segunda-feira, 28 de julho de 2014

DESCRIÇÃO DA CIDADE DE LISBOA


A rapariga a pensar naquilo, a rapariga ao sol, menina a comer cachorro quente, menina a dançar na rua, rapariga do dedo no olho, do dedo na árvore. Rapariga de braços levantados, rapariga de pés baixos, rapariga a roer as unhas, rapariga a ler jornal, rapariga a beber um líquido chardonnay, rapariga no vão de escada, rapariga a levar na cara. Rapariga aflita, rapariga solta, rapariga abraçada, rapariga precisada. Rapariga a fumar charuto, rapariga a ler Forster, rapariga encostada na palmeira, rapariga a tocar piano. Rapariga sentada em Mercúrio ao lado de um leão, rapariga a ouvir discurso de Ghandi, rapariguinha do shopping. Rapariga feita de átomos e sombra. Rapariga de um ponto ao outro e medindo quarenta e dois centímetros, rapariga impávida, rapariga serena. Rapariga apaixonada por igreja quinhentista, rapariga na moto a trocar velocidades a mudar o jeito. Rapariga que oferece à visão o hábito da escuridão e depois logo se vê. Rapariga de ossos partidos, rapariga de óculos negros, rapariga de camisola em poliéster, rapariga debruçada na cadeira da frente no cinema, rapariga a querer ser Antonioni. Rapariga estável, rapariga de mentira, rapariga a tomar café em copo de plástico, rapariga orgulhosa, rapariga na proa da nau africana. A rapariga a cair no chão, rapariga de pó na cara, rapariga abstémia, rapariga evolucionista. Rapariga de rosto cortado pela faca de Alfama, rapariga a fugir de compromissos, rapariga a mandar o talhante à merda, rapariga a assobiar, rapariga meio louca. Rapariga a deslizar manteiga no pão, rapariga a coçar um cotovelo, rapariga de cabelo azul. Rapariga a brincar com um isqueiro no bolso, rapariga a brincar com um revólver nas calças, rapariga a nadar, rapariga molhada, rapariga a pedir uma chance só mais uma ao santo da cidade. Rapariga a ostentar decote no inverno, rapariga a olhar pelo canto do olho esquerdo, rapariga a ser homem, rapariga na cama. Rapariga a subir o volume, rapariga a querer ser Dylan, rapariga a cuspir no chão. A rapariga a girar a girar a girar a girar no eixo de uma saia de seda amarela. Amarela da cor de um feixe de luz apanhado numa esquina.


Matilde Campilho
In " Jóquei"
 
ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS
AMAR NESTE LUGAR

Lembro-me muito bem do tal cantor basco
que costumava celebrar a chuva no verão
Não ligava quase nada para as conspirações
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade
naquela época do intermezzo lunar
Foi já depois do fascismo, um pouco antes
da democracia enfaixada em magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos
me ensinaram que se deve aproveitar a época
de transição para destrinçar o brilho
As revoluções sempre foram o lugar certo
para a descoberta do sossego:
talvez porque nenhuma casa é segura
talvez porque nenhum corpo é seguro
ou talvez porque depois de encarar uma arma
finalmente possa ser possível entender
as múltiplas possibilidades de uma arma.

Matilde Campilho
In "Jóquei"

domingo, 27 de julho de 2014

PARA VÓS O MEU CANTO

Para vós o meu canto companheiros de vida!
Vós, que tendes os olhos profundos e abertos,
vós, para quem não existe batalha perdida,
nem desmedida amargura,
nem acidez nos desertos;
vós, que modificais o leito de um rio;

- nos dias difíceis sem literatura,
penso em vós: e confio;
penso em mim : e confio;

- para vós os meus versos, companheiros de vida!

Se canto os búzios, que falam dos clamores,
das pragas imensas lançadas ao mar
e da fome dos pescadores,
- penso em vós, companheiros,
que trazeis outros búzios para cantar...

Acuso as falas e os gestos inúteis;
aponto as ruas tristes da cidade
e crivo de bocejos as meninas fúteis...
Mas penso em vós e creio em vós, irmãos,
que trazeis ruas com outra claridade
e outro calor no apertar das mãos.

E vou convosco. - Definido e preciso,
erguido ao alto como um grito de guerra,
à espera do Dia do Juizo...
Que o Dia do Juízo
não é no céu... é na Terra!

Sidónio Muralha
(1920-1982)

sábado, 26 de julho de 2014

ODE PAGÃ.

Viver! - O corpo nu, a saltar, a correr
Numa praia deserta, ou rolando na areia,
Rolando, até ao mar... (que importa o que a alma
anseia?)
Isto sim, é viver!

O Paraíso é nosso e está na terra. Nós
É que temos o olhar velado de incerteza;
E julgamos ouvir a voz da Natureza
Ouvindo a nossa voz.

Ilusões! O triunfo, o amor, a poesia...
Não merecem, sequer, um dia à beira-mar
Vivido plenamente, - a sorver, a beijar
O vento e a maresia.

Viver é estar assim, a fronte ao céu erguida,
Os membros livres, as narinas dilatadas;
Com toda a Natureza, em espírito, as mãos dadas
- O resto não é vida.

Que venha, pois, a brisa e me trespasse a pele,
Para melhor poder compreendê-Ia e amá-Ia!
Que a voz do mar me chame e ouvindo a sua fala,
Eu vá e seja dele!

Que o Sol penetre bem na minha carne e a deixe
Queimada para sempre! As ondas, uma a uma,
Rebentem no meu corpo e eu fique, ébrio de espuma,
Contente como um peixe!

Carlos Queiroz
(1907-1949)

domingo, 20 de julho de 2014

NATIVIDADE

Nascer e renascer...
Ser homem quantas vezes for preciso.
E em todas colher,
No paraíso,
A maçã proibida.
E comê-la, a saber
Que o castigo é perder
A inocência da vida.

Nascer e renascer...
Renovar sem descanso a condição.
Mas sem deixar de ser
O mesmo Adão
Impenitentemente natural,
Possuido da íntima certeza
De que não há pecado original
Que não seja o sinal doutra pureza.

Miguel TORGA
(1907-1995)
OS LOUCOS

Há vários tipos de louco.

O hitleriano, que barafusta.
O solícito, que dirige o trânsito.
O maníaco fala-só.

O idiota que se baba,
explicado pelo psiquiatra gago.
O legatário de outros,
o que nos governa.

O depressivo que salva
o mundo. Aqueles que o destroem.

E há sempre um
(o mais intratável) que não desiste
e escreve versos.

Não gosto destes loucos.
(Torturados pela escuridão, pela morte?)
Gosto desta velha senhora
que ri, manso, pela rua, de felicidade.

António Osório
in 'A Ignorância da Morte'
ÂNSIA QUE SÓ TEM

Ânsia que só tem
o limite do sonho.
De tudo me vem
a dor que nela ponho.

Uma dor de esperança
que teima em romper
deste chão de raiva
que nos dão pra viver.

Mas que queremos arar
de flores e de frutos.
Oculte a seara
o campo de lutos.

João José Cochofel
(1919-1982)
In "Os Dias Íntimos"

sábado, 5 de julho de 2014

EM MIM PRÓPRIO EU TROPEÇO.


Em mim próprio eu tropeço
como a água na água e, alta vaga,
a mim próprio me arrasto
sem sair do meu curso. E, como o vento
fere o ar, eu a mim próprio
me rejeito, e a poeira
sobe e escurece-me. Mas, tão leve
como a luz, acendo-me,
e o ar e a água reflectem
minha delida imagem
para ver-se - não ver-me.

Ángel Crespo
(1926-1995)
In "A Realidade Inteira"

terça-feira, 1 de julho de 2014

VIDA

"Calados, mudos,
no buraco metidos,
sem coragem de nos mexermos,
de medo transidos,
sempre despertos os cinco sentidos
não cheguem lá fora os ruídos
do mastigar das migalhas
das mesas caídas;
a vida cobarde a toda a hora agradecida,
como esmola recebida ...
isto não, não é vida!"

Joaquim Namorado
(1914-1986)
In "Incomodidade"