sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

TERRA DE NINGUÉM

Todos têm para mim o desprezo dos fortes,
todos têm para mim
o desprezo
dos que encontram na vida um caminho
- que muitas vezes não encontraram
mas julgaram encontrar.

Caminho
que pode ser o seu
mas é um caminho...

Eu
continuarei a perder-me nos horizontes largos,
a andar às cegas entre o mal e o bem...

que a minha terra
é Terra de Ninguém.

João José Cochofel
(1919-1982)
AFINAL A VIDA.

Afinal a vida
é este roer de cardos velhos,
é este deitar-se na palha podre,
é este andar aos tombos pelas ruas:
ver os outros a rir e a chorar
- e chorar também
para que os outros riam,
e rir também
para que os outros chorem.
A vida é isto,
e não o que eu sonhei.

Raios partam a vida
tal como ela é.

João José Cochofel
(1919-1982)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

LASSO, TRISTE, VENHO

Lasso, triste, venho
do silêncio em mim.
Que escuro o caminho!
Que longe do fim!

Indeciso ainda
como um cristal baço;
mas que fome existe
já no meu cansaço!

Olho-me por dentro:
que frio, sozinho!
Aqueço-me ao fogo
do comum destino.

João José Cochofel
(1919-1982)
In "Os Dias Íntimos"
QUE SENSIBILIDADE.

Que sensibilidade me sobe
da passada adolescência?
Que agudeza dos sentidos
me perturba a consciência?

Surge do desencanto
um mundo a que me abandono.
Tranquilo e caricioso
como um sol de Outono.

A cor, a luz, as formas,
sinto-as de coração novo!
Em tudo desconheço
uma experiência que renovo.

Como quem sai
duma longa doença,
deslumbrado e comovido
pela convalescença.

João José Cochofel
(1919-1982)
In "Os Dias Íntimos"
FAZE QUE A TUA VIDA SEJA O QUE TE NEGA.

Faze que a tua vida seja o que te nega.
A luta é tua: fá-la.
Agora, os sonhos em farrapos,
melhor é a luta que pensá-la.

Ergue com o vigor do teu pulso;
solda-o em aço.
E da tua obra afirma.
– Sou o que faço.

João José Cochofel
(1919-1982)
ÂNSIA QUE SÓ TEM

Ânsia que só tem
o limite do sonho.
De tudo me vem
a dor que nela ponho.

Uma dor de esperança
que teima em romper
deste chão de raiva
que nos dão pra viver.

Mas que queremos arar
de flores e de frutos.
Oculte a seara
o campo de lutos.

João José Cochofel
(1919-1982)
VERDE E FRESCA

Verde e fresca
te queria.
Mais urgente
o pão de cada dia.

Verde e fresca te queria,
sem esse açoutado do olhar.
Mundo!, aos pobres
que outra coisa hás-de dar?

Verde e fresca te queria,
como desabrochaste outrora.
Tanta a diferença
a separar-te de agora!

Corpo murchando
no alvorecer da vida:
verde e fresca te queria.

Penosa é a lida
a quem dá a si próprio
o pão de cada dia.

João José Cochofel
(1919-1982)
A MINHA VIDA É...

A minha vida é como um certo corredor sombrio
de tecto baixo e lúgubre dos lados
com inúmeras portas mas fechadas
e só lá muito ao fundo se divisa
se é que se divisa uma janela
que nos promete árvores e relva
e um mundo de verdura que perdi

Ruy Belo
(1933-1978)

sábado, 8 de fevereiro de 2014

TALVEZ.

Talvez digas um dia o que me queres,
Talvez não queiras afinal dizê-lo,
Talvez passes a mão no meu cabelo,
Talvez eu pense em ti talvez me esperes.

Talvez, sendo isto assim, fosse melhor
Falhar-se o nosso encontro por um triz
Talvez não me afagasses como eu quis,
Talvez não nos soubéssemos de cor.

Mas não sei bem, respostas não mas dês.
Vivo só de murmúrios repetidos,
De enganos de alma e fome dos sentidos,
Talvez seja cruel, talvez, talvez.

Se nada dás, porém, nada te dou
Neste vaivém que sempre nos sustenta,
E se a própria saudade nos inventa,
Não sei talvez quem és mas sei quem sou.

Vasco GRAÇA MOURA

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

BEM SEI QUE ESTOU ENDOIDECENDO

Bem sei que estou endoidecendo.
Bem sei que falha em mim quem sou.
Sim, mas, enquanto me não rendo,
Quero saber por onde vou.

Inda que vá para render-me
Ao que o Destino me faz ser,
Quero, um momento, aqui deter-me
E descansar a conhecer.

Há grandes lapsos de memória
Grandes paralelas perdidas,
E muita lenda e muita história
E muitas vidas, muitas vidas.

Tudo isso; agora me perco
De mim e vou a transviar,
Quero chamar a mim, e cerco
Meu ser de tudo relembrar.

Porque, se vou ser louco, quero
Ser louco com moral e siso.
Vou tanger lira como Nero.
Mas o incêndio não é preciso.

Fernando PESSOA
(1888-1935)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

SEI QUE O ÚNICO CANTO

Sei que o único canto,
o único digno dos cantos antigos,
a única poesia,
é a que cala e ainda ama este mundo,
esta solidão que enlouquece e despoja.

Antonio Gamoneda
In "Oração Fria"
Trad. de João Moita

domingo, 2 de fevereiro de 2014

ULISSES

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

FERNANDO PESSOA
(1888-1935)
In "Mensagem"
VERDADE.

Nas tuas mãos autênticas, tamanhas
Que nelas cabe o mundo! ainda acredito
Que sejam altas, firmes, as montanhas
E puras as nascentes de granito.

O mais só nos enterra e só nos mente.
Que importa o azul do céu e o azul das águas?
O que eu procuro é gente
Que sinta o meu amor e as minhas mágoas!

Pedro Homem de Mello
(1904-1984)