domingo, 22 de abril de 2012

SE TENS


Se tens a faca e o pão
corta um pedaço e oferece

Por cada simples razão
há um símbolo que arrefece

João Apolinário
(1924-1988)
In "O Guardador de Automóveis"
CONQUISTA

Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

Miguel Torga

(1907-1995)
 In "Cântico do Homem"

domingo, 15 de abril de 2012

José Terra


DOBRANDO AS PALAVRAS...


Dobrando as palavras
em arco, ele sabe
que a alma está prestes
a partir, violenta.

Que a alma está prestes
a ser o que é:
chama branca e livre
consumindo a pele.

Puro sopro que
nós aprisionamos,
fragmento divino
que um dia se escapa.

Por isso ele está
vigilante e ansioso,
rodeado de olhos
e condenação.

José Terra
Do livro "Canto Submerso" (1956).

sábado, 14 de abril de 2012

David Mourão Ferreira


CAPITAL


Casas, carros, casas, casos.
Capital
encarcerada.

Colos, calos, cuspo, caspa.
Cautos, castas. Calvos, cabras.
Casos, casos… Carros, casas…
Capital
acumulado.

E capuzes. E capotas.
E que pêsames! Que passos!
Em que pensas? Como passas?
Capitães. E capatazes.
E cartazes. Que patadas!
E que chaves! Cofres, caixas…
Capital
acautelado.

Cascos, coxas, queixos, cornos.
Os capazes. Os capados.
Corpos. Corvos. Copos, copos.
Capital,
oh! capital,
capital
decapitada!

David Mourão Ferreira
(1927-1996)

José Gomes Ferreira


SONÂMBULO - XIV



Dói-me a boca de silêncio
e vou gritar!
- nesta noite de lua mole
a dobrar-se nos telhados
inertes de bafio...

Dói-me a boca de silêncio
e vou gritar!

- Atirar para a ferrugem do vento
da noite desmantelada
um desafio de acordar o mundo
nas janelas de súbito acesas
- com milhões de vozes
esvaídas num clamor para além do sufocar das pedras!

Dói-me a boca de silêncio
e vou gritar!
Gritar,ouviram?

Gritar esta alegria de não sentir ainda terra na boca!
Gritar esta Labareda,enfim fora dos olhos!

José Gomes Ferreira
(1900-1985)

Miguel Torga


AR LIVRE


Ar livre, que não respiro!
Ou são pela asfixia?
Miséria de cobardia
Que não arromba a janela
Da sala onde a fantasia
Estiola e fica amarela!

Ar livre, digo-vos eu!
Ou estamos nalgum museu
De manequins de cartão?
Antes o caos que a morte…
De par em par, pois então?!

Ar livre! Correntes de ar
Por toda a casa empestada!
(Vendavais na terra inteira,
A própria dor arejada,
-E nós nesta borralheira
De estufa calafetada!)

Ar livre! Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Ar livre como se tem
Fora do ventre da mãe,
Desligado do cordão!

Ar livre, sem restrições!
Ou há pulmões
Ou não há!
Fechem as outras riquezas,
Mas tenham fartas as mesas
Do ar que a vida nos dá!

Miguel Torga.
(1907-1995)

domingo, 8 de abril de 2012

Luís Veiga Leitão


POMBAS


No corredor, plantação de celas,
pombas vêm, pombas voltam, a espaços.
Digo que meus olhos vão com elas...
Mentira. E as pernas? E os braços?

Levanta a espinha, Coração,
não vês que assim me tombas?
Amanhã, tu e a asa da minha mão
também irão como as pombas.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Longo Caminho Breve"
(Edição de Junho de 1985)
(Capa "Os Noivos" óleo sobre tela de Augusto Gomes)

João Apolinário


POVO


Povo
Eh povo meu
na margem dos grandes oceanos
vibram as plagas do céu
em gritos humanos

São as vozes dos homens do mar
São os braços na terra erguidos
É o rítmo da vida a vibrar
em todos os sentidos

És tu irmão desta aventura
lançado na fúria de amanhã
A combustão da conjuntura
A parte podre de outra sã

És tu que eu vejo pelas ruas
em todos os lugares da vida
de faces brancas e mãos nuas
de tanta coisa apetecida

És tu o escravo desta melopeia
a pedra do suporte em que se basta
o edifício social da teia
em que tudo se enreda funde e gasta

És tu a grande porta ritmada
em gonzos de infinito e de veludo
Dum lado não és nada
do outro és tudo

Povo
Eh povo meu
na margem dos grandes oceanos
vibram as plagas do céu
em gritos humanos

João Apolinário
(1924-1988)
In "O Guardador de Automóveis"
1ª edição (29 de Dezembro de 1956)

José Cutileiro


OS MEDOS

(Plagiado, em parte, de António Ferreira)




É a medo que escrevo. A medo penso,
A medo sofro e empreendo e calo.
A medo peso os termos quando falo.
A medo me renego, me convenço.

A medo amo. A medo me pertenço.
A medo repouso no intervalo
De outros medos. A medo é que resvalo
O corpo escrutador, inquieto, tenso.

A medo durmo. A medo acordo. A medo
Invento. A medo passo, a medo fico.
A medo meço o pobre, meço o rico.

A medo guardo confissão, segredo,
Dúvida, fé. A medo. A medo tudo.
Que já me querem cego, surdo e mudo.

José Cutileiro
In "Cancioneiro da Esperança"
Edição Seara Nova (1971)

sábado, 7 de abril de 2012

Fiama Hasse Pais Brandão


BARCAS NOVAS

Lisboa tem suas barcas
agora lavradas de armas

Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens

Barcas novas levam guerra
as armas não lavram terra

São de guerra as barcas novas
no mar deitadas com homens

Barcas novas são mandadas
sobre o mar com suas armas

Não lavram terra com elas
os homens com sua guerra

Nelas mandaram meter
os homens com sua guerra

Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas

Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas.


Fiama Hasse Pais Brandão
(1938-2007)

Carlos de Oliveira


CANTIGAS

1/ O VIANDANTE



Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu,miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu,miséria, ficaste.
Foi-se a noite,foi-se o dia,
fugiu a cor ás estrelas:
nesta negra solidão,
só tu,miséria, nos velas.

Carlos de Oliveira
(1921-1981)
In "Cancioneiro da Esperança"
1ª Edição Seara Nova (1971)
(Antologia organizada por Maria Teresa Horta e José Carlos Ary dos Santos)

Armindo Rodrigues


NÃO OLHO PARA NADA DE OLHOS PLÁCIDOS.


Não olho para nada de olhos plácidos.
Em cada pensamento estou inteiro.
Inteiro estou na minha vã presença
e, tão inteiro como em mim, em tudo.
Choram rios de angústias e de espanto
na voz cortante e baça com que choro.
Cantam milhões de risos e certezas
na voz vermelha e doce com que canto.
Sangram milhões de chagas se protesto.
A cada instante morro e reverdeço.
Quanto mais fundo no mundo me enraízo
tanto mais em mim mesmo me conheço.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "A Esperança Desesperada"
1ª Edição (Coimbra 1948)
Dedicado "Ao Carlos de Oliveira e ao Joaquim Namorado"

Armindo Rodrigues


RUMO


Ergue-se do fundo
do mundo em mim
tudo o que penso.
Pensar é ir
e o que sou
alegremente
o aceito e quero.

Ao pé do imenso
espanto de existir
o resto é zero.

Tudo procuro
sem crer em nada
definitivo,
com o motivo
exacto e duro
de tudo querer
compreender.

Pensar é ir.
Ir é ser.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "A Esperança Desesperada"
1ª Edição de 1948
Com Dedicatória "Ao Carlos Oliveira e ao Joaquim Namorado"

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Eugénio de Andrade


ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os teus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os teus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos nada que dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Bento de Jesus Caraça


“Se não receio o erro, é porque estou sempre disposto a corrigi-lo”

Bento de Jesus Caraça
(1901-1048)

José Régio


SABEDORIA


Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança...
E venha a morte quando
Deus quiser.

Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.

Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar. . .
E venha a morte quando Deus quiser.

Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.

José Régio
(1901-1969)
in "Poemas de Deus e do Diabo"

domingo, 1 de abril de 2012

José Régio


O PAPÃO

Atrás da porta, erecto e rígido, presente,
Ele espera-me. E por isso me atrapalho,
E vou pisar, exactamente,
A sombra de Ele no soalho!

-"Senhor Papão!"
(Gaguejo eu)
"Deixe-me ir dar a minha lição!
"Sou professor no liceu..."

Mas o seu hálito
Marcou-me, frio como o tacto duma espada.
E eu saio pálido,
Com a garganta fechada.

Perguntam-me, lá fora: "Estás doente?"
- "Não!", (grito-lhes)... "porquê?!" E falo e rio, divertindo-me.
Ora o pior é que há palavras em que paro, de repente,
E que me doem, doem, doem..., prolongando-se e ferindo-me...

Então, no ar,
Levitando-se, enorme, e subvertendo tudo,
Ele faz frio e luz como um luar...
E ouço-lhes o riso mudo.

- "Senhor Papão!"
(Gaguejo eu) "por quem é,
"Deixe-me estar aqui, nesta reunião,
"Sentadinho, a tomar o meu café...!"

Mas os mínimos gestos e palavras do meu dia
Ficaram cheios de sentido.
Ter de mais que dizer..., ah, que maçada e que agonia!
Bem natural que eu seja repelido.

Fujo. E na minha mansarda,
Volvo-lhe: - "Senhor Papão!
"Se é o meu Anjo-da-Guarda,
"Guarde-me!, mas de si! da vida não."

O seu olhar, então, fuzila como um facho.
Suas asas sem fim vibram no ar como um açoite...
E até no leito em que me deito o acho,
E nós lutamos toda a noite.

Até que, vencido, ímbele
Ante o esplendor da sua face,
De repente me prostro, e beijo o chão diante de Ele,
Reconhecendo o seu disfarce.

E rezo-lhe: - "Meu Deus! perdão...: Senhor Papão!
"Eu não sou digno desta guerra!
"Poupe-me à sua Revelação!
"Deixe-me ser cá da terra!"

Quando uma súbita viragem
Me faz ver (truque velho!...)
Que estou em frente do espelho,
Diante da minha imagem.


José Régio
(1901-1969)