segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ruy Belo


SONETO SUPERDESENVOLVIDO


É tão suave ter bons sentimentos,
consola tanto a alma de quem os tem,
que as boas acções são inesquecíveis momentos
e é um prazer fazer o bem.


Por isso, quando no Verão se chega a uma esplanada
sabe melhor dar esmola que beber a laranjada,
consola mais viver entre os muito pobres
que conviver com gente a quem não falta nada.


E ao fim de tantos anos a dar do que é seu,
independentemente da maneira como se alcançou,
ainda por cima se tem lugar garantido no céu,
gozo acrescido ao muito que se gozou.


Teria este ... se não tivesse outro sentido,
ser natural de um país subdesenvolvido.

Ruy Belo
(1933-1978)

Sophia de Mello Breyner Andresen


TÚMULO DE LORCA


Em ti choramos os outros mortos todos
Os que foram fuzilados em vigílias sem data
Os que perdem seu nome na sombra das cadeias
Tão ignorados que nem sequer podemos
Perguntar por eles imaginar seu rosto
Choramos sem consolação aqueles que sucumbem
Entre os cornos da raiva sob o peso da força

Não podemos aceitar. O teu sangue não seca
Não repousamos em paz na tua morte
A hora da tua morte continua próxima e veemente
E a terra onde abriram a tua sepultura
É semelhante à ferida que não fecha

O teu sangue não encontrou nem foz nem saída
De Norte a Sul de Leste a Oeste
Estamos vivendo afogados no teu sangue
A lisa cal de cada muro branco
Escreve que tu fostes assassinado

Não podemos aceitar. O processo não cessa
Pois nem tu fostes poupado à patada da besta
A noite não pode beber nossa tristeza
E por mais que te escondam não ficas sepultado

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)

Sophia de Melloo Breyner Andresen


CIDADE DOS OUTROS

Uma terrível atroz imensa
Desonestidade
Cobre a cidade

Há um murmúrio de combinações
Uma telegrafia
Sem gestos sem sinais sem fios

O mal procura o mal e ambos se entendem
Compram e vendem

E com um sabor de coisa morta
A cidade dos outros
Bate à nossa porta

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)

domingo, 28 de novembro de 2010

Jorge de Sena


QUEM MUITO VIU...


Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo de justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi -

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

Jorge de Sena, "Peregrinatio ad loca infecta"
(1919-1978)

sábado, 27 de novembro de 2010

Manuel da Fonseca


NOITE DE SONHOS VOADA

Noite de sonhos voada
cingida por músculos de aço,
profunda distância rouca
da palavra estrangulada
pela boca armodaçada
noutra boca,
ondas do ondear revolto
das ondas do corpo dela
tão dominado e tão solto
tão vencedor, tão vencido
e tão rebelde ao breve espaço
consentido
nesta angústia renovada
de encerrar
fechar
esmagar
o reluzir de uma estrela
num abraço
e a ternura deslumbrada
a doce, funda alegria
noite de sonhos voada
que pelos seus olhos sorria
ao romper de madrugada:
— Ó meu amor, já é dia!...

Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos"
(1911-1993)

Walt Whitman


VIDA

Sempre a indesencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.

Walt Whitman, in "Leaves of Grass"
(1819-1892)

José Gomes Ferreira


HOMENS DO FUTURO



ouvi, ouvi este poeta ignorado
que cá de longe fechado numa gaveta
no suor do século vinte
rodeado de chamas e de trovões,
vai atirar para o mundo
versos duros e sonâmbulos como eu.
Versos afiados como dentes duma serra em mãos de injúria.
Versos agrestes como azorragues de nojo.
Versos rudes como machados de decepar.
Versos de lâmina contra a Paisagem do mundo
— essa prostituta que parece andar às ordens dos ricos
para adormecer os poetas.

Fora, fora do planeta,
tu, mulher lânguida
de braços verdes
e cantos de pássaros no coração!

Fora, fora as árvores inúteis
— ninfas paradas
para o cio dos faunos
escondidos no vento...

Fora, fora o céu
com nuvens onde não há chuva
mas cores para quadros de exposição!

Fora, fora os poentes
com sangue sem cadáveres
a iludiremos de campos de batalha suspensos!

Fora, fora as rosas vermelhas,
flâmulas de revolta para enterros na primavera
dos revolucionários mortos na cama!

Fora, fora as fontes
com água envenenada da solidão
para adormecer o desespero dos homens!

Fora, fora as heras nos muros
a vestirem de luz verde as sombras dos nossos mortos sempre
de pé!

Fora, fora os rios
a esquecerem-nos as lágrimas dos pobres!

Fora, fora as papoilas,
tão contentes de parecerem o rosto de sangue heróico dum
fantasma ferido!

Fora, fora tudo o que amoleça de afrodites
a teima das nossas garras
curvas de futuro!

Fora! Fora! Fora! Fora!

Deixem-nos o planeta descarnado e áspero
para vermos bem os esqueletos de tudo, até das nuvens.
Deixem-nos um planeta sem vales rumorosos de ecos úmidos
nem mulheres de flores nas planícies estendidas.
Uma planeta feito de lágrimas e montes de sucata
com morcegos a trazerem nas asas a penumbra das tocas.
E estrelas que rompem do ferro fundente dos fornos!
E cavalos negros nas nuvens de fumo das fábricas!
E flores de punhos cerrados das multidões em alma!
E barracões, e vielas, e vícios, e escravos
a suarem um simulacro de vida
entre bolor, fome, mãos de súplica e cadáveres,
montes de cadáveres, milhões de cadáveres, silêncios de cadáveres
e pedras!

Deixem-nos um planeta sem árvores de estrelas
a nós os poetas que estrangulamos os pássaros
para ouvirmos mais alto o silêncio dos homens
— terríveis, à espera, na sombra do chão
sujo da nossa morte.

José Gomes Ferreira
(1900-1985)

Miguel Torga


SOLIDÃO

Só, como a fonte no areal sem vida.
Só, como o sol no céu deserto.
Só, de cabeça erguida,
Humanamente certo.

Só, a nascer, a ser e a morrer,
Recto como um pinheiro que brotou
E cresceu e caiu, sem se torcer
Ao tempo vário que por ele passou.

Miguel Torga
Coimbra, 27 de Junho de 1944
in "Diário III"

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Angél González


DIA DE ANOS

Noto isto: estou a ficar
menos certo, confuso,
dissolvendo-me no ar
quotidiano, tosco
girão de mim, desfiado
e roto pelos punhos.

Compreendo: vivi
um ano mais, e isso é bem duro.
Mover o coração todos os dias
quase cem vezes por minuto!

Para viver um ano é necessário
muitas vezes morrer muito.

Angél González
(1925-2008)
Tradução de José Bento.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Miguel Torga


SINA

Avivo na memória
A longa trajectória
Da minha vida,
Curva dum penitente
Impenitente
Que renega à chegada
Inconformada
A hora involuntária da partida.

O que pode um mortal!
Desafiar anos a fio o natural,
Por teimosia,
Rebeldia
E brio,
A saber
Que o destino é morrer
No fim do desafio...

Miguel Torga
Coimbra, 16 de Março de 1983
in "Diário XIV"

Miguel Torga


MEDIDA


Jogo contra o destino.
Cada minuto, cada desafio.
Livre neste baldio
Da liberdade humana,
Arrisco a consciência dos meus actos
Na roleta da sorte.
O triunfo e a derrota não me importam.
Nenhum triunfo vale o sol que o doira,
E nenhuma derrota o é na morte
Que temos certa.
Quero apenas fazer a descoberta
Do que posso e não posso,
Sem poder nada.
Aprendo a conhecer o meu tamanho
Pela maneira como perco ou ganho.

Miguel Torga
Coimbra, 9 de Dezembro de 1958
in "Diário VIII"

Miguel Torga


CEIFEIRA


Acendo a luz da coragem
E dou luz ao que pareces,
Mulher que nunca pariste!
Já que ninguém te resiste,
Que te resista a verdade.
Que seja ela a mostrar
Que lucidez pode olhar
O teu nome de alvaiade.

Tens o nome de ceifeira,
E afrontas esse nome
De sol, suor e fartura.
Sujas o chão da planura,
Só a mover a gadanha.
E a jorna de terror
Que te paga o lavrador,
É roubada, não é ganha!

Ceifas a seara humana,
E não cantas a ceifar!
Fica o restolho a chorar
Quando um resto de pragana
Te segue pelos outeiros...
Mas levas mortos contigo!!!
E enches os teus celeiros
da podridão desse trigo!!!

Miguel Torga
Chaves, 27 de Setembro de 1967
in "Diário X"

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Jorge Guillén


FILHA PEQUENA


Não,não vale esse pranto.
A dar a sua poesia a Criação começa.
Tu cresces! E com tanto
Paraíso em teu espírito que a natureza
Só é um jardim: teu encanto.

Graça tão imediata
De manancial,
de luz com ímpeto de aurora,
De alvorada invasora,
De ramo com orvalho-cresces!-não enamora.
Mais, mais, mais: arrebata!

Jorge Guillén
(1893-1984)
Tradução de José Bento.

Wilfred Owen


CÂNTICO DA JUVENTUDE CONDENADA


Que sinos dobram por estes que morrem como gado?
-Apenas a monstruosa ira das armas.
Apenas o estrépito veloz do gaguejar das espingardas
Lhes pode recitar maquinalmente apressadas preces.
Por eles não há agora motejo; nem orações nem sinos,
Nem nenhuma voz de pranto a não ser a dos coros-
Coros estridentes e loucos de granadas lastimando-se;
E clarins reclamando-os em terras tristes.

Que velas se poderão acender para os apressar a todos?
Não nas mãos dos rapazes, mas nos seus olhos
Brilharão os sagrados lampejos das despedidas.
Os rostos pálidos das raparigas são as suas mortalhas;
As suas flores, a ternura de mentes resignadas,
E cada lento anoitecer um cerrar de persianas.

Wilfred Owen
(1893-1918)
Tradução de Cecília Rego Pinheiro.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Mercedes Sosa

João Melo


LÍRICA XVI


Sou o melhor guerreiro da aldeia
A minha lança é temida
por sua infalível pontaria
A carne mais fresca e saborosa
eu a trago pela manhã
sobre a minha cabeça
coroada de sol
Os inimigos respeitam a minha fama,
os amigos a propagam
Mas tantos poderes
-apaixonado e fraco
eu os derramo a teus pés

João Melo
in "Cântico da terra e dos homens"

João Melo


NA QUEDA DO ADOBE


Vimos todos como o adobe caiu:
o cimento armado tomou-o por trás
Até os batuques desapareceram
Foi de facto impossível salvá-los...
E como vamos agora chorar?

João Melo
in "Cântico da terra e dos homens"

João Melo


ARTE POÉTICA 72


A minha poesia é angolana ferozmente

Escrevo com medo e raiva
E força e ritmo e alegria

Escrevo com fogo e com terra

Escrevo sempre como se comesse
funje com as mãos

mesmo quando utilizo
garfo e faca.

João Melo
in "Cântico da terra e dos homens"

domingo, 21 de novembro de 2010

Alfonso Costafreda


NÃO HÁ OUTRA FORMA DE VIVER


Para alcançar a liberdade não duvides
em desprender-te de todos e de tudo.
Vida que se soubesse à beira do abismo.
Perderás tudo,
e embora te percas a ti mesmo,
náufrago serás e luz do dia.

Alfonso Costafreda
(1926-1974)
Tradução de José Bento.

Angél González


TODOS VOCÊS PARECEM FELIZES...


...e sorriem, às vezes, quando falam.
E até dizem uns aos outros
palavras
de amor. Mas
amam-se
de dois em dois
para
odiar de mil
em mil. E guardam
toneladas de asco
por cada
milímetro de felicidade.
E parecem-nada
mais que parecem-felizes,
e falam
com o fim de ocultar essa amargura
inevitável, e quantas
vezes não o conseguem, como
não posso ocultá-la
por mais tempo: esta
desesperante, estéril, longa
cega desolação por qualquer coisa
que- não sei por onde-lentamente me arrasta.

Angél González
(1925-2008)
Tradução de José Bento.

Lorenzo Gomis


UM HOMEM ENTRE OS RAMOS


Um homem subiu a uma árvore para colher um fruto.

O fruto estava em cima, muito em cima, no alto.

O homem não chegava, o homem
não chegou.

Desde então,
há um homem na árvore,
um homem entre os ramos.

Ninguém sabe o que busca.

Lorenzo Gomis
(1924-2005)
Tradução de José Bento

Carlos Tê


O QUE EU QUERO SER QUANDO FOR GRANDE

Andava eu na quarta classe e fiz uma redacção
sobre o que eu queria ser um dia quando crescesse

Quero ser um marinheiro, sulcar o azul do mar
vaguear de porto em porto até um dia me cansar
quero ser um saltimbanco, saber truques e cantigas
ser um dos que sobe ao palco e encanta as raparigas

A sessôra chamou-me ao quadro e deixou-me descomposto
Ò menino atolambado, que gracinha de mau gosto

Lá fiz outra redacção, quero ser um funcionário
ser zeloso, ter patrão, deitar cedo e ter horário
ser um barquinho apagado sem prazer em navegar
humilde, bem comportado, sem fazer ondas no mar

A sessôra bateu palmas e deu-me muitos louvores
apontou-me como exemplo e passou-me com quinze valores

Carlos Tê

Adolfo Casais Monteiro


ACTO DE CONTRIÇÃO


Pelo que não fiz, perdão!
Pelo tempo que vi, parado,
correr chamando por mim,
pelos enganos que talvez
poupando me empobreceram,
pelas esperanças que não tive
e os sonhos que somente
sonhando julguei viver,
pelos olhares amortalhados
na cinza de sóis que apaguei
com riscos de quem já sabe,
por todos os desvarios
que nem cheguei a conceber,
pelos risos, pelas lágrimas,
pelos beijos e mais coisas,
que sem dó de mim malogrei


— por tudo, vida, perdão!

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)

Adolfo Casais Monteiro


O FIM DA NOITE

A nossa história é simples: somos
neste momento todo o amor na terra
e nada mais importa, senão
o que sou, verdade em ti,
o que és, verdade em mim.
Por isso este poema talvez não seja
mais que um silêncio pela noite,
nem verso, nem prosa, só
uma oração ao deus desconhecido.

Não é talvez senão o teu olhar,
e tua esquiva mágoa,
o teu riso e tuas lágrimas.
E o apelo dentro de mim
ao milagre de nos querermos,
com a mágoa e com o riso,
- e teu olhar que vê em mim.

Não sei pedir, sei só esperar.
Mas já houve o milagre. Estava
agora comigo ao longo das ruas, que antes
eram só casas de pálpebras cerradas.
Estava no silêncio, que antes
era mortal.

E tu, sem eu saber, estavas comigo.
E sem eu saber de súbito na treva
buliram asas
e sem eu saber era já dia.

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)

Rudyard Kipling


SE


Se tu podes impor a calma, quando aqueles
Que estão ao pé de ti a perdem, censurando
A tua teimosia nobre de a manter.

Se sabes guardar sem ruga e sem cansaço.
Privar com Reis continuando simples,
E na calúnia não recorres à infâmia
Para com arma igual e em fúria responder,
- Mas não aparentar bondade em demasia
Nem presumir de sábio ou pretender
Manifestar excesso de ousadia, -

Se o sonho, não fizer de ti um escravo
E a luz do pensamento não andar
Contigo no domínio do exagerado,

Se encaras o triunfo ou a derrota
Serenamente, firme, e reforçado
Na coragem que é necessário ter
Para ver a verdade atraiçoada,
Caluniada, espezinhada, e ainda
Os nossos ideais por terra. - Mas erguê-los
De novo em mais profundos alicerces
E proclamar com alma essa Verdade!,

Se perdes tudo quanto amealhaste
E voltas ao princípio sem um ai,
Um lamento, uma lágrima, e sorrindo
Te debruças sobre o coração
Unindo outras reservas à Vontade
Que quer continuar, e prosseguindo
Chegar ao infinito da razão,

Se a multidão te ouvir entusiasmada
E a virtude ficar no seu lugar,

Se amigos e inimigos não conseguem
Ofender-te, e se quantos te procuram
Para estar com o teu esforço não contarem
Uns mais do que outros, - olha-os por igual!,

Se podes preencher esse minuto
Com sessenta segundos de existência
No caminho da vida percorrido
Embora essa existência seja dura
À força das tormentas que a consomem,

Bendita a tua essência, a tua origem
- O Mundo será teu,
E tu serás um Homem!

Rudyard Kipling
(1865-1936)
Tradução de António Botto.

Miguel Torga

(Foto de Fel de Cão)
MAR


Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia:
Eras um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...

Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
Nem aumentar nem sufocar o pranto...

Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!

Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!

Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!


Miguel Torga
(1907-1995)

sábado, 20 de novembro de 2010

António Botto


A FATALIDADE

A fatalidade,
Várias vezes
No meu caminho aparece;
Mas,
Não consegue perturbar
A minha serenidade.

Sòmente,
No meu olhar,
Poisa e fica mais tristeza.

Não me revolto,
Nem desespero.

- Quero morrer em beleza.

António Botto
(1897-1959)

Anne Sexton


OS BOMBARDEIROS

Nós somos a América.
Somos os enchedores de caixões.
Nós somos os merceeiros da morte.
Nós empacotamo-los como se fossem couves-flor.

A bomba abre-se como uma caixa de sapatos.
E a criança?
A criança certamente não boceja.
E a mulher?
A mulher lava o seu coração.
Foi-lhe estropiado
e, porque está queimado,
num acto derradeiro,
ela enxagua-o no rio.
Este é o mercado da morte.

América,
onde estão as tuas credenciais?

Anne Sexton
(1928-1974)

Alberto Caeiro


FALAS DE CIVILIZAÇÃO

Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para quê te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

Alberto Caeiro

Sidónio Muralha


PROTESTO

São como flores fanadas os fúteis alfarrábios,
estagnados e doentios como a água adormecida,
do senhor dom artista que não quis colar os lábios
contra os seios da vida.

O homem que vende livros na velha padiola
expõe o romance da sua vida nessa espécie de montra
e grita contra os romances onde a vida estiola
em maciezas de lontra.

E em todos os cantos e recantos da rua
gritam contra os versos mornos, versos mansos, versos falsos,
as mulheres bem vestidas que ganham a vida nuas
e os garotos descalços.

Sidónio Muralha
(1920-1982)

Gastão Cruz


ESCARPAS

Tantos vieram para quem estar vivo
foi ouro em que seu ferro converteram;
pelo dia chamados tantos eram
que como lençol negro a luz cobriam,

obscura multidão tal o vazio
lugar universal que biliões
de anos-luz levaria a percorrer,
nuvens de aves morrendo em sucessivo

quebrar do tempo nas escarpas gastas
da passagem; mas como atravessar
o vazio sem tempo, aquele que há-de

ser o tempo de todos? Tantos vieram
mudar seu ferro em erro, é de viver
e morrer que se trata, ferro em ferro

Gastão Cruz

António Ramos Rosa


AMO O TEU TÚMIDO CANDOR DE ASTRO


Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança de um peito
que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

António Ramos Rosa.

Mário Castrim


COMO É QUE


Como é que eu,
ouvindo tão mal, distingo
o teu andar desde o princípio do corredor?

Como é que eu,
vendo tão pouco, sei
que és tu chegas, conforme a luz?

Como é que eu,
de mãos tão ásperas, desenho
a tua cara mesmo tão longe dela?

Onde está
tudo o que sei de ti
sem nunca ter aprendido nada?

Serei ainda capaz
de descobrir a palavra
que larga o teu rasto na janela?

(Que seria de nós
se nos roubassem os pontos de interrogação?)

Mário Castrim
(1920-2002)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Pablo Neruda


UMA CANÇÃO DESESPERADA


Emerge a tua lembrança desta noite em que estou.
O rio junta ao mar o seu lamento obstinado.

Abandonado como os cais na madrugada.
É a hora de partir, ó abandonado!

Sobre o meu coração chovem frias corolas.
Ó porão de escombros, feroz caverna de náufragos!

Em ti se acumularam as guerras e os voos.
De ti bateram as asas os pássaros do canto.

Tudo devoraste, como faz a distância.
Como o mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!

Era a hora alegre do naufrágio e do beijo.
A hora do estupor que ardia como um farol.

Ansiedade de piloto, fúria de mergulhador cego,
turva embriaguez de amor, tudo em ti foi naufrágio!

Eu fiz retroceder a muralha de sombra,
caminhei para além do desejo e do acto.

Ó carne, carne minha, mulher que amei e perdi,
a ti nesta hora húmida evoco e faço canto.

Como um copo albergaste a infinita ternura,
e o esquecimento infindo estilhaçou-se como um copo.

Era a negra, negra solidão das ilhas,
e ali, mulher de amor, teus braços me acolheram.

Era a sede e a fome, e tu foste uma fruta.
Era o luto e as ruínas, e tu foste o milagre.

Ah mulher, não sei como pudeste conter-me
na terra da tua alma e na cruz dos teus braços!

O desejo de ti foi o mais terrível e curto.
o mais revolto e ébrio, o mais tenso e ávido.

Cemitério de beijos, ainda tens fogo nas tumbas,
ainda as uvas ardem debicadas por pássaros.

Oh a boca mordida, oh os beijados membros,
oh os famintos dentes, oh os corpos trançados.

Oh a cópula louca de esperança e de esforço
em que nós nos juntámos e nos desesperámos.

E a ternura, leve como a água e a farinha.
E a palavra que quase nem nascia nos lábios.

Foi esse o meu destino e nele viajou a vontade,
e nele caiu a vontade, tudo em ti foi naufrágio!

De tombo em tombo ainda tu ardeste e cantaste.
Marinheiro de pé na proa de um navio.

Ainda floresceste em cantos, ainda rompeste em correntes.
Ó porão de escombros, poço aberto e amargo.

Pálido mergulhador cego, desventurado fundeiro,
Descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!

É a hora de partir, a dura e fria hora
que a noite prende a todos os horários.

O cinturão ruidoso do mar abraça a costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.

Abandonado como cais na madrugada.
Apenas a sombra trémula se me torce nas mãos.

Ah para além de tudo. Ah para além de tudo.

É a hora de partir. Ó abandonado.

Pablo Neruda
Tradução de Fernando Assis Pacheco.

Alberto Caeiro


O PASTOR AMOROSO PERDEU O CAJADO


O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe pira tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu.
Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem,
estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco
nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor,
uma liberdade
no peito.

Alberto Caeiro
10/07/1930

Fernando Pessoa


NÃO VENHAS SENTAR-TE À MINHA FRENTE, NEM A MEU LADO


Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado
E quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando
Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
A não ter que pensar.

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre urtigas o que era a minha fé,
Escrevi numa página em branco, «Fim».

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales,
Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales —
Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem se lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Paco Ibañez canta José Ángel Valente "NANA DE LA MORA" tão simples quanto bonito!

José Ángel Valente


O AMOR ESTÁ NO QUE LANÇAMOS


O amor está no que lançamos
(pontes, palavras).

O amor está em quanto erguemos
(risos, bandeiras).

E no que combatemos
(noite, vazio)
por verdadeiro amor.

O amor está em quanto levantamos
(torres, promessas).

Em quanto nós colhemos e semeamos
(filhos, futuro).

E nas ruínas de quanto derrubamos
(usurpação, mentira).
por verdadeiro amor.

José Ángel Valente
(1929-2000)
Tradução de José Bento.

José Ángel Valente


CONSINTO


Devo morrer. E, contudo, nada
morre, porque nada
tem fé suficiente
para poder morrer.

Não morre o dia,
passa;
nem uma rosa,
apaga-se;
resvala o sol,
não morre.

Somente eu, que toquei
o sol, a rosa, o dia,
e acreditei,
sou capaz de morrer.

José Ángel Valente
(1929-2000)
Tradução de José Bento.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Léon Felipe


CRISTO


Vieste glorificar as lágrimas...
não enxugá-las..
Vieste abrir as feridas...
não fechá-las...
Vieste acender as fogueiras...
não apagá-las...
vieste dizer:
Que corram o pranto,
e o sangue
e o fogo...
como a água!

Léon Felipe
(1884-1968)
Tradução de José Bento.

José Moreno Villa


A VERDADE


Há no céu um recado para mim.
Vejo-o bem, estou a olhá-lo;
não o posso traduzir,
é cifrado.
Entendo-o com todo o corpo;
não sei contá-lo.

José Moreno Villa
(1887-1955)
Tradução de José Bento.

Blas de Otero


NO PRINCÍPIO


Se perdi minha vida, o tempo, tudo
o que atirei, como um anel, à água,
se entre o joio perdi a minha voz
resta-me a palavra.

Se suportei a sede, a fome, tudo
o que era meu e redundou em nada,
se ceifei as sombras em silêncio,
resta-me a palavra.

se abri os lábios para ver o rosto
puro e terrível da minha pátria,
se abri os lábios até os rasgar,
resta-me a palavra.

Blas de Otero
(1916-1979)
Tradução de José Bento.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Cristovam Pavia


TORTURA


Dar sentido aos meus dias
Antes que se percam
Para sempre...
Como aquela
Linda rosa de há pouco.

Cristovam Pavia
(1933-1968)

Cristovam Pavia


POEMA


Vai, veemente,
Canto da minha solidão...

Vai, alto e puro,
Franjando a noite neutra
De inúmeras mãos ígneas
E vibráteis...

Vai, desprendido
Da lógica e de mim...

Pelos espaços dos espaços
E dos tempos sem fim...

Cristovam Pavia
(1933-1968)

Sidónio Muralha


AEROGRAMA

Sê discreto na felicidade
e firme na desgraça.

Uma hora a mais
é uma hora a menos
- não esqueças.

Sidónio Muralha
(1920-1982)

Amália canta Sidónio Muralha com música de Henrique Lourenço ( Gravado no ano do meu nascimento 1952)

Sidónio Muralha


RAÍZES

Velhas pedras que pisei
saiam da vossa mudez
venham dizer o que sei
venham falar português
sejam duras como a lei
e puras como a nudez.

Minha lágrima salgada
caíu no lenço da vida
foi lembrança naufragada
e para sempre perdida
foi vaga despedaçada
contra o cais da despedida.

Visitei tantos países
conheci tanto luar
nos olhos dos infelizes
e porque me hei-de gastar?
vou ao fundo das raízes
e hei-de gastar-me a cantar.

Sidónio Muralha
(1920-1982)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Joan Margarit


ALEGRIA


A tua vida avança dentro de mim,
e canto-te todas as canções de amor
que ainda posso recordar: boleros rasgados
que a razão já converteu em tumbas,
lieder românticos como a podridão
que pode brilhar na escuridão,
o desejo a encalhar-se na garganta cancerosa
da canção francesa. Canto
no vento das árias perdidas
as canções de embalar que são buracos
no cobertor triste da infância.
Canto para ti mas ninguém sabe.
Não sabem por que sou um velho que canta.

Joan Margarit
in "Casa da Misericórdia"

Lula Pena - "Gaivota"

Lula Pena

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

António Ramos Rosa


POEMA


As palavras mais nuas
as mais tristes.
As palavras mais pobres
as que vejo
sangrando na sombra e nos meus olhos.

Que alegria elas sonham, que outro dia,
para que rostos brilham?

Procurei sempre um lugar
onde não respondessem,
onde as bocas falassem num murmúrio
quase feliz,
as palavras nuas que o silêncio veste.

Se reunissem
para uma alegria nova,
que o pequenino corpo
de miséria
respirasse o ar livre,
a multidão dos pássaros escondidos,
a densidade das folhas, o silêncio
e um céu azul e fresco.

António Ramos Rosa
in "O Grito Claro" 1958

António Ramos Rosa


SE FOSSE POSSÍVEL ESCREVER SEM NENHUMA TENSÃO


Se fosse possível escrever sem nenhuma tensão
com a oval fluência de um vagaroso ócio
poderíamos libertar essa plácida lua
presa entre os rígidos flancos do ventre

Teríamos então a lucidez do sono
e as pálpebras ordenariam o fluir das linhas
que estariam de acordo com o silêncio dos montes
e com a voluptuosa lentidão do mar

No vagar de lúcidas surpresas
a palavra teria a vaga monotonia
de uma nuvem que nada mais dissesse
do que a clara indolência do dia


António Ramos Rosa
in "As Palavras" 2001.

António Ramos Rosa


NÓS SOMOS


Como uma pequena lâmpada subsiste
e marcha no vento, nestes dias,
na vereda das noites, sob as pálpebras do tempo.

Caminhamos, um país sussurra,
dificilmente nas calçadas, nos quartos,
um país puro existe, homens escuros,
uma sede que arfa, uma cor que desponta no muro,
uma terra existe nesta terra,
nós somos, existimos

Como uma pequena gota às vezes no vazio,
como alguém só no mar, caminhando esquecidos,
na miséria dos dias, nos degraus desconjuntados,
subsiste uma palavra, uma sílaba de vento,
uma pálida lâmpada ao fundo do corredor,
uma frescura de nada, nos cabelos nos olhos,
uma voz num portal e a manhã é de sol,
nós somos, existimos.

Uma pequena ponte, uma lâmpada, um punho,
uma carta que segue, um bom dia que chega,
hoje, amanhã, ainda, a vida continua,
no silêncio, nas ruas, nos quartos, dia a dia,
nas mãos que se dão, nos punhos torturados,
nas frontes que persistem,
nós somos,
existimos.

António Ramos Rosa
in «Sobre o Rosto da Terra» 1961
Antologia Poética, Dom Quixote, 2001

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Ângelo de Lima


SOZINHO


Quando eu morrer m'envolva a Singeleza,
Vá sem Pompa a caminho do coval,
Acompanhe-me apenas a tristeza
Não vá do bronze o som de val'em val!

Chore o céu sobre mim de orvalho as bagas
Luz do sol-posto fulja em seu cristal,
Cantem-me o «dorme em paz» ao longe as vagas.

Gemente a viração entoe o «Amém»
Vá assim té ermas, afastadas plagas...
Lá.. fique eu só!
Não volte lá ninguém!

Ângelo de Lima
(1872-1921)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Ângelo de Lima


EU ONTEM VI-TE...

Eu ontem vi-te...
Andava a luz
do teu olhar,
que me seduz,
a divagar
em torno de mim.
E então pedi-te,
não que me olhasses,
mas que afastasses,
um poucochinho,
do meu caminho,
um tal fulgor.
De medo, amor,
que me cegasse,
me deslumbrasse
fulgor assim.


Ângelo de Lima
(1872-1921)