segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Ricardo Reis


SIM,SEI BEM

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.

Ricardo Reis
8/7/1931

Ricardo Reis


NÃO SÓ QUEM NOS ODEIA OU INVEJA

Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos,tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses

Ricardo Reis
(1/11/1930)

Ricardo Reis


QUER POUCO:TERÁS TUDO

Quer pouco, terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.

Ricardo Reis
(1/11/1930)

Fernando Pessoa


BASTA PENSAR EM SENTIR

Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.

Fernando Pessoa
(14/06/1932)

Desaparecidos - Mário Benedetti, Daniel Viglietti

domingo, 29 de agosto de 2010

Carlos Drummond de Andrade


ENTRE O SER E AS COISAS

Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.


As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.


N´água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.


E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungido,
uma fogueira a arder no dia findo.

Carlos Drummond de Andrade

Quilapayún "QUÉ CULPA TIENE EL TOMATE"

Vincent (Starry Starry Night) Don McLean

Patativa do Assaré


EU QUERO

Quero um chefe brasileiro
Fiel, firme e justiceiro
Capaz de nos proteger
Que do campo até à rua
O povo todo possua
O direito de viver

Quero paz e liberdade
Sossego e fraternidade
Na nossa pátria natal
Desde a cidade ao deserto
Quero o operário liberto
Da exploração patronal

Quero ver do Sul ao Norte
O nosso caboclo forte
Trocar a casa de palha
Por confortável guarida
Quero a terra dividida
Para quem nela trabalha

Eu quero o agregado isento
Do terrível sofrimento
Do maldito cativeiro
Quero ver o meu país
Rico, ditoso e feliz
Livre do jugo estrangeiro

A bem do nosso progresso
Quero o apoio do Congresso
Sobre uma reforma agrária
Que venha por sua vez
Libertar o camponês
Da situação precária

Finalmente, meus senhores,
Quero ouvir entre os primores
Debaixo do céu de anil
As mais sonoras notas
Dos cantos dos patriotas
Cantando a paz do Brasil

Patativa do Assaré (António Gonçalves da Silva)
(5/3/09-8/7/2002
Do livro "Cante Lá,Que Eu Canto Cá" de 1978.

Patativa do Assaré


O PEIXE

Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente,
Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.

Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a inconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.

O camponês, também, do nosso Estado,
Ante a campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.

Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte!

Patativa do Assaré
(5/03/1909-08/07/2002)

Jorge Luís Borges


Os Meus Livros

Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim. As vozes desses mortos
Dir-me-ão para sempre.

Jorge Luis Borges, in “A Rosa Profunda”

sábado, 28 de agosto de 2010

Toon Tellegen


EU PODIA ESCOLHER

Eu podia escolher
Não tinha ideia
Escolhi a paz.

A verdade e a beleza
Deixei-as ir,
E também a sageza e a nostalgia
Até o amor,
Que tão embevecido me olhava,
Negras nuvens com ele se deslocavam

Paz, era paz.
E nos recônditos da minha alma
Dançavam seres
De que nunca tinha sequer ouvido!

E no céu pendia um outro ser.

Toon Tellegen
Tradução de Fernando Venâncio
in "Rosa do Mundo" 2001 Poemas Para o Futuro.

Carlos de Oliveira


CANTIGA DO ÓDIO

O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?

Carlos de Oliveira, in 'Mãe Pobre'

NAZIM HIKMET RAN


APELO


Este país,cabeça duma égua
da Ásia ao Mediterrâneo trotando tanta légua
este país é o nosso.
Punhos em sangue banhados,dentes serrados,planta nua
e chão feito alfombra,toda em seda crua,
este inferno,este céu é o nosso.
Fechem-se as portas de estranhos, não mais voltem a abrir!
O homem não imponha ao homem escravidão!
Este apelo é o nosso.
Viver!Qual árvore,sozinha e livre
e juntos irmanados,qual floresta:
Este anseio é o nosso.

Nazim Hikmet Ran
(1901-1963)
Tradução de Doina Zugravescu
in "Rosa do Mundo" 2001 Poemas Para o Futuro

Gómez Naharro "BELLA CIAO"

Canção Amiga (Milton Nascimento canta Carlos Drummond de Andrade)

Carlos Drummond de Andrade


CANÇÃO AMIGA

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não se vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem anda ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

Carlos Drummond de Andrade

Violeta Parra (Que dira el Santo Padre- Em memória de Julian Grimau)

Ventiscka (Qué dirá el Santo Padre de VIOLETA PARRA)

Ventiscka (La Muralha de Nicolás Guillén e Quilapayún)

Nicolás Guillén


A FOME

Esta é a fome. Um animal
todo canino e olho.
Nada o engana ou distrai.
Não se farta em uma mesa.
Não se contenta
com um almoço ou uma ceia.
Anuncia sempre sangue.
Ruge como leão, aperta como jibóia,
pensa como pessoa.

O exemplar que aqui se oferece
foi caçado na Índia (subúrbios de Bombaim),
mas existe em estado mais ou menos selvagem
em outras muitas partes.

Não se aproxime.

Nicolás Guillén

Nicolás Guillén


BURGUESES

Não me dão pena os burgueses
vencidos. E quando penso que vão a dar-me pena,
aperto bem os dentes e fecho bem os olhos.
Penso em meus longos dias sem sapatos nem rosas.
Penso em meus longos dias sem abrigos nem nuvens.
Penso em meus longos dias sem camisas nem sonhos.
Penso em meus longos dias com minha pele proibida.
Penso em meus longos dias.

- Não passe, por favor. Isto é um clube.
- A relação está cheia.
- Não há vaga no hotel.
- O senhor saiu.
- Deseja uma mulher.
- Fraude nas eleições.
- Grande baile para cegos.
- Caiu o Prémio Maior em Santa Clara.
- Loteria para órfãos.
- O cavalheiro está em Paris.
- A senhora marquesa não recebe.

Enfim, toda recordação.
E como toda recordação,
que droga me pede você para fazer?
Além disso, pergunte-lhes.
Estou seguro
de que também recordam eles.

Nicolás Guillén
(Tradução de Gilfrancisco Santos)

Nicolás Guillén

((Nicolás Guillén em 1942)
NO SÉ POR QUÉ PIENSAS TÚ

No sé por qué piensas tú,
soldado, que te odio yo,
si somos la misma cosa
yo,
tú.

Tú eres pobre, lo soy yo;
soy de abajo, lo eres tú;
¿de dónde has sacado tú,
soldado, que te odio yo?

Me duele que a veces tú
te olvides de quién soy yo;
caramba, si yo soy tú,
lo mismo que tú eres yo.

Pero no por eso yo
he de malquererte, tú;
si somos la misma cosa,
yo,
tú,
no sé por qué piensas tú,
soldado, que te odio yo.

Ya nos veremos yo y tú,
juntos en la misma calle,
hombro con hombro, tú y yo,
sin odios ni yo ni tú,
pero sabiendo tú y yo,
a dónde vamos yo y tú…
¡no sé por qué piensas tú,
soldado, que te odio yo!

Nicolás Guillén
in "Cantos para Soldados"
(A mi padre,muerto por soldados)

Paco Urondo


A VERDADE É A ÚNICA REALIDADE

Do outro lado da grade está a realidade, deste
lado da grade também está
a realidade; a única irreal
é a grade; a liberdade é real ainda que não se saiba bem
se pertence ao mundo dos vivos, ao
mundo dos mortos, ao mundo das
fantasias ou ao mundo da vigília, ao da exploração ou
da produção.

Os sonhos, sonhos são; as recordações, aquele
corpo, esse copo de vinho, o amor e
as fraquezas do amor, certamente, formam
parte da realidade; um disparo
na noite, na frente destes irmãos, destes filhos, aqueles
gritos irreais de dor real dos torturados no
“angelus” eterno e sinistro numa brigada de polícia
qualquer
são parte da memória, não supõe necessariamente
o presente, mas pertencem à realidade. A única aparente
é a grade quadriculando o céu, o canto
perdido de um preso, ladrão ou combatente, a voz
fuzilada, ressuscitada ao terceiro dia num vôo imenso
cubrindo a Patagônia
porque os massacres, as redenções, pertencem à realidade, como
a esperança resgatada da pólvora, da inocência
estival: são a realidade, como a coragem e a convalescença
do medo, esse ar que resiste a voltar depois do perigo
como os desígnios de todo um povo que marcha
até a vitória
ou até a morte, que tropeça, que aprende a defender-se,
a resgatar o seu, a sua
realidade.
Ainda que pareça às vezes uma mentira, a única
mentira não é sequer a traição, é
simplesmente uma grade que não pertence à realidade.

Paco Urondo
(Cárcere da Villa Devoto, Abril de 1973)

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Joaquim Pessoa


POEMA TEMPERAMENTAL

Ó caralho! Ó caralho!
Quem abateu estas aves?
Quem é que sabe? quem é
que inventou a pasmaceira?
Que puta de bebedeira
é esta que em nós se vem
já desde o ventre da mãe
e que tem a nossa idade?
Ó caralho! Ó caralho!
Isto de a gente sorrir
com os dentes cariados
esta coisa de gritar
sem ter nada na goela
faz-nos abrir a janela.
Faz doer a solidão.
Faz das tripas coração.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque não vem o diabo
dizer que somos um povo
de heróicos analfabetos?
Na cama fazemos netos
porque os filhos não são nossos
são produtos do acaso
desde o sangue até aos ossos.
Ó caralho! Ó caralho!
Um homem mede-se aos palmos
se não há outra medida
e põe-se o dedo na ferida
se o dedo lá for preciso.
Não temos que ter juízo
o que é urgente é ser louco
quer se seja muito ou pouco.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque é que os poemas dizem
o que os poetas não querem?
Porque é que as palavras ferem
como facas aguçadas
cravadas por toda a parte?
Porque é que se diz que a arte
é para certas camadas?
Ó caralho! Ó caralho!
Estes fatos por medida
que vestimos ao domingo
tiram-nos dias de vida
fazem guardar-nos segredos
e tornam-nos tão cruéis
que para comprar anéis
vendemos os próprios dedos.
Ó caralho! Ó caralho!
Falta mudar tanta coisa.
Falta mudar isto tudo!
Ser-se cego surdo e mudo
entre gente sem cabeça
não é desgraça completa.
É como ser-se poeta
sem que a poesia aconteça.
Ó caralho! Ó caralho!
Nunca ninguém diz o nome
do silêncio que nos mata
e andamos mortos de fome
(mesmo os que trazem gravata)
com um nó junto à garganta.
O mal é que a gente canta
quando nos põem a pata.
Ó caralho! Ó caralho!
O melhor era fingir
que não é nada connosco.
O melhor era dizer
que nunca mais há remédio
para a sífilis. Para o tédio.
Para o ócio e a pobreza.
Era melhor. Com certeza.
Ó caralho! Ó caralho!
Tudo são contas antigas.
Tudo são palavras velhas.
Faz-se um telhado sem telhas
para que chova lá dentro
e afogam-se os moribundos
dentro do guarda-vestidos
entre vaias e gemidos.
Ó caralho! Ó caralho!
Há gente que não faz nada
nem sequer coçar as pernas.
Há gente que não se importa
de viver feita aos bocados
com uma alma tão morta
que os mortos berram à porta
dos vivos que estão calados.
Ó caralho! Ó caralho!
Já é tempo de aprender
quanto custa a vida inteira
a comer e a beber
e a viver dessa maneira.
Já é tempo de dizer
que a fome tem outro nome.
Que viver já é ter fome.
Ó caralho! Ó caralho!
Ó caralho!


Joaquim Pessoa

FAUSTO "Todo este Céu"

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Ruy Duarte de Carvalho


O SUL

O sol o sul o sal
as mãos de alguém ao sol
o sal do sul ao sol
o sol em mãos do sul
e mãos de sal ao sol

O sal do sul em mãos de sol
e mãos de sul ao sol

um sol de sal ao sul
o sol ao sul
o sal ao sol
o sal o sol
e mãos de sul sem sol nem sal

Para quando enfim amor
no sul ao sol
uma mão cheia de sal?

Ruy Duarte de Carvalho

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Reinaldo Ferreira


DEIXAI OS DOIDOS GOVERNAR ENTRE COMPARSAS

Deixai os doidos governar entre comparsas!
Deixai-os declamar dos seus balcões
Sobre as praças desertas!
Deixai as frases odiosas que eles disserem,
Como morcegos à luz do Sol,
Atónitas baterem de parede em parede,
Até morrerem no ar
Que as não ouviu
Nem percutiu
À distância da multidão que partiu!
Deixai-os gritar pelos salões vazios,
Eles, os portentosos mais que os mares,
Eles, os caudalosos mais que os rios,
O medo de estar sós
Entre os milhares
De esgares
Reflectidos dos colossais
Cristais
Hílares
Que a sua grandeza lhes sonhou!

Reinaldo Ferreira

Jorge de Sena


AO DESCONCERTO HUMANAMENTE ABERTO


Ao desconcerto humanamente aberto
entendo e sinto: as coisas são reais
como meus olhos que as olharam tais
a luz ou treva que há no tempo certo.

De olhá-las muito não as vejo mais
que a luz mutável com que a treva perto
sempre outras as confunde: entreaberto,
menos que humano, só verei sinais.

E sinta que as pensei, ou que as senti
eu pense, ou julgue nos sinais que vi
ler a harmonia, como ali surpresa,

oculta que era para eu vê-la agora,
meu desconcerto é o desconcerto fora,
e Deus um só pudor da Natureza.

Jorge de Sena
De As Evidências,1955

Álvaro de Campos


ESTA VELHA ANGÚSTIA

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer -
Júpiter, Jeová, a Humanidade -
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

Álvaro de Campos

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Reinaldo Ferreira


REGRESSO DE PARTE ALGUMA

Regresso de parte alguma
Rico mais do que partira,
Pois trago coisa nenhuma
Sem desespero e sem ira.

Agora vivo contente
No meu exílio sereno;
Tomei tamanho de gente
E não me dói ser pequeno.

Pedra parada na calma
Tranquilidade dos charcos,
Deixem dormir minha alma,
Como apodrecem os barcos...

Reinaldo Ferreira
De Poemas,1960

Eugénio de Andrade


AS PALAVRAS

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade
De Coração de Pedra,1958

Sophia de Mello Breyner Andresen


PÁTRIA

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Do longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 14 de agosto de 2010

Eugénio de Andrade


O SILÊNCIO


Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Daniel Filipe


MEU PAÍS


Meu país meu país
Do céu límpido calmo
De campos cultivados
De praias e montanhas.

É para ti meu canto
A minha esperança.

Ouço a tua voz triste
Oh, meu país sem culpa
Ouço-a nos dias mornos
No amanhecer cinzento.

E é para ti meu canto
A minha esperança.

Meu país onde a traição domina
E o medo assoma nas encruzilhadas
Meu país de prisões e covardias
E de ladrões de estradas.

Meu país de operários
Cavadores, marinheiros
Meu país de mãos grossas
Plebeu, sensual, resistente.

É para ti meu canto
A minha esperança.

Para ti meu país
Levanto a minha voz sobre o silêncio
Desta noite de angústias
E de medos.

Nada pode calar
O nosso riso aberto
Ei-lo que invade
A terra portuguesa

E vozes juvenis formam o coro.

Por isso é para ti meu canto
A minha esperança.

Já ouço passos,
Vêm na distância
Desfraldando bandeiras e cantando
E é para ti oh! meu país liberto
O seu canto de esperança e claridade.

Daniel Filipe(1925-1964)

Alexandre O'Neill


POIS

O respeitoso membro de azevedo e silva
nunca perpenetrou nas intenções de elisa
que eram as melhores. Assim tudo ficou
em balbúrdias de língua cabriolas de mão.

Assim tudo ficou até que não.

Azevedo e silva ao volante do mini
vê a elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois
e pensa pensa com os seus travões
Ah cabra eram tão puras as minhas intenções

E a elisa passa rindo dentadura aos clarões

Alexandre O'Neill

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Carlos Drummond de Andrade



A VERDADE DIVIDIDA

A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade

Eugénio de Andrade


OS NOMES

Tua Mãe dava-te nomes pequenos, como se a maré os trouxesse com os caramujos. Ela queria chamar-te afluente-de-junho, púrpura-onde-a-noite-se-lava, branca-vertente-do-trigo, tudo isto apenas numa sílaba. Só ela sabia como se arranjava para o conseguir, meu-baiozinho-de-prata-para-pôr-ao-peito. Assim te queria. Eu às vezes.

in Memória Doutro Rio, Eugénio de Andrade

Miguel Torga nasceu a 12 de Agosto de 1907


ÊXTASE


Terra, minha medida!
Com que ternura te encontro
Sempre inteira nos sentidos,
Sempre redonda nos olhos,
Sempre segura nos pés,
Sempre a cheirar a fermento!
Terra amada!
Em qualquer sítio e momento,
Enrugada ou descampada,
Nunca te desconheci!
Berço do meu sofrimento,
Cabes em mim, e eu em ti!

Miguel Torga

Bertolt Brecht


QUANDO UM HOMEM INDISPENSÁVEL...

Quando um homem indispensável franze a testa
Oscilam dois impérios mundiais.
Quando o homem indispensável morre
O mundo olha em volta como uma mãe que não tem leite para o filho
Se o homem indispensável regressasse uma semana depois da sua morte
Em todo o império não se acharia já para ele nem um lugar de porteiro.

Bertolt Brecht
in "Poemas no Exílio"

Bertolt Brecht


CONTRA A SEDUÇÃO

Não vos deixeis seduzir!
Regresso não pode haver.
O dia já fecha as portas,
Já sentis o frio da noite:
Não haverá amanhã.

Não vos deixeis enganar,
E que a vida pouco vale!
Sorvei-a a goles profundos!
Pois não vos pode bastar
Que tenhais de a abandonar!

Não vos contenteis de esp'ranças,
Que o tempo não é demais!
Aos mortos a podridão!
O maior que há é a vida:
E ela já não está pronta.

Não vos deixeis seduzir
Ao moirejo e à miséria!
Que pode fazer-vos o medo?
Morreis como os bichos todos,
E depois não há mais nada.

Bertold Brecht, in 'Canções e Baladas'

José Gomes Ferreira


Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias


Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guia
se baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.

José Gomes Ferreira

Octávio Paz


À MARGEM


TUDO O QUE BRILHA NA NOITE,
COLARES, OLHOS, ASTROS,
SERPENTINAS DE FOGOS DE CORES,
BRILHA EM TEUS BRAÇOS DE RIO QUE SE CURVA,
EM TEU PESCOÇO DE DIA QUE DESPERTA.

A FOGUEIRA QUE ACENDEM NA FLORESTA,
O FAROL DE PESCOÇO DE GIRAFA,
O OLHO, GIRASSOL DA INSÓNIA,
CANSARAM-SE DE ESPERAR E PERSCRUTAR.

APAGA-TE,
PARA BRILHAR NÃO HÁ COMO OS OLHOS QUE NOS VÊEM:
CONTEMPLA-TE EM MIM QUE TE CONTEMPLO.
DORME,
VELUDO DE BOSQUE,
MUSGO ONDE RECLINO A CABEÇA.

A NOITE COM ONDAS AZUIS VAI APAGANDO ESTAS PALAVRAS,
ESCRITAS COM MÃO VOLÚVEL NA PALMA DO SONHO.

Octávio Paz (1914-1998)
Tradução de Luís Pignatelli
1n "Os Poemas da Minha Vida de Urbano Tavares Rodrigues.

Pablo Neruda


A NOITE NA ILHA


Dormi contigo toda a noite
junto ao mar, na ilha.
doce e selvagem entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.

Os nossos sonos uniram-se
talvez muito tarde
no alto ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento agita,
em baixo como vermelhas raízes que se tocam.

O teu sono separou-se
talvez do meu
e andava à minha procura
pelo mar escuro
como dantes,
quando ainda não existias,
quando sem te avistar
naveguei a teu lado
e os teus olhos buscavam
o que agora
-pão, vinho, amor e cólera -
te dou às mãos cheias,
porque tu és a taça
que esperava os dons da minha vida.

Dormi contigo
toda a noite enquanto
a terra escura gira
com os vivos e os mortos,
e ao acordar de repente
no meio da sombra
o meu braço cingia a tua cintura.
Nem a noite nem o sono
puderam separar-nos.

Dormi contigo
e, ao acordar, tua boca,
saída do teu sono,
trouxe-me o sabor da terra,
da água do mar, das algas,
do âmago da tua vida,
e recebi teu beijo,
molhado pela aurora,
como se me viesse
do mar que nos cerca.

Pablo Neruda(1904-1973)
(Tradução de Albano Martins)
in "Os Poemas da Minha Vida de Urbano Tavares Rodrigues"

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Ciranda da Bailarina com Edu Lobo e Chico Buarque

António Ramos Rosa


AQUI MEREÇO-TE




O sabor do pão e da terra
e uma luva de orvalho na mão ligeira.
A flor fresca que respira é branca.
E corto o ar como um pão enquanto caminho entre searas.
Pertenço em cada movimento a esta terra.
O meu suor tem o gosto das ervas e das pedras.
Sorvo o silêncio visível entre as árvores.
É aqui e agora o dilatado abraço das raízes claras do sono.
Sob as pálpebras transparentes deste dia
o ar é o suspiro dos próprios lábios.
Amar aqui é amar no mar,
mas com a resistência das paredes da terra


A mão flui liberta tão livre como o olhar.
Aqui posso estar seguro e leve no silêncio
entre calmas formas, matérias densas, raízes lentas,
ao fogo esparso que alastra no horizonte.
No meu corpo acende-se uma pequena lâmpada.
Tudo o que eu disser são os lábios da terra,
o leve martelar das línguas de água,
as feridas da seiva, o estalar das crostas,
o murmúrio do ar e do fogo sobre a terra,
o incessante alimento que percorre o meu corpo.
Aqui no grande olhar eu vejo e anuncio
as claras ervas, as pedras vivas, os pequenos animais,
os alimentos puros,
as espessas e nutritivas paredes do sono,
o teu corpo com todo o vagar da sua massa,
todo o peso das coisas e a ligeireza do ar.

Ao flexível volante trabalhado pelas seivas
a minha mão alia-se: bom dia, horizonte.
Uma saúde nova vai nascer destes ombros.
A lâmpada respira ao ritmo da terra.
Sei os caminhos de água pelas veredas,
as mãos das ervas finas embriagadas de ar,
o silêncio donde se ergue a torre do canto.

Abrem-se os novos lábios e eu mereço-te.
É este reino de insectos e de jogos,
das carícias que sabem a uma sede feliz.
Aqui entre o poço e o muro,
neste pequeno espaço de pedra cai um silêncio antigo:
uma infância inextinguível se alimenta
de uma fábula que renasce em todas as idades.
É aqui, minha filha, que dança a fada do ar
com seu brilho sedoso de erva fina
e a sua abelha silenciosa sobre a fronte.
É aqui o eterno recanto onde a água diz
a pura praia da infância.
Aqui bebe e bebe longamente
o hábito da tristeza no silêncio da vida,
aqui, ó pátria de água calada e de pão doce,
da fundura do tempo, da lonjura permanente,
aqui, bom dia, minha filha.


António Ramos Rosa

Eugénio de Andrade


OS OLHOS RASOS DE ÁGUA


Cansado de ser homem durante o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.


É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.


Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus
olhos ser toda a nostalgia das areias.


É a hora de adormecer na tua boca,
como um marinheiro num barco naufragado,
o vento na margem das espigas.

Eugénio de Andrade

Manuel Bandeira


MADRIGAL MELÂNCÓLICO


O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito subtil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.

Manuel Bandeira
(11 de Junho de 1920)

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Fernando Pessoa


AO LONGE,AO LUAR

Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela ?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça ?
Que amor não se explica ?
É a vela que passa
Na noite que fica.

Fernando Pessoa

Fernando Pessoa


ESTA ESPÉCIE DE LOUCURA

Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,

Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há

Fernando Pessoa

Fernando Pessoa


ONDE PUS A ESPERANÇA,AS ROSAS


Onde pus a esperança, as rosas
Murcharam logo.
Na casa, onde fui habitar,
O jardim, que eu amei por ser
Ali o melhor lugar,
E por quem essa casa amei -
Decerto o achei,
E, quando o tive, sem razão p'ra o ter

Onde pus a afeição, secou
A fonte logo.
Da floresta, que fui buscar
Por essa fonte ali tecer
Seu canto de rezar -
Quando na sombra penetrei,
Só o lugar achei
Da fonte seca, inútil de se ter.

Para quê, pois, afeição, 'sperança,
Se perco,logo
Que as uso, a causa para as usar,
Se tê-las sabe a não as ter?
Crer ou amar -
Até à raiz, do peito onde alberguei
Tais sonhos e os gozei,
O vento arranque e leve onde quiser
E eu os não possa achar!

Fernando Pessoa

Paul Éluard


O Beijo


Ainda toda quente da roupa tirada
Fechas os olhos e moves-te
Como se move um canto que nasce
Vagamente mas em toda a parte


Perfumada e saborosa
Ultrapassas sem te perder
As fronteiras do teu corpo


Passaste por cima do tempo
Eis-te uma nova mulher
Revelada até ao infinito.


Paul Éluard (1895-1952)
Tradução de Egito Gonçalves
in "Os Poemas da Minha Vida de Urbano Tavares Rodrigues"

Hugo Santos


NONA CARTA PARA UM DEUS AVARENTO


da terra vou sabendo o nome inteiro
dos ritos que antecedem a colheita.
podar os ventos,recolher as chuvas,
armazenar as maduras cerejas do granizo.
com as névoas recubro a mancha verde
das oliveiras do pátio.
os tordos retornaram.
catam o vento,
talvez do seu exílio falem,
pelo alfabeto dos longes se relêem.
entre o desejo e a sombra se confundem.
lavrador de silêncios
o coração hesita.
outra colheita o demanda;
pega a terra,nela lança
a úbere semente das mais naves.
pacientemente,sei,esperará
que o tempo recolha em seu celeiro
o fruto mais maduro que lhe couber.

do trigo lembro o verde.o ouro depois.
a emoção compondo o linho sobre a mesa.
solidários,os gestos se repartem.
à cabeceira,tu.
ao centro o pão mais alvo.o vinho.
há palavras que sobre as coisas pairam,
as possuem.
o grande coração da casa flui.
como omitir seus signos?
chove ainda.sei que os deuses
virão pelo crepúsculo retomar
as cordas de suas brancas liras d'água alada.
pelo pinhal caminham;
ouve como o vento calou os seus murmúrios.
atendo os seus segredos,
em seus vasos lunares procuro ainda
o grão de areia que diga dos seus passos.
enternecidamente o tomo.
sobre a palma avalio seu peso,
pergunto que caminhos
apontam as suas luzes.
tão frágil a distância entre o que ouso
e a clareira de névoa do que sinto!
diz-me tão-só se como os deuses vens;
se a lira que aqui ouço é a resposta
que o coração,atento,
me requer.

precisava uma palavra que contasse
a estranha solidez da esperança.
ou um sentido apenas,
preservado em seu temor mais fundo,
em seu calado embuste.
não tenho.ao corpo cabe sempre
um elo mais que a ilusão prolonga.
por quem vou sabendo doutras naves
que ao pensamento aportam
e a territórios mais virgens se abalançam.
contar-te-ei,depois,se tempo houver,
em que floresta ou rio se acendem já
as fogueiras mais rubras das palavras.
preencho a solidão de tua adaga.
mais fundo sempre,o coração o pede.
a cicatriz se fende,o golpe busca.
se ouvires por ti gritar,sou eu que chamo.
diz aos deuses que morro ou que renasço.

Hugo Santos
in "Os Poemas da Minha Vida de Urbano Tavares Rodrigues"

sábado, 7 de agosto de 2010

Jorge de Sena


A PIAF


Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca,
ou docemente lírica e sentimental,
ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do «ça ira»,
ou apenas recitar meditativa, entoada, dos sonhos perdidos,
dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa,
e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado
nas noites desesperadas da carne saudosa que se não conforma
de não ter tido plenamente a carne que a traiu,
esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte,
como exactamente a vida que os outros continuam vivendo
ante os olhos que se fazem garganta e palavras
para dizerem não do que sempre viram mas do que adivinham
nesta sombra que se estende luminosa por dentro
das multidões solitárias que teimam em resistir
como melodias valsando suburbanas
nas vielas do amor
e do mundo.

Quem tinha assim a morte na sua voz
e na vida.
Quem como ela perdeu
toda a alegria e toda a esperança
é que pode cantar com esta ciência
o desespero de ser-se um ser humano
entre os humanos que o são tão pouco.

6/10/1964

JORGE DE SENA

Geraldo Vandré "Para não dizer que não te falei das flores"

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Jorge de Sena


HEI-DE SER TUDO O QUE ELES QUEREM


Hei-de ser tudo o que eles querem:
a raiva é toda de eu não ser um espelho
em que mirem com gosto os próprios cornos,
as caudas com lacinhos, e os bigodes
de chibos capripédicos.
Não sou nem sequer imagem.
Mas voz eu sou
que como agulha ou lança ou faca ou espada
mesmo que não dissesse da miséria
de lodo e trampa em que se espojam vis
só porque existe é como uma denúncia.
Hei-de ser tudo, não o sendo. Um dia
– podres na terra ou nos caixões de chumbo
estes zelosos treponemas lusos
uma outra gente, e limpa, julgará
desta vergonha inominável que é
ter de existir num tempo de canalhas
de um umbigo preso à podridão de impérios
e à lei de mendigar favor dos grandes.


De cada vez que um governo necessita de segredos,
por segurança do Estado
ou para melhor êxito
nas negociações internacionais,
é o mesmo que negar,
como negaram sempre desde que o mundo é mundo,
a liberdade.

Sempre que um povo aceita que o seu governo,
ainda que eleito com quantas tricas já se sabe,
invoque a lei e a ordem para calar alguém,
como fizeram sempre desde que o mundo é mundo,
nega-se
a liberdade.

Porque, se há algum segredo na vida pública
que todos não podem saber
é porque alguém, sem saber,
é o preço do negócio feito.
E se há uma ordem e uma lei que não inclua
mesmo que seja o último dos asnos e dos pulhas
e o seu direito a ser como nasceu ou o fizeram,
a liberdade
é uma farsa,
a segurança
é uma farsa,
a ordem é uma farsa,
não há nada que não seja uma farsa,
a mesma farsa representada sempre
desde que o mundo é mundo,
por aqueles que se arrogam ser
empresários dos outros
e nem pagam decentemente
senão aos maus actores.

Jorge de Sena

Bastos Tigre


ESTA REPÚBLICA


É certo que a República vai torta;
Ninguém nega a duríssima verdade.
Da pátria o seio a corrupção invade
E a lei, de há muito tempo, é letra morta.

A quem sinta altivez, força e vontade
Ficou trancada do Poder a porta:
Mas felizmente a vida nos conforta
De esperança, uma dúbia claridade.

Porque (ninguém se iluda), "isto" que assim
A pobre Pátria fere, ultraja e explora,
Jamais o sonho foi de Benjamin.

Os motivos do mal não são mistério:
— É que a gentinha que governa agora
É o rebotalho que sobrou do Império.

Bastos Tigre
(1904)

Bertolt Brecht


ESSE DESEMPREGO

Meus senhores,
é mesmo um problema
Esse desemprego!
Com satisfação acolhemos
Toda a oportunidade
De discutir a questão.
Quando queiram os senhores!
A todo o momento!
Pois o desemprego é para o povo
Um enfraquecimento.

Para nós é inexplicável
Tanto desemprego.
Algo realmente lamentável
Que só traz desassossego.
Mas não se deve na verdade
Dizer que é inexplicável
Pois pode ser fatal,
Dificilmente nos pode trazer
A confiança das massas
Para nós imprescindível.

É preciso que nos deixem trabalhar
Pois seria mais que temível
Permitir ao caos vencer
Num tempo tão pouco esclarecido!
Algo assim não se pode conceber
Como esse desemprego!
Só nos pode convir
Esta opinião: o problema,
Assim como veio, deve sumir.
Mas a questão é esta: o nosso desemprego
Não será solucionado
Enquanto os senhores não
Ficarem desempregados!

Bertolt Brecht

A Rosa de Hiroshima

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Jorge de Sena


Independência

Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.

Recuso-me às espadas que não ferem
e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
e às almas que já foram conquistadas.

Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.

Recuso-me à inocência e ao pecado
como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida!

Jorge de Sena, in 'Coroa da Terra'
(30/06/1942)

Jorge de Sena


L'ÉTÉ AU PORTUGAL


Que esperar daqui? O que esta gente
não espera porque espera sem esperar?
O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é o pó de raiva com que se envenenam?

Emigram-se uns para as Europas
e voltam como se eram só mais ricos.
Outros se ficam envergando as opas
de lágrima de gozo e sarapicos.

Nas serras nuas, nos baldios campos,
nas artes e mesteres que se esvaziam,
resta um relento de lampeiros lampos
espanejando as caudas com que se ataviam.

Que Portugal se espera em Portugal?
Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?
Pagam-se impérios como o bem e o mal
- mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?

Chatins engravatados, pelenguentas fúfias
passam de trombas de automóvel caro.
Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços
ou sem pernas - e como cães sem faro
os pilhas poetas se versejam trúfias.

Velhos e novos, moribundos mortos
se arrastam todos para o nada nulo.
Uns cantam, outros choram, mas tão tortos
que a mesquinhez tresanda ao mais singelo pulo.

Chicote? Bomba? Creolina? A liberdade?
É tarde, e estão contentes de tristeza,
sentados em seu mijo, alimentados
dos ossos e do sangue de quem não se vende.

(Na tarde que anoitece o entardecer nos prende).

Jorge de Sena, Agosto 1971 - "Exorcismos", 1972

Gilberto Gil


BRINCAR PRA VALER


Se você quer brincar pra valer
Se você quer botar pra quebrar
Vem comigo, que eu vou com você
Na patota mais quente que há

Eu já disse pra toda a moçada aprender
Dançar frevo, sambar, comemorar
Quero ver todo mundo comigo
E você, meu irmão
Na puxada do refrão
Nas quebradas da vida
No sol da subida
Na ida e na volta legal
Eu faço o que posso
Na verdade eu mando e não peço
Eu sou o progresso
Na bandeira nacional

Gilberto Gil (1972)
in "Gil em Verso"