quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

 RECINTO


Onde porei o ouvido que não escute
minha voz a chamar-te?
E onde não escutar este silêncio
que te afasta lentamente triste?

Eu caminho as horas presenciadas
em nós por nós os dois.
Sei desse fruto maduro das vozes
em campos de setembro.

Sei da noite esbelta e já tão nua
em que nossos corpos eram um.
Sei do silêncio perante a gente obscura,
de calar este amor que é de outro modo.

Enquanto chove a ausência liberto
a escravidão de carne e a alma só
no ar suspende sua águia amorosa
que as nuvens pacíficas igualam.

Carlos Pellicer (1899-1978) - México
Trad. de José Bento.
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"


ÚLTIMA DECLARAÇÃO DE AMOR.


Oh Vida,
que tudo me deste.
Agora sei, que sendo isto verdade,
nada me deste.
Mas deixa-me olhar-te ainda com amor,
embora não tenha já desejos de abraçar-te.
E embora saibas que não te abandono,
podes tu abandonar-me.

Francisco Brines (1932)
Trad. de José Bento.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

VIAGEM.



Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga
(1907-1995)
NÃO É BASTANTE.


Não é bastante
que eu reconheça a minha solidão
e a queira como início dum caminho.
Não é bastante
ser livremente tudo quanto sei
e estar aberto a tudo o que serei.
Tudo o que fui e o que sou e o que serei
já são iguais
no tempo do meu todo ignorado.
Quero abrir o que as palavras não descrevem
para já não responder ao sim e ao não
do meu espelho conhecível.
Já não me basta apenas dar um nome
à morte que me cabe enquanto vivo
porque morrer é ter perdido a morte
para sempre
tornando sem sentido o sim e o não
com que me circundei e defini-me.
Conheço-me as fronteiras.
Quero o resto.

Helder Macedo.
PALAVRAS FUNDAMENTAIS.

Faz com que a tua vida seja
sino que repique
ou sulco onde floresça e frutifique
a árvore luminosa da ideia.
Alça a tua voz sobre a voz sem nome
de todos os demais, e faz com que ao lado
do poeta se veja o homem.

Enche o teu espírito de lume;
procura as eminências do cume
e, se o esteio nodoso do teu báculo
encontrar algum obstáculo ao teu intento,
sacode a asa do atrevimento
perante o atrevimento do obstáculo.

Nicolás Guillén
(1902-1989)
Trad. de Albano Martins.


 
CREDO POÉTICO
 
 
Pensa o sentimento, sente o pensamento;
que teus cantos façam ninho sobre a terra,
e quando, em voo, um dia ao céu se ergam
nas nuvens não se percam.

Precisam de sentir peso nas asas,
pois a coluna de fumo se dispersa;
algo que não é a música é a poesia;
só fica a que se pensa.

O pensado, não o duvides, é o sentido.
Sentimento puro? Quem nele creia
da fonte do sentir nunca atingiu
a veia mais secreta.

Não cuides em excesso da roupagem,
não de alfaiate, é de escultor tua tarefa,
não te esqueças que nunca mais formosa
que nua está a ideia.

Não o que a alma encarna em carne, lembra-te,
não o que forma dá à ideia, é o poeta,
mas o que encontra a alma sob a carne,
sob a forma encontra a ideia.

É o detrito das fórmulas que faz
que nos vele a verdade, rude, a ciência;
despe-a com tuas mãos e os teus olhos
terão sua beleza.

Busca as linhas de um nu, que embora trates
de envolver-nos no vago de uma névoa,
mesmo a névoa tem linhas e esculpe-se;
abre os olhos, não as percas.

Que os teus cantos sejam cantos esculpidos,
âncora na terra enquanto eles se elevam,
a linguagem é sobretudo pensamento,
pensada é a sua beleza.

Em verdades do espírito prendamos
as entranhas das formas passageiras,
que a Ideia reine em tudo, soberana;
esculpamos, pois, a névoa.
 
Miguel de Unamuno
(1864-1936)
Trad. de José Bento.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

DESTINO

Acordo como os pássaros cativos,
Com a ária da vida nos ouvidos.
Acordo sem amarras nos sentidos,
Fiéis à sempiterna liberdade...
Nada pôde vencer a lealdade
Que juraram à deusa aventureira.
Nem as grades do sono, nem a severidade
Da noite carcereira.

Acordo e recomeço
O canto interrompido:
O desvairado canto
Da ira irrequieta...
- O canto que o poeta
Se obrigou a cantar
Antes de Ter nascido,
Antes de a sua angústia começar.

Miguel Torga
(1907-1995)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A IDADE NUNCA VEM SÓ.


"A idade nunca vem só!"
Vem com suspiros e lamentações.
Agora vem com um arrastado despertar
E virá mais tarde com um imenso e profundo sono.

John Morris  Jones
(1864-1929)

domingo, 27 de janeiro de 2013

A TAÇA


Esta é a tua taça – a taça que te foi
Destinada desde o princípio.
Não, Meu filho, sei quanta
Dessa bebida escura é fermentação tua,
De falha e paixão, desde há muitas idades atrás,
Desde os anos remotos de ontem, eu sei.

Esta é a tua estrada – uma estrada dolorosa e triste.
Fiz eu as pedras que nunca te dão descanso.
Deixei o teu amigo em caminhos aprazíveis e claros,
E ele virá como tu, até ao Meu peito.
Mas tu, Meu filho, tens de viajar aqui.

Esta é a tua tarefa. Não tem alegria nem graça,
Mas não se destina a qualquer outra mão,
E no meu universo tem o seu lugar medido,
Toma-a. Não te peço que compreendas.
Peço-te que feches os olhos para que vejas o Meu rosto.

Swami Vivekananda
(1863-1902)
In "Rosa do Mundo 2001  Poemas para o Futuro"
Tradução de Cecília Rego Pinheiro
A NUVEM VEIO E O SOL PAROU
A nuvem veio e o sol parou.
Foi vento ou ocasião que a trouxe?
Não sei: a luz se nos velou
Como se luz a sombra fosse.
Às vezes, quando a vida passa
Por sobre a alma que é ninguém,
A sensação torna-se baça
E pensar é não sentir bem.
Sim, é como isto: pelo céu
Vai uma nuvem destroçada
Que é véu, mau véu, ou quase véu,
E, como tudo, não é nada.
              10-9-1934
Fernando Pessoa
(1888-1935)

sábado, 26 de janeiro de 2013

AÇO.


  Quebre-se de encontro à dureza das arestas
cada desregrada ilusão da minha vida.
Que os bichos vão roendo o vão caruncho
da inútil poeira de astros que imagino.
Que — sei-o bem! — lá no mais fundo,
forte e imarcescível sob os golpes
resiste a minha força verdadeira.
E o poema sempre novo no meu sangue
conhece também sua glória de aço
que vê sem dor as pobres farsas
e os caminhos cruéis em que me perco.
Veio da luz inutilizando os laços
armados no caminho à minha espera,
mão de ferro erguendo-se dos limbos
e mandando-me fitar o sol em face!


Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
DE TANTO OLHAR O SOL.


De tanto olhar o sol,
queimei os olhos,
De tanto amar a vida enlouqueci.
Agora sou no mundo esta negrura.
À procura
Da luz e do juízo que perdi. 


Miguel Torga
(1907-1995) 
CONFIANÇA.


  O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova... 



Miguel Torga
(1907-1995)
CÂNTICO

  Belo é ver florir os galhos
das velhas árvores.
E ver chegar as aves
que voltam do Sul.
Belo é o sangue rubro
dum lanho fresco,
e o riso que nasce
das nossas palavras.
Belo é o vir da manhã
sobre os telhados nus
das cidades brancas.
E mais belo ainda
que este sol visível
enflorando, amor,
teus longos cabelos
de guizos dourados:
mais belos que os ventos
cavalgando as nuvens
e dizendo-nos: vinde!,
e que o meu gênio abrindo
suas asas nos céus:

Mais belo que o fluir
silente desta célula
fluindo nos cosmos:
Mais belo, amor,
que a tua própria beleza 


Papiniano Carlos
(1918-2012)

OS CÃES DA INFÂNCIA

São os cães da infância os cães dementes
ladrando-me às canelas do passado
cães mordendo-me a vida com os dentes
ferrados no meu sexo atormentado.

Paguei cada minuto do presente
com vergões de amor próprio vergastado
porém só fala quem se não consente
vencido temeroso ou amarrado.

Contra os cães uivo. Não me fico assim.
Não tenho pai nem mãe. Nasci de mim
macho e fêmea gerando o desespero.

Lutar é tudo quanto sou capaz.
Não me pari para viver em paz.
Tudo o que sou é menos do que eu quero.

José Carlos Ary dos Santos
(1937-1984)
CORREDOR

  Cem metros à sombra — temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
Neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.

Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de pez.

E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.

E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha dos railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes no cais.

E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança. 



Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
MORNA

É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.

os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.


(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta!)

E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
- subtil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.


Daniel Filipe
(1925-1964) 
TRESPASSE

 Quem tiver sonhos, guarde-os bem fechados
— com naftalina — num baú inútil.
Por mim abdico desses vãos cuidados.
Deixai-me ser liricamente fútil!

Estou resolvido. Vou abrir falência.
(Bandeira rubra desfraldada ao vento:
"Hoje, leilão!") Liquida-se a existência
— por retirada para o esquecimento ... 


Daniel Filipe
(1925-1964)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

VIAGEM

 É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano
Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar...

Miguel Torga

(1907-1995)
 In "Diário XII"
NÃO TENHO PRESSA.

Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.

Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
(1888-1935)
FALAS DE CIVILIZAÇÃO, E DE NÃO DEVER SER...

Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
(1888-1935)

domingo, 6 de janeiro de 2013



 A RAFAEL MELERO

É proibido chorar.
É proibido ir com os rios para o mar
onde tudo é igual.
É proibido sorrir
de modo subtil, sem nada dizer,
dizendo que tanto faz o sim ou não.
É proibido violentar
e, ainda que armados de razão, atacar.
É proibido forçar.
É proibido falar do fim
quando tudo é no entanto um: ai! não aí,
e um flutuante ver chegar.
É proibido o gesto
de consciência pessoal, piscar de olhos da liberdade,
porque existem os outros.
É proibido morrer
por cultura, cepticismo, ou porque assim
se descansa de existir.
É proibida a moral
das boas intenções, que, associal,
por nada dá o mais próximo.
Há que crer e viver.
Resolutos, ainda que sem ódio, decidir
o dizer sim claramente.
Vem para mais perto, mais perto.
Não me perguntes o que é claro. Também o vês chegar
na unidade dos homens - tu por mim.

  Gabriel Celaya
(1911-1991)
Trad. de Egito Gonçalves.

sábado, 5 de janeiro de 2013

AS PALAVRAS INTERDITAS.

 Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

Eugénio de Andrade

(1923-2005)
NUS AQUI ESTAMOS

Nus aqui estamos
perante as carabinas da cegueira
que de nossa pobreza alimentamos

De que cor pintar esta bandeira
que entre ruínas hasteamos?

Terá cor a ânsia verdadeira
quando mal dói a dor de que falamos?

É de insânia a fogueira
em que lenta e lentamente nos queimamos

Mìseramente aí nos instalamos

E com isso uns e outros simulamos
a tal marcha heróica e derradeira

em que vamos

Mário Dionísio
(1916-1993)
In "Poesia Incompleta"
(1966).
 EXCESSIVAMENTE PESSOAL

De pedra sem um gesto
escolho o silêncio voluntário

De pedra sem um gesto
escolho este frio
como um rio de fogo branco
imerso na paisagem do amor enxovalhado

De pedra sem um gesto
oiço agora o que só ouve quem
também de pedra e sem um gesto
 pode ouvir o que não ouve
quem agitado e alegre nesta hora
 nada sabe de lá e para lá

porque só deste tempo
neste odioso tempo
agitado e alegre morto jaz

Mário Dionísio
(1916-1993)

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

DATA

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça



Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)

 APELO.

Decidi-vos depressa, enquanto é tempo,
Se me quereis acudir.
Procuro resistir
Ao inimigo,
E preciso de ajuda.
Mas aquele que me acuda,
Saiba que apenas
Poderemos
Combater
Nos altos, nos abismos e nos extremos,
Nos limites do mundo e do meu ser.

Miguel Torga
(1907-1995)

CÂNTICO GRADUAL

Somos todos irmãos.
Desde o primeiro homem
Que desejou mulher,
A nossa lei fraterna
É uma certeza eterna
A crescer.

Somos todos irmãos.
Mesmo aqueles que o não querem,
Lavam, com medo, as mãos,
Se nos ferem.


Miguel Torga
(1907-1995)