persiste e nele fica
mais uma certeza para os outros homens.

E o amor intenso de uma nitidez cada vez maior,
a curiosidade dos horizonte fechados ainda,
a exaltação das mãos estendidas
fraternalmente umas para as outras,
o ódio feroz da injustiça,
continuam a arder nos corações,
com a mesma inutilidade cósmica,
mas com o mesmo entusiasmo que faz
de cada momento uma eternidade.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "A Esperança Desesperada"
Edição do autor. Coimbra 1948.