quarta-feira, 27 de abril de 2011

Violeta Teixeira


POEMA


Carrego mais peso
Do que peso.

Não estaria, agora,
Aqui, se pudesse
Partir, algures, sem

Me carregar,

A mim.

Violeta Teixeira
In "Partos de Pandora"

terça-feira, 26 de abril de 2011

Mário de Sá Carneiro morreu a 26 de Abril de 1916.


ÁLCOOL

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longamente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas d'auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo -
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de ouro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d'inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que eu ando delirante -
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Mário de Sá Carneiro (19/05/1890-26/04/1916)
(Paris,4 de Maio de 1913)

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Joan Baez canta Pablo Neruda "No nos moverán"

Manuel Alegre


Abril de Abril

Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.

Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.

Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.

Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.

Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.

Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.


Manuel Alegre

Sophia de Mello Breyner Andresen


NESTA HORA


Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo

Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto do terrestre
- Sob o ausente olhar silente de atenção –

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)

Sophia de Mello Breyner Andresen


25 DE ABRIL



Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)

domingo, 24 de abril de 2011

José Agustín Goytisolo


POR MI MALA CABEZA

Por mi mala cabeza
yo me puse a escribir.
Otro, por mucho menos,
se hace Guardia Civil.

Por mi mala cabeza
creí en la libertad.
Otro respira incienso
las fiestas de guardar.

Por mi mala cabeza
contra el muro topé.
Otro levantó el muro
con los cuernos, tal vez.

Por mi mala cabeza
sólo digo verdad.
Por mi mala cabeza
me descabezarán.

José Agustín Goytisolo
(1928-1999)

Paco Ibañez canta José Agustín Goytisolo "Por mi mala cabeza"

sábado, 23 de abril de 2011

Sérgio Jockymann


OS VOTOS


Pois, desejo primeiro que você ame e que amando, seja também amado,
E que se não o for, seja breve em esquecer e esquecendo, não guarde mágoa.

Desejo depois que não seja só, mas que se for, saiba ser sem desesperar.

Desejo também que tenha amigos e que, mesmo maus e inconsequentes, sejam corajosos e fiéis,
E que em pelo menos um deles você possa confiar, que confiando, não duvide de sua confiança.
E porque a vida é assim, desejo ainda que você tenha inimigos, nem muitos nem poucos,
Mas na medida exacta para que, algumas vezes, você se interpele a respeito de suas próprias certezas
E que entre eles haja pelo menos um que seja justo, para que você não se sinta demasiadamente seguro.

Desejo, depois, que você seja útil, não insubstituivelmente útil,
Mas razoavelmente útil. E que nos maus momentos, quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé. Desejo ainda que você seja tolerante,
não com os que erram pouco, porque isso é fácil, mas com aqueles que erram muito e irremediavelmente,
E que essa tolerância não se transforme em aplauso nem em permissividade,
Para que assim fazendo um bom uso dela, você dê também um exemplo para os outros.

Desejo que você, sendo jovem, não amadureça depressa demais e que, sendo maduro,
não insista em rejuvenescer e que, sendo velho, não se dedique a desesperar.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
é preciso deixar que eles escorram dentro de nós.

Desejo, por sinal, que você seja triste, mas não o ano todo,
nem em um mês e muito menos numa semana, mas apenas por um dia.
Mas que nesse dia de tristeza, você descubra que o riso diário é bom,
o riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que você descubra com o máximo de urgência, acima e a despeito de tudo,
Talvez agora mesmo, mas se for impossível, amanhã de manhã,
que existem oprimidos, injustiçados e infelizes,
e que estão à sua volta, porque seu pai aceitou conviver com eles.
E que eles continuarão à volta de seus filhos, se você achar a convivência inevitável.

Desejo ainda que você afague um gato, que alimente um cão
e ouça pelo menos um joão-de-barro erguer triunfante o seu canto matinal.
Porque assim você se sentirá bem por nada.

Desejo também que você plante uma semente,
por mais ridícula que seja, e acompanhe o seu crescimento dia-a-dia,
para que você saiba de quantas muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro, porque é preciso ser prático.
E que, pelo menos uma vez por ano, você ponha uma porção dele na sua frente e diga:
Isso é meu. Só para que fique bem claro quem é dono de quem.

Desejo ainda que você seja frugal, não inteiramente frugal,
não obcecadamente frugal, mas apenas usualmente frugal.
Mas que esse frugalismo não impeça você de abusar quando o abuso se impõe.

Desejo também que nenhum dos seus afectos morra, por ele e por você.
Mas que, se morrer, você possa chorar sem se culpar e sofrer sem se lamentar.

Desejo, por fim, que sendo mulher você tenha um bom homem,
E que sendo homem, tenha uma boa mulher.
E que se amem hoje, amanhã, depois, no dia seguinte, mais uma vez,
E novamente, de agora até o próximo ano acabar,
E que quando estiverem exaustos e sorridentes,
ainda tenham amor para recomeçar.

E se isso só acontecer, não tenho mais nada para desejar.


Sérgio Jockymann
(1930-2011)

Joaquim Namorado


INDIGESTÃO


Enguli desgostos, amarguras,
ultrages, dias mal passados,
horas sem fim de sofrimento,
humilhações, o raio!...
e isso me está roendo a alma
nas caves da consciência.

Joaquim Namorado
In "Incomodidade"
Atlantida - Livraria Editora, Lda
Coimbra / 1945.

José Régio


QUEIXAS DO POETA CONTRA ESTE MUNDO.


Sou de longe e vim de longe,
Para longe é que me vou...
Eis a profunda certeza
Que o andar cá me ensinou.
Porque me atirais carregos
Que o mundo vos atirou?
São vossos..., pois vós sois deles!
Mas não são meus, que o não sou!

Minha vida em qualquer vida
São dois dias de hospedagem.
Divago de vida em vida,
Vivo em adeus e em viagem.
Poupai-me aos vossos costumes,
Que só parei de passagem!
Poupai-me...!, e que eu sonhe um pouco
No fundo da carruagem.

Basta-me ter o que tenho
Quer para andar, quer andado!
Basta-me a língua que falo,
Que a falo..., e fico calado!
Basta-me dar-vos a todos
Água da chaga do lado!
Basta-me, sendo infinito,
Ver-me a um cadáver atado.

Talvez, porém, que este mundo
Fingisse, quase, ser meu,
Talvez..., nuns dias de férias
Que o Alto me concedeu,
Se eu pudera passear nele,
Sem tutor e sem lebréu,
Pastando as ervas da terra,
Bebendo os astros do céu...

Porque me pondes olheiras,
E me calais com mordaças?
Porque me sois cicerones
Destes museus com vidraças?
Porque me dais estas sopas,
Com vinho das vossas taças?
Porque me tendes receio,
Se ignoro as vossas trapaças?

Ah, feia maneira a vossa
De hospedar um estrangeiro!
Pondes-me a servir na casa
Como um servo e um prisioneiro;
Violentais-me à vossa mesa,
No fim levais-me dinheiro,
Fazeis-me e pedis-me brindes
De farsante e de rafeiro!

Pois que o meu corpo vos sirva,
Se vos serve carne morta!
Minha lepra se enrodilhe
No lixo da vossa porta!
Minhas patas sigam vossa
Recta viela retorta...!
Fui eu quem fez essa farsa?
Tudo isso que diz? que importa?

Só diz que o meu corpo cumpre
Não sei que necessidade.
Só diz que ele e eu rompemos
Meu sonho de sociedade...
Só diz que por vós, por ele,
Renego a felicidade,
— Mas só por lhe dar, e dar-vos,
E me dar a liberdade!

José Régio
(1901-1969)
In "As encruzilhadas de Deus"
Segunda Edição (15 de Fevereiro de 1946)

José Gomes Ferreira



XXVII


Embebedai-vos, embebedai-vos,
pobres do caminho
- suor com laivos
de vinho.

Deixai escorregar nas goelas
todas as mistelas
do álcool de esperar
- desde o vinho das estrelas
à aguardente do luar.

Bebei e vomitai, ó povo amargo,
tudo o que houver na feira,
ao sol de borco imundo.

Tudo, até o vinho-céu da igreja do largo!

... para aquela bendita bebedeira
de vomitar nos ricos do Outro Mundo.

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
In "Poesia-III"


José Gomes Ferreira

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Vasco Graça Moura


LAMENTO PARA A LÍNGUA PORTUGUESA

não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
de desespero, mas foi noutro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste, eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.

Vasco Graça Moura
in "Antologia dos Sessenta Anos"

Millôr Fernandes


POEMINHA SOBRE O TRABALHO

Chego sempre à hora certa,
contam comigo, não falho,
pois adoro o meu emprego:
o que detesto é o trabalho.

Millôr Fernandes
in "Pif-Paf"

Manuel da Fonseca


VIDA

Vida:
sensualíssima mulher de carnes maravilhosas
cujos passos são horas
cadenciadas
rítmicas
fatais.
A cada movimento do teu corpo
dispersam asas de desejos
que me roçam a pele
e encrespam os nervos na alucinação do «nunca mais».
Vou seguindo teus passos
lutando e sofrendo
cantando e chorando
e ficam abertos meus braços:
nunca te alcanço!
Meu suplício de Tântalo.
Envelheço...
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
na oscilação nervosa
das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
À punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
no roçar dos espinhos
minha carne dorida.
E quando julgo chegada a hora
meu abraço de posse fica escancarado no ar!
Olímpica
firme
gloriosa
tu passas e não te alcanço, Vida.
Caio suado de borco
no lodo...
O vento da noite badala nos ramos
sarcasmos canalhas.
Não avisto a vida!
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
do meu grito
que vêm de longe e de perto
do sul e do norte
que me envolvem
e esmagam:
— maldita selva, maldita selva,
antes o deserto, a sede e a morte!

Manuel da Fonseca
(1911-1993)
in "Rosa dos Ventos"

Vitor Matos e Sá


PARA OS AMIGOS

De entre todos, apenas vós
tendes direito a ver-me
fracassar. Onde caio
entre a vossa irónica
doçura implacável, convosco
partilho o pão e o espaço
e a rapidez dos olhos
sobre o que fica (sempre)
para dar ou dizer.
E de vós me levanto
e vos levo pesando
e ardendo até onde
me ajudais a ser
melhor ou talvez
menos só.

Vítor Matos e Sá
(1926-1975)
in "Companhia Violenta"

Pedro Homem de Melo


AMIZADE

Ser-se amigo é ser-se pai
( — Ou mais do que pai talvez...)
É pôr-se a boca onde cai
A nódoa que nos desfez.

É dar sem receber nada,
Consciente da prisão,
Onde os nossos passos vão
Em linha por nós traçada...

É saber que nos consome
A sede, e sentirmos bem
O Céu, por na Terra, alguém
Rir, cantar e não ter fome.

É aceitar a mentira
E achá-la formosa e humana
Só porque a gente respira
O ar de quem nos engana.

Pedro Homem de Melo
(1904-1984)
in "Miserere"

terça-feira, 12 de abril de 2011

Jorge Luis Borges


SOU

Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.

Jorge Luis Borges
(1899-1986)
in "A Rosa Profunda"

Paul Eluard


GRITAR

Aqui a acção simplifica-se
Derrubei a paisagem inexplicável da mentira
Derrubei os gestos sem luz e os dias impotentes
Lancei por terra os propósitos lidos e ouvidos
Ponho-me a gritar
Todos falavam demasiado baixo falavam e escreviam

Demasiado baixo

Fiz retroceder os limites do grito

A acção simplifica-se

Porque eu arrebato à morte essa visão da vida
Que lhe destinava um lugar perante mim

Com um grito

Tantas coisas desapareceram
Que nunca mais voltará a desaparecer
Nada do que merece viver

Estou perfeitamente seguro agora que o Verão
Canta debaixo das portas frias
Sob armaduras opostas
Ardem no meu coração as estações
As estações dos homens os seus astros
Trémulos de tão semelhantes serem

E o meu grito nu sobe um degrau
Da escadaria imensa da alegria

E esse fogo nu que me pesa
Torna a minha força suave e dura

Eis aqui a amadurecer um fruto
Ardendo de frio orvalhado de suor
Eis aqui o lugar generoso
Onde só dormem os que sonham
O tempo está bom gritemos com mais força
Para que os sonhadores durmam melhor
Envoltos em palavras
Que põem o bom tempo nos meus olhos

Estou seguro de que a todo o momento
Filha e avó dos meus amores
Da minha esperança
A felicidade jorra do meu grito

Para a mais alta busca
Um grito de que o meu seja o eco.

Paul Eluard
(1895-1952)
in "Algumas das Palavras"
Tradução de António Ramos Rosa.

Antero de Quental


EVOLUÇÃO

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paúl, glauco pascigo...

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

Antero de Quental
(1842-1891)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

"NOBRE" Só as salsichas...

Nizzar Qabbani


UMA LIÇÃO DE DESENHO



O meu filho coloca a sua caixa de pintura à minha frente
E pede-me que lhe desenhe um pássaro.
Mergulho o pincel na cor cinzenta
E traço um quadrado com fechaduras e grades.
Os seus olhos enchem-se de surpresa:

"... Mas isto é uma prisão, pai,
Não sabes desenhar um pássaro?

E eu digo-lhe: "Filho, perdoa-me.
Esqueci-me da forma dos pássaros.

O meu filho coloca o livro de desenhos à minha frente
E pede-me que desenhe uma espiga de trigo.

Pego num lápis
E desenho uma arma.

O meu filho desdenha da minha ignorância,
perguntando,
"Pai, não sabes a diferença entre uma espiga de trigo e uma arma?"
Eu digo-lhe: "Filho,
uma vez usei a forma da espiga de trigo
a forma do pão
a forma da rosa
Mas nestes tempos duros
as árvores da floresta juntaram-se
aos homens da milícia
e a rosa veste uniformes escuros

Neste tempo de espigas de trigo armadas
de pássaros armados
de cultura armada
e de religião armada
não se pode comprar pão
sem encontrar uma arma no interior
não se pode colher uma rosa do campo
sem que os seus espinhos nos arranhem o rosto
não se pode comprar um livro
que não vá explodir entre os nossos dedos."

O meu filho senta-se à beira da minha cama
e pede-me que recite um poema
Uma lágrima cai dos meus olhos para a almofada.
O meu filho apanha-a, surpreendido, dizendo:

"Mas esta é uma lágrima, pai, não é um poema!"

E eu digo-lhe:

"Quando cresceres, meu filho,
e aprenderes o 'diwan' da poesia árabe
descobrirás que palavra e lágrima são gémeas
e que o poema árabe
não é mais do que uma lágrima chorada por dedos que escrevem."

O meu filho pega nos seus pincéis,
a caixa de pinturas à minha frente
e pede-me que lhe desenhe uma pátria.

O pincel treme nas minhas mãos
e eu afundo-me, chorando.

Nizzar Qabbani
(1923-1998)

Reinaldo Ferreira


CONTENTE NUNCA ESTOU.



Contente nunca estou; feliz não sei
Se existe alguém ou neste ou noutro mundo.
Vou para o Nada, sou do Nada oriundo,
E entre dois Nadas desventura é Lei.

Da cobarde esperança emancipei
A previsão do meu destino imundo.
Sou consciente do mal em que me afundo,
E consciente do mal continuarei.

Nem revolta me fica, apenas pressa
De me tornar por fim parada peça
No cósmico rolar nefasto e louco.

Depois quero dormir um sono enorme
Que para uma aflição que nunca dorme,
A Morte, temo bem que seja pouco.

Reinaldo Ferreira

sábado, 9 de abril de 2011

Paulo Tavares



5

Andar em contramão
insistindo na cadência veloz dos passos
deixar para trás como inoportuna reminiscência
vagões superlotados de um sonambulismo capital
a energia bruta do progresso gerando uma estranha
força de atrito em pequenos labirintos
de um universo em expansão

era o caminho para a faculdade que era preciso
ser percorrido

e ao dobrar de cada esquina surgiam
formas curvilíneas semidespidas
impressas em painéis publicitários imagens revelando
a perfeita simetria de seios ou de ancas
ou a liquidez de olhos sedutores que ambicionavam
despertar o impulso sexual
alguém lera Freud e descobrira a quimera desejada
pelas grandes empresas mercantis em formato ampliado
de pequenos pontos cirúrgicos e mensagens
devidamente articuladas:

Seduza. Compre.
Siga os seus instintos.


e era uma pressão incómoda
junto ao centro gravítico do corpo

Paulo Tavares
In "Linhas de Hartmann"

Mia Couto


SEIOS E ANSEIOS


As vezes que morri
boca derramada entre os teus seios,
todas essas vezes
não me deram luto
porque, de mim, eu em ti nascia.

Todos esses abismos,
meu amor,
não me deram regresso.

Depois de ti,
não há caminhos.

Porque eu nasci
antes de haver vida,
depois de tu chegares.

Mia Couto
In "Tradutor de Chuvas"

Mia Couto


POEMA DIDÁCTICO


Já tive um país pequeno,
tão pequeno
que andava descalço dentro de mim.
Um país tão magro
que no seu firmamento
não cabia senão uma estrela menina,
tão tímida e delicada
que só por dentro brilhava.

Eu tive um país
escrito sem maiúscula.
Não tinha fundos
para pagar a um herói.
Não tinha panos
para costurar bandeira.
Nem solenidade
para entoar um hino.
Mas tinha pão e esperança
para os viventes
e sonhos para os nascentes.

Eu tive um país pequeno,
tão pequeno
que não cabia no mundo.

Mia Couto
In "Tradutor de Chuvas"

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Sidónio Muralha


COM UMA CRIANÇA NOS BRAÇOS.



Vem, através de tudo vem,
com lentos, lentos mas implacáveis passos
aquela mulher que tem
uma criança nos braços.

Vem através das páginas da história
que já não conseguimos apagar
-quem pudesse fechar a memória
e deitar a chave ao mar.

Vem, através de tudo avança.
E há pessoas que ficam ofendidas
porque aquela mulher e aquela criança
deveriam ser proibidas.

Deveriam ser mas para sê-lo
os pássaros não teriam asas
e seria preciso toneladas de gelo
para apagar biliões de brasas.

E ela vem. Como se tudo desenhasse
em lentos, lentos mas implacáveis passos
- como se de Hiroxima voltasse
com uma criança nos braços.

Sidónio Muralha (1920-1982), Poemas,
Porto, Editorial Inova Limitada, 1971

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Miguel Torga


SOL NEGRO


De que trevas me vem a claridade!
É da noite da minha humanidade
Que arranco chispas de revelação...
Desaterro a negrura,
E, quanto mais fundura,
Mais luz reluz no aço do enxadão.

Mas quem pode no curso duma vida
Remover toda a sombra de que é feito?
Nessa cama de sombra é que me deito
E acordo a tactear desde que vim...
Teimo, contudo, na teimosa empresa
De encher os olhos cegos da certeza
De que também há sol dentro de mim.

Coimbra, 20 de Junho de 1966

Miguel Torga, "Diário X"

Se bem me lembro!...

" E Agora José?". Poema de Carlos Drummomd de Andrade dito pelo próprio. Este poema foi dedicado a seu irmão José.

"Vou-me embora pra Pasárgada" de e por Manuel Bandeira.

Manuel Bandeira


SER COMO O RIO

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.


Manuel Bandeira
(1886-1968)

domingo, 3 de abril de 2011

Alexandre O'Neill


O PAÍS RELATIVO


País por conhecer, por escrever, por ler...
*
País purista a prosear bonito,
a versejar tão chique e tão pudico,
enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
galhofeira, comigo.
*
País que me pede livros andejantes
com o dedo, hirto, a correr as estantes
*
País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano
*
País onde qualquer palerma diz,
a afastar do busílis o nariz:
-Não, não é para mim este país!
Mas quem é que bàsquetica sem lavar
o sovaco que lhe dá o ar?
*
Entreicheiram-se, hostis, os mil narizes
que há neste país.
*
País do cibinho mastigado
devagarinho.
*
País amador do rapapé,
do meter butes e do parlapié,
que se espaneja, cobertas as miúdas,
e as desleixa quando já ventrudas.
*
O incrível país da minha tia,
trémulo de bondade e de aletria.
*
Moroso país da surda cólera,
do repente que quer ser feliz.
*
Já sabemos, país, que és um homenzinho...
*
País tunante que diz que passa a vida
a meter entre parêntesis a cedilha.
*
A damisela passeia
no país da alcateia,
tão exterior a si mesma
que não é senão a fome
com que este país a come.
*
País do eufemismo, à morte dia a dia
pergunta mesureiro: - Como vai a vida?
*
País dos gigantones que passeiam
a importância e o papelão,
inaugurando esguichos no engonço
do gesto e do chavão.

E há ainda quem os ouça, quem os leia,
lhes agradeça a fontanária ideia!
*
Corre, boleada, pelo azul,
a frota de nuvens do país.
*
País desconfiado a reolhar por cima
dum ombro que, com razão, duvida.
*
Este país que viaja a meu lado,
vai transido, mas transitorisado.
*
Nhurro país que nunca se desdiz.
*
Cedilhado o cê, país, não te revejas
na cedilha, que a palavra urge
*
Este país, enquanto se alivia,
manda-nos à mãe, à irmã, à tia,
a nós e à tirania,
sem perder tempo nem caligrafia.
*
Nesta mosquitomaquia
que é a vida,
ó país,
que parede comprida!
*
A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
já perde a paciência à nossa cabeceira.
*
País pobrete e nada alegrete,
baú fechado com um aloquete,
que entre dois sudários não contém senão
a triste maçã do coração.
*
Que Santa Sulipanta nos conforte
na má vida, país, na boa morte!
*
País de troncas e delongas ao telefone
com mil cavilhas para cada nome.
*
De ramona, país, que de viagens
tens, tão contrafeito...
*
Embezerra país, que bem mereces,
prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.
*
Desaninhada a perdiz,
não a discutas, país!
Espirra-lhe a morte pra cima
com os dois canos do nariz!
*
Um país maluco de andorinhas
resourando as nossas cabecinhas
de enfermiços meninos, roda vida
em que entrássemos de corpo e alegria!
*
Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro
e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.

Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
já o passo a meu filho, cansado de o olhar...
*
No sumapau seboso da terceira,
contigo viajei, ó país por lavar,
aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,
a conversa pancrária e o jeito alvar.

Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
entornado de sono, resvaste pra mim.
Mas também me ofereceste a cordial botelha,
empinada que foi, tal e qual clarim!


Alexandre O'Neill
(1924-1986)
In "Poesias Completas 1951/1986"

sábado, 2 de abril de 2011

Cristovam Pavia


SINA


Eu vivo tudo por dentro.
Os meus enredos fabrico
(Quase sempre dolorosos!)
E não os conto a ninguém!
- O meu poço é o meu pico,
Que me pica e me contém...

.......................

Sem poço não ando bem!

Cristovam Pavia
(1933-1968)

José Manuel Silva


EUCALIPTAL



Quem regressa a Portugal regressa ao medo
de falar sem alçapões de protecção
conventual, ao respeitinho pelos títulos
de borra, à timidez de protestar nas oficinas,
nos empregos, nos polés, nos hospitais.

Volta ao gozo bichaneiro da franqueza
pelas costas, ao bitate regougado
pela incúria, ao leve gás do palavrão
desopilante, pulsilânime, vendado,
ao complacente desamor da liberdade.

Regressar a Portugal é regressar
ao desapego por direitos e deveres,
à indiferença pela história colectiva,
pelo que quer que sobrepuje o cá-se-vai
dum comodismo sem coragem nem prazer.

É regressar a horizontes de betão
e eucalipto, a frustrados atoleiros
de automóveis à deriva, ao fanico
de salários sobrevivos, mordaçantes,
ao cajado da lisonja e da preguiça.

Quem regressa a Portugal, regressa ao tempo,
sobretudo, da infância, que o lugar
já foi levado (não me canso de o dizer,
nem me conformo) pelo tufão da mais-valia
predial. Mas se o tempo da infância

cabe inteiro na memória, quem regressa
a Portugal, regressa a quê e para quê?


JOSÉ MIGUEL SILVA
In "RESUMO a Poesia em 2010"