sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Manoel de Andrade


POR QUE CANTAMOS





Se tantas balas perdidas cruzam nosso espaço
e já são tantos os caídos nesta guerra…
Se há uma possível emboscada em cada esquina
e temos que caminhar num chão minado…
“você perguntará por que cantamos”
Se a violência sitia os nossos actos
e a corrupção gargalha da justiça…
Se respiramos esse ar abominável
impotentes diante do deboche…
“você perguntará por que cantamos”
Se o medo está tatuado em nossa agenda
e a perplexidade estampada em nosso olhar…
Se há um mantra entoado no silêncio
e as lágrimas repetem: até quando, até quando, até quando…
“você perguntará por que cantamos”
Cantamos porque uma lei maior sustenta a vida
e porque um olhar ampara os nossos passos.
Cantamos porque há uma partícula de luz no túnel da maldade
e porque nesse embate só o amor é invencível.
Cantamos porque é imprescindível dar as mãos
e recompor, em cada dia, a condição humana.
Cantamos porque a paz é uma bandeira solitária
a espera de um punho inumerável.
Cantamos porque o pânico não retardará a primavera
e porque em cada amanhecer as sombras batem em retirada.
Cantamos porque a luz se redesenha em cada aurora
e porque as estrelas e porque as rosas.
Cantamos porque nos riachos e lá na fonte as águas cantam
e porque toda essa dor desaguará um dia.
Cantamos porque no trigal o grão amadurece
e porque a seiva cumprirá o seu destino.
Cantamos porque os pássaros estão piando
e ninguém poderá silenciar seu canto.
Cantamos para saudar o Criador e a criatura
e porque alguém está parindo neste instante.
Pelo encanto de cantar e pela esperança nós cantamos
e porque a utopia persiste a despeito da descrença.
Cantamos porque nessa trincheira global, nessa ribalta
nossa canção viverá para dizer por que cantamos.
Cantamos porque somos os trovadores desse impasse
e porque a poesia tem um pacto com a beleza.
E porque nesse verso ou nalgum lugar deste universo
o nosso sonho floresce deslumbrante.

Manoel de Andrade

domingo, 26 de dezembro de 2010

Manoel de Andrade


CANÇÃO PARA OS HOMENS SEM FACE



Não canto minha dor…
dor de um só homem não é dor que se proclame.
Canto a dor dos homens sem face
canto os que tombaram crivados
os homens escondidos
os que conheceram a nostalgia do exílio
para os encarcerados.
Canto aos párias da vida…
aos bêbados, aos vagabundos e aos toxicómanos.
Canto as prostitutas
e as mulheres que foram embora com o homem amado.
Canto à multidão que entra e sai pelos portões das fábricas
aos que vêem o dia nascer no asfalto das rodovias
e aos lavadores de carros e aos que vendem a loteria
canto aos colectores de lixo e aos guardiões nocturnos
as longas filas de pessoas que esperam os ónibus nas praças
e aos estrangeiros que aqui vieram viver.
Canto os homens sem raízes, sem família, sem pátria
canto meu sonho quando canto os que viveram o mar
que aportaram em países distantes
e conheceram homens de muitas raças…
e quando canto os navios,
canto ao meu coração de barco.

Gosto de cantar tudo o que vejo
os homens que conheço
e os que ainda não começaram a existir para mim.
Gosto de caminhar sozinho e de mãos nos bolsos pelas ruas e pela vida
gosto de falar com os homens dos armazéns
dos mercados, das oficinas,
dos postos de gasolina,
das bancas de revistas, das agências de viagens,
com os ascensoristas, com os que consertam os esgotos da cidade,
e outros homens, outros.
E canto as crianças que brincam nos parques
e pulam corda nas calçadas
e os que vão ao palco representar o drama dos outros homens.

Eu canto para todos os homens…
meus irmãos em todas as raças, nacionalidades e crenças,
canto além de todas as fronteiras
porque sob a bandeira da paz eu canto;
e pela fé que me ilumina
e por essa canção escrita no meu peito,
eu canto a humanidade inteira.

Canto a vergonha de ser brasileiro num tempo defecado
canto meu povo
e se ainda não canto meu país,
é porque não sei cantar na presença de homens indecentes;
eu canto sobretudo para aqueles que preservaram seu sonho,
para os que ousaram lutar e morrer por ele,
canto a memória de um guerrilheiro argentino.
E eis que meu verso se endurece
para que eu cante meu melhor combate
e só assim posso cantar para os irmãos e camaradas
recrutando companheiros para a luta…
e quando meu canto é feito para os ouvidos dos justos,
eu canto sem temor,
para que minha canção palpite solitária e solidária
no coração daqueles que se preservaram da lama.

Canto sem medo e sem brinquedo
e enfileiro meus versos para a luta
prontos para ferir como baionetas
prontos a morrer se for preciso.
Como guerreiros invisíveis
meus versos se infiltrarão no país dos corruptos pelas fronteiras das entre-
-linhas
e renascerão nos lábios dos militantes
ora como uma flor, ora como um fusil.
Ah, que tempos são esses!?
já não reconheço nestes versos os versos de poeta que fui;
meu canto é hoje um canto transtornado pelo pacto desumano dos homens,
pelo triste dever de indignar-se,
pela violência estampada nas manchetes dos jornais…
e eis que um poeta não canta sem que seu verso quase desfaleça.
E hoje…
nestes dias encardidos de actos e decretos,
neste tempo suspenso num mastro sem bandeiras,
nesta nação de homens que ingerem caldo de galinha,
neste momento tísico
em que somente os finórios se regozijam,
nestes anos em que o sangue da América é um imenso canto de esperanças,
este poema chega assim tão de repente
rogando uma audiência para falar comigo,
como se soubesse que estou para morrer,
e me encontra prostrado num bacanal de coisas fúteis,
um inconsciente talvez…
um homem inútil
quase um desertor
meu Deus, quase um desertor.

Ah, meus versos
minha absolvição…
neles renasço transfigurado e forte
e cavalgo o universo inteiro;
e caminho cheio de amor por todos os seres
e por todas as coisas;
cheio de asco pelos tiranos
e pelos homens hipócritas
e sinto o coração limpo e maciço de ternura
meu canto crescer e explodir mais forte que a bomba.

Ah, meus versos,
meus versos que não são meus,
que são de todos os homens e de todas as mulheres que eu canto;
que são de todos os que se aproximam de mim
e que falam comigo.
Meus versos que afinal nunca serão de ninguém,
caminhando pela terrível solidão branca do papel,
pelo itinerário clandestino das gavetas;
estampados nas palavras escarlates da minha revolta pública,
impressos no meu olhar solitário de samurai.

Eu canto para todos os homens
contudo, neste tempo,
eu canto para os homens sem face…
aqueles que se perdem na multidão das grandes cidades,
e que amadurecem, a cada dia,
os punhos para a luta.

Curitiba, Setembro de 1968


De Manoel de Andrade para José Macedo de Alencar, in " POEMAS PARA A LIBERDADE" editado por "Escrituras" em 2009

António Botto


HOMEM


Homem, que vens de humanas desventuras,
que te prendes à vida e te enamoras,
que tudo sabes e que tudo ignoras,
vencido herói de todas as loucuras,

que te debruças pálido nas horas
das tuas infinitas amarguras,
e na ambição das coisas mais impuras
és grande simplesmente quando choras,

que prometes cumprir e que te esqueces,
que te dás à virtude e ao pecado,
que te exaltas e cantas e aborreces,

arquitecto do sonho e da ilusão,
ridículo fantoche articulado
− eu sou teu camarada e teu irmão.

António Botto
(1897-1959)

José Craveirinha


AFORISMO

Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.
Estávamos iguais
com duas diferenças:
Não era interrogada
e por descuido podiam pisa-la.
Mas aos dois intencionalmente
podiam por-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.

José Craveirinha
(1922-2003)

Mário Dionísio


DEPOIS DE MIM


Um dia (sei-o bem)
os campos ficarão eternamente floridos
e a chaga que me inquieta
deixará de sangrar em todos os peitos.
Os homens já não estarão curvados sobre as terras.
E a leiteira não virá mais trazer-me as bilhas com seu ar de humildade.
A mulher dos ovos e o homem da fruta,
o rapaz pobre envergonhado de dizer: eu sei,
o camponês prestando contas da estação,
os vultos negros do subsolo,
a linda mãe solteira,
deixarão de sorrir com humildade.
Humildade ficará nos dicionários como esqueleto em museu arqueológico.

Eu próprio nunca mais farei baixar as pálpebras
e deixarei que o sol me inunde bem nos olhos.

Um dia
(ah sinto-o bem para além das milhentas folhas de todos os tratados).
uma onda de amor invadirá tudo e todos.
E será uma primavera diferente de todas as primaveras
porque ainda não foram inventadas as palavras para exprimi-la.

Simplesmente, nesse dia primeiro da nova criação, eu já terei partido.
Minha carne estará funda de mais para sentir o beliscão da alegria.
E os olhos cheios de terra
não verão os campos levantados
nem os campos eternamente floridos
nem a leiteira sem o seu ar de humildade

Porém, que importa?
Um dia, sei-o bem, todos estarão até-que-enfim de acordo.
Que importa a minha ausência?
Que importa que eu não venha a saborear os frutos da própria árvore?
Que é isso -
ao pé da inabalável certeza desse dia admirável?

Março de 1938.

Mário Dionísio
(1916-1993)
in "A Poesia da Presença"

Afonso Duarte


PSICANÁLISES


HOJE

Podem encher-me os punhos de grilhetas
Ou pregar numa cruz a vida minha;
Não é canto propício de poetas
O velho medo que guarda a vinha.

ONTEM

O antigo é a doença que eu mais detesto;
É viciar o que já foi virtude!
O tornar ao Passado é sempre um resto,
Ou pior, uma falta de saúde.

EXÍLIO

O branco é gesso, é cal para as ossadas,
E eu não lhe encontro asseio de alegria;
Caiei por isso a rosa - alexandria
Minhas quatro paredes exiladas.

Afonso Duarte
(1884-1958)

sábado, 25 de dezembro de 2010

Adolfo Casais Monteiro


FANTASIA


Despedacei tanto sonho
ao correr atrás da vida,
que tendo-a por mim segura
e com ela os meus segredos
vi que deixava perdidas
as razões desse correr,
e que tendo enfim a chave
já perdera a fechadura.


Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)

Cristovam Pavia


QUE CADA PALAVRA


Que cada palavra trema dizendo
O que não pode ser dito.
E seja a poesia um violino de silêncio
Infinito:

E tu, poeta, vagabundo e despido,
Desprende-te do resto e deixa-os declamar
As vãs frases humanas. Não as ouças,
Vagabundo que passas cantando.

Cristovam Pavia
(1933-1968)

Jorge de Sena


OS PARAÍSOS ARTIFICIAIS


Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.

Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.

Os cânticos das aves - não há cânticos,
mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º.
E a música do vento é frio nos pardieiros.

Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.

A minha terra não é inefável.
A vida da minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.

(3/5/1947)

Jorge de Sena
(1919-1978)
in "Pedra Filosofal"
(1950)

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Miguel Torga


ÚLTIMO NATAL


Menino Jesus, que nasces
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Com ele me desobrigo e desengano:
És divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.

Gaia, 24 de Dezembro de 1990
Miguel Torga
(12/08/1907-17/01/1995)
Foi o último poema de Natal (dos vários que escreveu).Escrito a 24 de Dezembro de 1990. Torga morreria a 17 de Janeiro de 1995.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Miguel Torga


AMEAÇA DE MORTE

Não basta ter-me dado nos meus versos:
pedem a carne e a pele, os inimigos.
Os olhos, dois postigos
de olhar o mundo sem ninguém me ver,
querem-nos entaipados;
e quebrados
os braços, que eram ramos a crescer.

Luto, digo que não, peço socorro,
mas saiu-me ao caminho uma alcateia.
Lobos da liberdade alheia
que me seguem os passos hora a hora,
sem que eu possa sequer adivinhar,
na paisagem de medo tumular,
qual deles salta primeiro e me devora.

Miguel Torga

Miguel Torga


IDENTIDADE

Matei a lua e o luar difuso
Quero os versos de ferro e de cimento
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento

Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo coração que se debate aflito
e luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.

Miguel Torga
(1907-1995)

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Alberto Caeiro


QUANDO VIER A PRIMAVERA

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
(1888-1935)

Federico García Lorca


GAZEL DO AMOR DESESPERADO

A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei,
inda que um sol de lacraus me coma a fronte.

Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.

O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei
entregando aos sapos meu mordido cravo.

Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridade.

Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.

Federico García Lorca, in 'Divã do Tamarit'
Tradução de Oscar Mendes

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Rabindranath Tagore


TU E EU


Tu enches os meus pensamentos
Dia após dia;
Saúdo-te na solidão
Fora do mundo;
Tu tomaste posse
Da minha vida e da minha morte.

Como o sol ao nascer
A minha alma contempla-te
Com um único olhar.
És como o alto céu,
Eu sou como o mar infinito
Com a lua cheia no meio;
Estás sempre em paz,
Eu estou sempre inquieto,
Embora no horizonte distante
Nos encontremos sempre.

Rabindranath Tagore
(1861-1941)
Tradução de José Agostinho Baptista.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Jorge de Sena


A MISÉRIA DAS PALAVRAS


Não: não me falem assim na miséria, nos pobres,
na liberdade.

Se a miséria e a pobreza
fossem o vómito que deviam ser posto em palavras,
a imaginação possuída e vomitada que deviam ser,
viria a liberdade por acréscimo,
sem palavras, sem gestos, sem delíquios.

Assim, apenas se fala do que se não fala,
apenas se vive do que não se vive,
apenas liberdade é uma miséria
sem nome, sem futuro, sem memória.

E a miséria é isso: não imaginar
o nome que transforma a ideia em coisa,
a coisa que transforma o ser em vida,
a vida que transforma a vida em algo mais
que o falar por falar.

Falem. Mas não comigo. E sobretudo
sejam miseráveis, e pobres, sejam escravos,
no silêncio que à linguagem faz
imaginar-se mais que o próprio mundo.

5/8/1962

Jorge se Sena
(1919-1978)
in "Antologia Poética"

Jorge de Sena


IDEÁRIO PARA A CRIAÇÃO


Quando, em ti próprio, ouvires algum combate
do sonho em luta com a sua própria alma
e o mundo te parecer maior que a vida
e a vida te parecer a velha estrada
onde só tu não perseguiste o sonho,
defende, de ambos, o que for vencido.

Quando, à tua beira, houver um perseguido
e o escárneo se abater sobre o que ele pensa
e o mundo inteiro o perseguir mentindo
uma mentira maior que a dessa ideia,
defende-a como tua antes que o mundo
esmague em si próprio a chama em que se ateia.

Quando, como hoje, os crimes forem tantos
que as praias sequem no desdém das ondas,
e o melhor homem for um criminoso
voltando ansioso ao local do crime,
e o sangue nem lhe suje a ansiedade
porque não há mais sangue que ciências loucas,
grita aos ventos da morte que os traíram -
e na terra se ouça que a verdade é falsa
e só eram verdade os que partiram.

Penafiel, 29/8/1942

Jorge de Sena
(1919-1978)
in "Antologia Poética"

Jorge de Sena


GLÓRIA


Um dia se verá que o mundo não viveu um drama

Todas estas batalhas, todos estes crimes,
todas estas crianças que não chegam a desdobrar-se em
[carne viva
e de quem, contudo, fizeram carne viva logo morta,
todos estes poetas furados por balas
e todos os outros poetas abandonados pelos que
nem coragem tiveram de matar um homem,
toda esta mocidade enganada e roubada
e a outra que morreu sabendo que a roubavam,
todo este sangue expressamente coalhado
à face integra da terra,
tudo isto é o reverso glorioso do findar dos erros.

Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer.

(Jorge de Sena, 6 de Abril de 1942)
Jorge de Sena
(1919-1978)
in "Antologia Poética"

Herberto Helder

(Retrato de Frederico Penteado)
A CARTA DA PAIXÃO

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
A têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cravada
no espelho. Ou ainda a fenda
da fronte por onde começa a estrela animal.

Queima-se a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mundança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol
lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.

Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

Herberto Helder
in "Ofício Cantante" (Poesia Completa)

Sophia de Mello Breyner Andresen


NESTES ÚLTIMOS TEMPOS


Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças

Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?

Que diremos do lixo do seu luxo – de seu
Viscoso gozo da nata da vida – que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?

Que diremos da sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?

Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
De suas fintas labirintos e contextos?

Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto

Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?

Sophia de Mello Breyner Andresen
Julho de 1976
(1919-2004)

António Gedeão


POEMA DAS COISAS


Amo o espaço e o lugar, e as coisas que não falam.
O estar ali, o ser de certo modo,
o saber-se como é, onde é que está, e como,
o aguardar sem pressa, e atender-nos
da forma necessária

Serenas em si mesmas, sempre iguais a si próprias,
esperam as coisas que o desespero as busque.

Abre-se a porta e o próprio ar nos fala.
As cortinas de rede, exactamente aquelas,
a cadeira onde a memória está sentada,
a mesa, o copo, a chávena, o relógio,
o móvel onde alguém permanece encostado
sem volume e sem tempo,
nós próprios, quando os olhos indignados
nas pálpebras se encobrem.

Põe-se a pedra na mão, e a pedra pesa,
pesa connosco, forma um corpo inteiro.
Fecha-se a mão, e a mão toma-lhe a forma,
conhece a pedra, entende-lhe o feitio,
sente-a macia ou áspera, e sabe em que lugares.
Abre-se a mão, e a mesma pedra avulta.

Se fosse o amor dos homens
quando se abrisse a mão já lá não estava.

António Gedeão
(1906-1997)

sábado, 18 de dezembro de 2010

José Alberto Oliveira


A EDUCAÇÃO DOS FILHOS

Devem criar-se com displicência os filhos,
o descuido de os ter já em si chega.
é reprovável adoçá-lo com hipocrisia.

Oferecer-lhes jogos, alguma paciência
e participar pouco - que o abandono deles
nos redima de toda a imprevidência.

A vida que não lhes rime assim tão consoante,
como se não tivessem que trepar árvores
e cortar os joelhos ao cair da bicicleta.

Nunca ensinar nada - o que não sabem
terão sempre que aprender da pior maneira.
Recordar-lhes apenas a confiança no que praticam:

escreverem nos livros de que gostam,
não lerem os que aborreçam; descrer
do grave, que será frágil o que perdura.

José Alberto Oliveira
in "Por Alguns Dias"

William Carlos Williams


RETRATO PROLETÁRIO


Uma jovem alta sem chapéu
de avental

Parada na rua com o cabelo
puxado para trás

Um pé com a peúga tocando
a calçada

O sapato na mão. Examinando-o
atentamente

Retira a palmilha
à procura do prego

Que a magoava tanto

William Carlos Williams
(1883-1963)
Tradução de José Agostinho Baptista.

Ruy Cinatti


VIGÍLIA


Paralelamente sigo dois caminhos
Abstracto na visão de um céu profundo.
Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua
Com voz semelhante à minha. O melhor do mundo
Está por descobrir. Não segue a lua
Nem o perfil da proa. Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado e oculto.

Quero-me mais dentro de mim, mais desumano
Em comunhão suprema, surto e alado
Nas aragens nocturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixes à tona de água
E precipitam asas na esteira de luz.
Da vida nada se leva, senão a melhoria
De um paraíso sonhado e procurado
Com ternura, crueldade e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar. Ameno
Brincar de almas verticais em pleno
Sol de alvorada que descerra as pálpebras.

Ruy Cinatti
(1915-1986)

Ricardo Reis


SE RECORDO QUEM FUI.

Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece,
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.

26/05/1930
Ricardo Reis
(1888-1935)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Charles Baudelaire


ELEVAÇÃO


Por sobre os grandes vales, sobre os pantanais,
As montanhas, as nuvens, os mares, as florestas,
Para lá deste sol, para além da atmosfera,
Para lá dos confins das esferas astrais,

Tu moves-te, meu espírito, com agilidade,
E, qual bom nadador deleitado nas ondas,
Sulcas alegremente a imensidão profunda
Com a tua viril voluptuosidade.

Voa para bem longe dos mórbidos miasmas;
Tenta purificar-te no ar superior
E bebe, como um puro e divino licor,
O branco fogo que enche os límpidos espaços.

Por trás destes desgostos e aborrecimentos
Que nos sobrecarregam a vida brumosa,
Feliz de quem consegue, de asas vigorosas,
lançar-se pelos campos claros e serenos;

Aquele cujo pensar é como a cotovia,
Rumo ao céu de manhã, tomando o seu impulso,
- Quem paira sobre a vida e sem esforço decifra
A linguagem das flores e de outras coisas mudas!

Charles Baudelaire
(1821-1867)
in "As Flores do Mal"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral.

Rosalía de Castro


DIZEM QUE AS PLANTAS NÃO FALAM...


Dizem que as plantas não falam, nem as fontes, nem os pássaros,
Nem a ondas com seus rumores, nem com seu brilho os astros.
Dizem; mas não é verdade, pois que sempre, quando eu passo, de mim murmuram e exclamam:
- Lá vai a louca, sonhando
Com a eterna primavera da existência e dos campos,
E já bem cedo, não tarda, terá os cabelos brancos,
E vê tremendo, aterrada, cobrir a geada o prado.
- Há brancas no meu cabelo, caiu nos prados a geada;
mas continuo sonhando, pobre, incurável, sonâmbula,
com a eterna primavera desta vida que se apaga,
com a perene frescura das campinas e das almas,
mesmo quando aquelas secam e quando estas se abrasam.
Astros e fontes e flores! Não murmureis de que eu sonhe.
Sem sonhos, como admirar-vos? Como, sem eles, viver?

Rosalía de Castro
(1837-1885)
in "Mesa de Amigos"
(versões de poesia por Pedro da Silveira)

Francisco Brines


SONHO PODEROSO


Qual é a glória da vida, agora
que não há glória nenhuma
senão a empobrecida realidade?
Acaso conhecer que o desengano
não te arrancou esse desejo fundo
de viver mais?

A glória da vida foi acreditar
que existia o eterno;
ou talvez fosse a glória da vida
aquele poder simples
de criar, com o claro pensamento
a fiel eternidade.
A glória da vida, e o seu fracasso.

Francisco Brines (1932)
"Ensaio de uma Despedida"
Tradução de José Bento.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Mário Cesariny de Vasconcelos


DISCURSO AO PRÍNCIPE DE EPAMINONDAS,
MANCEBO DE GRANDE FUTURO

Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem.

Mário Cesariny de Vasconcelos
(1923-2006)
Do Manual de Prestidigitação

Federico García Lorca


CIDADE SEM SONO

(Nocturno na ponte de Brooklin)



Ninguém dorme no céu. Ninguém, ninguém.
Não dorme ninguém.
As criaturas da lua cheiram e rondam as choupanas.
Virão iguanas vivas morder os homens que não sonham
e o que foge com o coração partido encontrará pelas esquinas
o incrível crocodilo imóvel sob o frouxo protestos dos astros.


Ninguém dorme no mundo. Ninguém, ninguém.
Não dorme ninguém.
Há um morto no cemitério mais longínquo
que se queixa há três anos
porque tem uma paisagem seca no joelho
e o menino que enterram esta manhã chorava tanto
que foi preciso chamar os cães para calá-lo.


A vida não é sonho. Alerta! Alerta! Alerta!
Caímos pelas escadas para comer a terra húmida
ou subimos ao gume da neve com o coro das dálias mortas.
Mas não há esquecimento nem sonho:
carne viva. Os beijos atam as bocas
num emaranhado de veias recentes
e a quem dói a sua dor doerá sem descanso
e o que teme a morte levá-la-á sobre os ombros.


Um dia
os cavalos viverão nas tabernas
e as formigas furiosas
atacarão os céus amarelos que se refugiam nos olhos das vacas.


Outro dia
veremos a ressurreição de mariposas dissecadas
e ainda, ao andar por uma paisagem de esponjas pardas e barcos mudos
veremos brilhar nosso anel e brotar rosas de nossa língua.
Alerta! Alerta! Alerta!
Aos que guardam ainda pegadas de garra e aguaceiro,
àquele rapaz que chora porque não sabe a invenção da ponte
ou àquele morto que já não tem mais que a cabeça e um sapato,
há que levá-los ao muro onde iguanas e serpentes esperam,
onde espera a mão mumificada do menino
e a pele do camelo se eriça com um violento calafrio azul.


Não dorme ninguém no céu. Ninguém, ninguém.
Não dorme ninguém.
Mas se alguém fecha os olhos,
chicoteai-o, meus filhos chicoteai-o!
Haja um panorama de olhos abertos
e amargas chagas acesas.
Não dorme ninguém pelo mundo. Ninguém, ninguém.
Já o disse.
Não dorme ninguém.
Mas se alguém de noite tem demasiado musgo nas têmporas,
abri os alçapões para ver sob a lua
as falsas taças, o veneno e a caveira dos teatros.

Federico García Lorca
(1898-1936)
Tradução de José bento.

Enrique Morente (1942-2010) canta "Cidade Sem Sono" de Federico García Lorca.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Manuel Afonso Costa


A MEMÓRIA


A memória é uma tarde de setembro
um deus que te visita
a fruta pressentida pelo desejo

um corpo nu de criança
estendido ao sol
sobre a erva a roupa branca o seu incêndio

o equilíbrio difícil da sombra
um olhar bravio que te espia e dentro
da boca poisa

e por fim escorre dentro de ti
e não podes fazer nada.


Manuel Afonso Costa
in "Os últimos Lugares"

Ruy Belo


PEREGRINO E HÓSPEDE SOBRE A TERRA


Meu único país é sempre onde estou bem
é onde pago o bem com sofrimento
é onde num momento tudo tenho
O meu país agora são os mesmos campos verdes
que no outono vi tristes e desolados
e onde nem me pedem passaporte
pois neles nasci e morro a cada instante
que a paz não é palavra para mim
O malmequer a erva o pessegueiro em flor
asseguram o mínimo de dor indispensável
a quem na felicidade que tivesse
veria uma reforma e um insulto
A vida recomeça e o sol brilha
a tudo isto chamam primavera
mas nada disto cabe numa só palavra
abstracta quando tudo é tão concreto e vário
O meu país são todos os amigos
que conquisto e que perco a cada instante
Os meus amigos são os mais recentes
os dos demais países os que mal conheço e
tenho de abandonar porque me vou embora
porque eu nunca estou bem aonde estou
nem mesmo estou sequer aonde estou
Eu não sou muito grande nasci numa aldeia
mas o país que tinha já de si pequeno
fizeram-no pequeno para mim
os donos das pessoas e das terras
os vendilhões das almas no templo do mundo
Sou donde estou e só sou português
por ter em portugal olhado a luz pela primeira vez

Ruy Belo (1933-1978)

domingo, 12 de dezembro de 2010

Carmen Zita Ferreira


SER DIFERENTE


Ser diferente!
Ser maior ou ser menor,
Mas ser diferente!
Eis o desejo de muito poucos,
Eis o desejo dos que chamam loucos.
Ser diferente é ser só,
É ser sozinho como cada fragmento de pó.
À diferença a desventura
Se associa em comum loucura.

Ser diferente!
Caminhar nas vielas da dor.
Ser diferente,
Eis o que almeja o sofredor,
Eis o que anseia quem sentiu verdadeiro amor.
Ser diferente é ser verdadeiro,
É ser destemido e aventureiro.
Não encarar cada manhã eufórica,
Como uma etapa meramente histórica.

Carmen Zita Ferreira
in " II Antologia de Poetas Lusófonos"

Jorge de Sena


FIDELIDADE

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

Jorge de Sena
(1919-1978)

Roberto Juarroz


HOJE DÓI-ME PENSAR


Hoje dói-me pensar,
dói-me a mão com que escrevo,
dói-me a palavra que ontem disse
e também a que não disse,
dói-me o mundo.

Há dias que são como espaços preparados
para que tudo doa.

Só Deus não me dói hoje.
Será porque hoje ele não existe?

Roberto Juarroz
(1925-1955)
Tradução de Arnaldo Saraiva.

José Manuel Díez


A ALEGRIA, A AUSÊNCIA


Nunca foi a alegria
maior que entre os teus braços.
Nem maior a ausência do que sem eles.

José Manuel Díez
Tradução de Eduardo Fonseca dos Santos.

Jorge Luis Borges


ARTE POÉTICA


Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como água.

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou até no ano um símbolo
Quer dos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver só na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, assim é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso

Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar Ítaca
Verde e humilde, A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.

Jorge Luis Borges
(1899-1986)
Tradução de Ruy Belo

sábado, 11 de dezembro de 2010

Juan Ramón Jiménez


O ÚNICO AMIGO

Não me alcançarás, amigo.
Chegarás ansioso, louco;
mas eu já terei partido.

(E que medonho vazio
tudo o que tiveres deixado
atrás, para vir comigo!

Que lamentável abismo
tudo quanto eu tenha posto
entre nós, sem culpa, amigo!)

Não poderás ficar, amigo.
Voltarei talvez ao mundo.
Mas tu já terás partido...

Juan Ramón Jiménez, in "Forma del Huir"
(1881-1958)
Tradução de José Bento

Rafael Cadenas


FRACASSO


Quando supus ser vitória é fumo apenas.

Fracasso, linguagem do fundo, pista de outro espaço mais exigente, difícil de entreler é tua letra.

Quando punhas tua marca em minha fronte, nunca pensei na mensagem que trazias, mais preciosa que todos os triunfos.
Teu rosto chamejante perseguiu-me e eu não soube que era para salvar-me.
Para meu bem desterraste-me para lugares recônditos,
negaste-me êxitos fáceis, cortaste-me saídas.
Era a mim que querias defender ao não me conceder brilho.
De puro amor por mim manejaste o vazio que tantas noites me fez falar febril a uma ausente.
Para proteger-me deixaste passar outros, fizeste que uma mulher prefira alguém mais ousado, afastaste-me de ofícios suicidas.

Vieste sempre dar a cara.

Sim, teu corpo chagado, cuspido, odioso, recebeu-me na minha mais pura forma para me entregar à nitidez do deserto.
Por loucura amaldiçoei-te, maltratei-te, blasfemei contra ti.

Tu não existes.
Foste inventado pela soberba delirante.

Quanto te devo!
Levantaste-me a um nível limpando-me com uma áspera esponja, lançando-me para o meu verdadeiro campo de batalha,
cedendo-me as armas que o triunfo abandona.

Levaste-me pela mão à única água que me reflecte.
Por ti não conheço a angústia de representar um papel, manter-me à força num alto, trepar com esforços próprios, discutir por causa de hierarquias, inchar até rebentar.
Fizeste-me humilde, silencioso e rebelde.
Não te canto pelo que és, mas pelo que não me deixaste ser. Por não me dares outra vida. Por me teres diminuído.

Ofereceste-me somente nudez.
É verdade que me ensinaste com dureza e tu mesmo trazias o cautério!, mas também me deste a alegria de não te recear.
Obrigado por me tirares espessura em troca de uma letra grande.

Obrigado a ti, que me privaste de vaidades.
Obrigado pela riqueza a que me obrigaste.
Obrigado por me construir com meu barro a minha morada.
Obrigado por me afastares.
Obrigado.

Rafael Cadenas (trad: José Bento)
Venezuela (n. 1930)

Fernando Guimarães


TUDO O QUE VÊS CHEGA DE LONGE


Tudo o que vês chega de longe: apenas um contorno
ou uma sombra que se desloca devagar. Há gestos
semelhantes a folhas que não caem. Principia agora
a luz a espalhar-se à nossa volta e a verdade torna-se
mais simples. É como um rosto que reconhece a sua idade.

Fernando Guimarães

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Manólis Anagnotákis


A DICISÃO


Vocês são a favor ou contra?
Respondam sim ou não.
Decerto já pensaram no problema
Creio sinceramente que ele os tem preocupado.
Tudo na vida traz preocupações
Crianças mulheres insectos
Plantas nocivas, horas sem proveito
Paixões difíceis, dentes cariados
Filmes medíocres. E isto decerto os preocupa.
Sejam responsáveis e digam: Sim ou não.
A vocês é que cabe decidir.
Não lhes pedimos evidentemente que abandonem
Suas ocupações, que interrompam sua vida
O jornal preferido o bate-papo
No barbeiro os domingos ao ar livre.
Uma palavra só. Vamos, então:
Vocês são contra ou a favor?
Pensem bem: Eu fico à espera.

Manólis Anagnostákis
(Tradução de José Paulo Paes)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

José Hierro



RESPOSTA


Quisera que me entendesses sem palavras.
Falar-te sem palavras, como se fala à minha gente.
Que a mim me entendesses sem palavras
como eu entendo o mar ou a brisa enlaçada num álamo verde.

Perguntas-me, amigo, e não sei responder-te;
há muito que aprendi fundas razões que não entendes.
Revelá-las quisera, pondo o sol invisível em meus olhos,
a paixão com que a terra doura seus frutos ardentes.

Perguntas-me, amigo, e não sei a resposta que hei-de dar-te.
Sinto arder louca alegria nesta luz que me envolve.
Quisera que a sentisses também a inundar-te a alma,
quisera que a ti, no mais fundo, também te queimasse e te ferisse.
Criatura também de alegria eu quisera que fosses,
criatura que chega por fim a vencer a tristeza e a morte.

Se agora eu te dissesse que havia de andar por cidades perdidas
e chorar em suas ruas escuras por se sentir débil,
e cantar sob uma árvore de estio os teus sonhos sombrios,
e sentir-te feito de ar e nuvem e erva muito verde...

Se agora eu te dissesse
que é tua vida essa rocha em que as ondas se quebram,
a própria flor que vibra e se enche de azul sob o claro nordeste,
aquele homem que vai pelo campo nocturno com uma tocha,
o menino que açoita o mar com a mão inocente...

Se eu te dissesse, meu amigo, estas coisas,
que fogo porias em minha boca, que ferro incandescente,
que odores, cores, sabores, contactos, rumores?
E como saber se me entendes?
Como entrar em tua alma, quebrando o seu gelo?
Como fazer-te sentir a morte vencida para sempre?
Como penetrar em teu inverno, levar o luar à tua noite,
Pôr em tua escura tristeza labaredas celestes?

Sem palavras, amigo; tinha que ser sem palavras
para tu me entenderes.

José Hierro
(1922-2002)
Tradução de José Bento.

Francisco Brines


A CARNE E O SONHO

O tempo é mau ladrão: somente rouba ao homem
seus territórios de infeliz mendigo.
Mas se aquelas desditas pudesse recuperá-las,
não voltaria a ser a sombra que foi antes,
mas esse rei lendário que ainda tem que nascer.

O sonho é a matéria de que está feito o deus,
e, como a água ao fogo, aniquila-o a carne.

Francisco Brines
(Tradução de José Bento)

Luis Cernuda


PEREGRINO

Voltar? Volte o que esteja,
Após longos anos e longa viagem,
Exausto do caminho e cobiçoso
De sua terra, sua casa, seus amigos,
Do amor fiel que no regresso o espere.

Mas, tu? Voltar? Regressar não penses,
Senão seguir em frente, livre,
Livre para sempre, moço ou velho,
Sem filho que te busque, como a Ulisses,
Sem Ítaca que espera e sem Penélope.

Segue, continua e não regresses,
Fiel até ao fim da estrada e tua vida,
Não sintas falta do destino fácil,
Teus pés sobre uma terra virgem,
Teus olhos perante o nunca visto.

Luis Cernuda
(1902-1963)
Tradução de J. T. Parreira

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Fernando Pessoa


QUINTO / NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer -
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...


É a Hora!

Fernando Pessoa (1888-1935)
in "Mensagem"

Fernando Pessoa


RUBAIYAT


O fim do longo, inútil dia ensombra.
A mesma sp'rança que não se deu se escombra,
Prolixa... A vida é um mendigo bêbado
Que estende a mão à sua própria sombra.


Dormimos o universo. A extensa massa
Da confusão das cousas nos enlaça
Sonhos; e a ébria confluência humana
Vazia ecoa-se de raça em raça.


Ao gozo segue a dor, e o gozo a esta.
Ora o vinho bebemos porque é festa,
Ora o vinho bebemos porque há dor.
Mas de um e de outro vinho nada resta.

Fernando Pessoa (1888-1935)
"Ficções do Interlúdio"

Álvaro de Campos


NÃO, NÃO É CANSAÇO...

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...

Álvaro de Campos, in "Poemas"

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Juan Luis Panero


EPITÁFIO DIANTE UM ESPELHO


Dura há-de ser para ti a vida
que tuas crenças sacrificaste a uma estranha honradez,
para ti cuja única certeza é tua lembrança
e, por isso, teu sepulcro mais aziago.
Dura há-de ser a vida, quando os anos passarem
e por fim destruírem a pátria sonhadora da tua adolescência,
quando vires, como hoje, este fantasma
que anteriormente te consolou com sua formosura.
Quando o amor, como um vestido roto.
não possa proteger tua tristeza
e um motivo de zombaria, piedade ou assombro,
para os olhos mais puros seja apenas.
Duro há-de ser para o teu corpo ver morrer o desejo,
a juventude, tudo o que foste,
e procurar sem paixão o teu repouso
na surda ternura do que é débil,
na grísea destruição que alguma vez amaste.
«É a lei da vida», dizem velhos estéreis,
«e nada senão Deus pode mudá-lo» repetem,
sob a luz da noite, lentas sombras inúteis.
Dura há-de ser a vida, tu que amaste o mundo
que com um olhar ou uma suave carícia sonhaste possuí-lo,
quando a absurda farsa que tão bem conheces
não estiver já enfeitada com o efémero e belo.
Dura há-de ser a vida até àquele instante
em que veles tua memória neste espelho:
teus frios lábios não terão já refúgio
e em tuas mãos vazias abraçarás a morte.

JUAN LUIS PANERO (1942)
Antologia da Poesia Espanhola contemporânea
(tradução de José Bento)

Pitágoras


NEM COM


Nem com outrem nem por ti somente
cometas jamais acção que
envergonhar-te possas.
E acima de tudo respeita-te
a ti próprio.

A justiça em actos e palavras
pratica-la-ás depois.

Pela menor das coisas não te habitues
a decidir-te sem reflectir.

Pitágoras (Século VI A.C.)
"Versos de Ouro"
(Tradução de José Blanc de Portugal)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Nazim Hikmet Ran


CARTA AO FILHO



Não vivas sobre a terra como um estranho
Um turista no meio da natureza.
Habita o mundo como a casa do teu pai.
Crê na semente, na terra, no mar.
mas acima de tudo crê nas pessoas.
Ama as nuvens,
as máquinas,
os livros,
mas acima de tudo ama o homem.
Sente a tristeza do ramo que murcha,
do astro que se extingue,
do animal ferido que agoniza,
mas acima de tudo
Sente a tristeza e a dor das pessoas.
Alegra-te com todos os bens da terra,
Com a sombra e a luz,
com as quatro estações,
mas acima de tudo e a mãos cheias
alegra-te com as pessoas.

Nazim Hikmet Ran
(1902-1963)