domingo, 22 de setembro de 2013

 PUDESSE O QUE PENSO.



Pudesse o que penso exprimir e dizer
Cada pensamento oculto e silente,
Levar meu sentir moldado na mente
A ser natural perante o viver;

Pudesse a alma verter, confessar
Os segredos íntimos em meu ser;
Grande eu seria, mas não pude aprender
Uma língua bem, que expresse o pesar.

Assim, dia e noite novo sussurar

E noite e dia sussurros que vão...
Oh! A palavra ou frase em que atirar

O que penso e sinto, acordando então
O mundo; mas, mudo, não sei cantar,
Mudo como as nuvens antes do trovão.


Fernando Pessoa
(1888-1935)

sábado, 21 de setembro de 2013

LÁGRIMA
 
 
Dos olhos me cais,
redonda formosura.
Quase fruto ou lua,
cais desamparada.
Regressas à água
mais pura do dia,
obscuro alimento
de altas açucenas.
Breve arquitectura
da melancolia.
Lágrima, apenas.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)





 ESTA MANHÃ.




Esta manhã viu-se tão bela no

seu próprio espelho que veio
urgente descerrar-me a janela
e a todos os pássaros do mundo.

Alexandre Pinheiro Torres
(1923-1999)

 O QUE HOJE APRENDI PARA DIZER-ME.

 

O que hoje aprendi para dizer-me
talvez não caiba no jeito do verso
não cabe, por minha falta
mas eu aprendi.

Desde hoje serei mais eu
estarei mais onde estiver

José de Almada Negreiros
(1893-1970)
LAMENTO

Pátria sem rumo, minha voz parada
Diante do futuro!
Em que rosa-dos-ventos há um caminho
Português?
Um brumoso caminho
De inédita aventura,
Que o poeta, adivinho,
Veja com nitidez
Da gávea da loucura?


Ah, Camões, que não sou, afortunado!
Também desiludido,
Mas ainda lembrado da epopeia….
Ah, meu povo traído,
Mansa colmeia
A que ninguém colhe o mel!.....
Ah, meu pobre corcel
Impaciente,
Alado
E condenado
A choutar nesta praia do Ocidente…

Miguel Torga
(1907-1995)
EXORCISMO


Canto
O meu desencanto.
Este cansaço
Lasso
De tudo quanto,

Esta melancolia
Penitente
De quem sente
Que luta e que porfia
Inutilmente.

Esta baça impressão
De que nada vale.
Esta tristeza triste
Que resiste
Às razões da razão inconformada.

Miguel Torga
(1907-1995)
 FICAM AS SOMBRAS.


Não. Não podeis levar tudo.
Depois do corpo,
E da alma,
E do nome,
E da terra da própria sepultura,
Fica a memória de uma criatura
Que viveu,
E sofreu,
E cantou,
E nunca se dobrou
À dura tirania que o venceu.
Fica dentro de vós a consciência
De que ali onde o mundo é mais vazio
Havia um homem.
E sabeis que se comem
Os frutos acres da recordação…
Fantasmas invisíveis que atormentam
O sono leve dos que se alimentam
Da liberdade de qualquer irmão.


Miguel Torga
(1907-1995)

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

 ESTRADAS ERMAS JUNTO AO MAR.

Pouco a pouco eles partiram
sonhavam outros mundos dentro
deste mundo. Levaram suas palavras
carregadas de bandeiras a esvoaçar
ao vento. Levaram o próprio vento
que por vezes trazia
as guitarras secretas da líricas ilusões.
E as tardes de Verão e o cheiro do jasmim
e as raparigas debruçadas das janelas
e as estrelas ardentes que deixavam
pelas estradas ermas junto ao mar.
Levaram o próprio mar que estava dentro
dos íntimos caminhos nunca desbravados.
Levaram os livros que narravam
as cidades futuras. Levaram
as próprias cidades e a abstracção
de suas casas e suas ruas
onde se juntavam todos e ninguém.

Levaram as manhãs anunciadas
e o amor de uma noite de um só
Verão. Levaram o próprio amor
levaram a noite e o Verão
as teorias e os teoremas
as gramáticas viradas do avesso
as praças os poemas
e sobretudo aquele verso
onde os povos passavam a cantar.

Pouco a pouco partiram. E só deixaram
estradas ermas junto ao mar.

Manuel Alegre
In "Nada Está Escrito"
DILEMA

É uma voz que me chama e me defende:
- Vem...; mas não venhas...; cada sonho é
Tanto mais vivo quanto mais se estende
A dura rota que nos leva ao pé.

E eu ouço a voz que prega no deserto,
E não paro nem volto; apenas sinto
Que, se chego, desperto,
E, se não chego, minto.”

 

Miguel Torga
(1907-1995)
 É ASSIM  A MÚSICA.


A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
- sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração – por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas.


Eugénio de Andrade
(1923-2005)
CONTRATO.

Se estiveres contente, dou-te uma maçã;
se tiveres medo, torço a tua mão;
e se me deixares, quero apertar-te,
sem te fazer mal, contra o coração.

Se eu estiver contente, dás-me uma maçã?
Se eu estiver com medo, torce a minha mão.
E se tu quiseres, podes apertar-me,
sem me fazer mal, contra o coração.

Isto é um contrato, só com dois se faz:
venho oferecer-to com desesperada
calma, sendo incerto que estes nossos jogos
possam dos amantes expulsar demónios.


Gastão Cruz

 QUANDO OS TEUS OLHOS ABSORVEM


Quando os teus olhos absorvem
todas as cores da minha
mais íntima tristeza,
e compreendes e calas e prometes
um lugar qualquer na tua alma,
e a tua voz demora a regressar
ao neutro compromisso das palavras,

sei que as tuas mãos ajudariam
a limpar estas lágrimas antigas
por dentro do meu rosto.

Vítor Matos e Sá
(1926-1975)
DO SENTIMENTO TRÁGICO DA VIDA.

Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.

Natália Correia
(1923 - 1993)

É DIFÍCIL NA VIDA ACHAR ALGUÉM.

É difícil na vida achar alguém
Que seja na verdade um grande amigo,
E se assim penso – e com tristeza o digo,
É porque o sei, talvez, como ninguém.

Se a amizade é um bem – e se esse bem
Traz o conforto de um divino abrigo,
Por mim, direi, que nunca mais consigo
Iludir-me nas graças que ele tem.

Afectos, sacrifícios, lealdade!,
Tudo se apaga ou fica na memória
Se a ilusão dá lugar à realidade.

E ai daqueles que pensam na excepção:
Acabam por ficar dentro da história
De que a vida é um sonho e uma traição.

António Botto
(1897 - 1959)

domingo, 8 de setembro de 2013



CANTAS: E A VIDA FICA SUSPENSA.
 


Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu. 



Eugénio de Andrade
(1923-2005)
SORRISO AUDÍVEL DAS FOLHAS


 Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

 

Fernando Pessoa
(1888-1935)
PROCLAMAÇÃO


A natureza não desce
a contratos. Nem a vida
se mede pela razão.

A vida é toda mistério.

Quem largamente se deu
não ofendeu a justiça
mas viveu do coração.




Ruy Cinatti
(1915-1986)



 DISPONIBILIDADE


Vem ver a vida
passar silenciosamente
como a ave no ar claro.

Vê-a que desce. Prende-a.
Nas tuas mãos em concha
fica um instante.

Deixa-a fugir. Outras há.

Ruy Cinatti
(1915-1986)

sábado, 7 de setembro de 2013

 CANÇÃO


As coisas que desejamos
tarde ou nunca as recebemos,
e as que menos queremos,
mais depressa as alcançamos.
 
   Porque a Fortuna desvia
aquilo que nos apraz,
mas o que pesar nos faz
ela mesmo pra nós guia.
E pelo que mais penamos
alcançar não o podemos,
e o que menos queremos
muito depressa alcançamos.

Juan del Encina
  (1468-1529)
(Trad. de José Bento)



 POESIA FÁCIL


Paz não procuro, guerra não suporto,
Tranquilo e só vou pelo mundo, e cheio
De cantos sufocados. Como anseio
Silentes névoas de um imenso porto!

Um porto a transbordar de velas leves
Quase a partir pelo horizonte azul
Em doce ondulação, enquanto exul
Perpassa o vento em seus acordes breves.

Acordes tais que o vento em si transporta
Longínquos sobre o mar desconhecido.
Eu sonho. A vida é triste. Estou sozinho.

Oh quando, quando a ardente madrugada
Em que a minha alma acordará no sol,
No eterno sol, fremente e libertada!

 
Dino Campana
 (1885-1932)
(Trad. de Jorge de Sena)
VIGÍLIA

Aqui estou eu sentado
ao lado de mim mesmo
para que nunca seja
aquele que não sou.

Não que eu seja muito
mas quero ser inteiro
porque faço parte
de um todo maior.

Eu pertenço a um povo,
povo que pertence
a todos os povos
mesmo que não saiba.

E todos os povos
respondem de cada
criança que nasce
sem o ter pedido.

De cada criança
eu sou responsável.
Nós todos o somos
se acaso nascemos.

Só nasce quem sabe
nascer de si mesmo
- quem não renasceu
que se vá embora.

Sidónio Muralha
(1920-1982)