segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A VELHICE PEDE DESCULPA

Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.

Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.

Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.

Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.

Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.

Cecília Meireles
(1901-1964)
In "Poemas"
(1958

COM SAL E SOL, EU ESCREVO

Escrevo no meio de tantas derrocadas,
tantas ruínas, tanto desespero,
mas também tanta esperança renovada,
tantos jovens que, no meio do desencanto,
mantêm a pureza das cascatas,
tantas crianças que são a primavera
que chegará um dia e ficará
no coração da terra, quantas vezes
mutilada, humilhada por aqueles
que trazem a ganância no seu sangue.
Com sol e sal eu escrevo.
E todos juntos vamos transformar,
com tudo o que nós temos de coragem,
este mundo idiota
que envia flores aos mortos
e atira pedradas aos vivos.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Com Sol e Sal, Eu Escrevo"
DENTRO DA NOITE QUE ME COBRE.

" Dentro da noite que me cobre,
Negra, escura como breu,
Eu agradeço aos Deuses que possam existir,
pela minha Alma inconquistável,

Mesmo nas cruéis garras da circunstância,
Eu não tremo nem desespero,
sob os duros golpes da sorte,
a minha cabeça sangra, mas não se curva,

para além deste lugar de raiva e choro,
que me segura do horror da sombra,
e ameaça com Tempo, que me irá encontrar,
vai-me achar, mas destemido,

Não importa se o portão é estreito,
não importa o tamanho do castigo,
Eu sou dono do meu Destino.
Eu sou o Capitão da minha Alma."

William Ernest Henley
(1849 - 1903)

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

REGRESSO ETERNO


Altos silêncios da noite e os olhos perdidos,                             
Submersos na escuridão das árvores
Como na alma o rumor de um regato,
Insistente e melódico,
Serpeando entre pedras o fulgor de uma ideia,
Quase emoção;
E folhas que caem e distraem
O sentido interior
Na natureza calma e definida
Pela vivência de um corpo em cuja essência
A terra inteira vibra
E a noite de estrelas premedita.

A noite! Se fosse a noite...
Mas os meus passos soam e não param,
Mesmo parados pelo pensamento,
Pelo terror que não acaba e perverte os sentidos
À esquina do acaso;
Outros mundos se somem,
Outros no ar luzem reflectidos sem origem.
É por eles que os meus passos não param.
E é por eles que o mistério se incendeia.

Tudo é tangível, luminoso e vago
Na orla que se afasta e a ilha dobra
Em baías de precário sonho...
Tudo é possível porque a vida dura
E a noite se desfaz
Em altos silêncios puros.
Mas nada impede o renascer da imagem,
A infância perdida, reavida,
Nuns olhos vagabundos debruçados,
Junto a um regato que sem cessar murmura.




Ruy Cinatti
(1915-1986)

   In «O Livro do Nómada Meu Amigo» (Guimarães Editores, 1981
RETRATO.

Tens nos olhos a luz que me faltava.
Agora posso ver o que não via:
O rosto da alegria
No teu rosto.
Vinho ainda a sonhar
Na fervura do mosto,
Não sabes duvidar
Das ilusões.
És a vida que esperas...
Em ti, as estações
São todas primaveras.

Miguel Torga
(1907-1995)
POVO

É sempre a mesma história repetida.
É sempre o mesmo lodo, a mesma fome
É sempre a mesma vida mal vivida
De quem amassa o pão mas não o come.

É sempre a mesma angústia desgrenhada
De quem naufraga em terra olhando o oceano;
O rubro desespero, a mão crispada,
O sonho a desfolhar-se… e o desengano.

É sempre este horizonte de fuligem,
É sempre este arranhar em duro chão,
Com fúria até ao centro da vertigem
Em busca da raiz da salvação.

Aguinaldo Fonseca
In “Boletim Mensagem”, Ano III, nº 1, Janeiro de 1960

sábado, 5 de outubro de 2013

 EPÍGRAFE.
 
 
  Murmúrio de água na clepsidra gotejante, 
 Lentas gotas de som no relógio da torre, 
Fio de areia na ampulheta vigilante, 
Leve sombra azulando a pedra do quadrante, 
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre... 

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida, 
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça? 
Procuremos somente a Beleza, que a vida 
É um punhado infantil de areia ressequida, 
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...
 
 
Eugénio de Castro
(1869-1944) 
AS ÁRVORES ESTAVAM QUIETAS.

o céu era cinzento,
as colinas estranhamente
jaziam sem alento.

Os homens faziam algo,
pondo a terra de avessa,
como quem cava um tesouro,
mas calmos e sem pressa.

Tudo era decerto assim
no resto do planeta,
o mundo e a humana flora
têm uma liga secreta.

Isso andava eu a observar
com receio mas contente,
e os meus pés sempre a andar
por baixo, como boa gente.


Herman Gorter
(1864-1927)
Trad. de Fernando Venâncio.





 A DENSIDADE DO QUE NÃO É.


  A densidade do que não é,
a força do que não se tem,
amontoa a água da vida
e cria um rumor de fundo
para todos os gestos.

   Até o tecido preto da morte
 tem um pálido fio
onde a trama cede e se aligeira
porque lhe falta morte.

   E até o que nunca viveu
e nunca morrerá
ergue-se na greta de uma ausência
que lhe empresta seu corpo.

   A pedra do não ser,
a certeira condição negativa,
a pressão do nada,
é o último apoio que nos resta.

Roberto Juarroz
(1925-1995)
Trad. de José Bento.

domingo, 22 de setembro de 2013

 PUDESSE O QUE PENSO.



Pudesse o que penso exprimir e dizer
Cada pensamento oculto e silente,
Levar meu sentir moldado na mente
A ser natural perante o viver;

Pudesse a alma verter, confessar
Os segredos íntimos em meu ser;
Grande eu seria, mas não pude aprender
Uma língua bem, que expresse o pesar.

Assim, dia e noite novo sussurar

E noite e dia sussurros que vão...
Oh! A palavra ou frase em que atirar

O que penso e sinto, acordando então
O mundo; mas, mudo, não sei cantar,
Mudo como as nuvens antes do trovão.


Fernando Pessoa
(1888-1935)

sábado, 21 de setembro de 2013

LÁGRIMA
 
 
Dos olhos me cais,
redonda formosura.
Quase fruto ou lua,
cais desamparada.
Regressas à água
mais pura do dia,
obscuro alimento
de altas açucenas.
Breve arquitectura
da melancolia.
Lágrima, apenas.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)





 ESTA MANHÃ.




Esta manhã viu-se tão bela no

seu próprio espelho que veio
urgente descerrar-me a janela
e a todos os pássaros do mundo.

Alexandre Pinheiro Torres
(1923-1999)

 O QUE HOJE APRENDI PARA DIZER-ME.

 

O que hoje aprendi para dizer-me
talvez não caiba no jeito do verso
não cabe, por minha falta
mas eu aprendi.

Desde hoje serei mais eu
estarei mais onde estiver

José de Almada Negreiros
(1893-1970)
LAMENTO

Pátria sem rumo, minha voz parada
Diante do futuro!
Em que rosa-dos-ventos há um caminho
Português?
Um brumoso caminho
De inédita aventura,
Que o poeta, adivinho,
Veja com nitidez
Da gávea da loucura?


Ah, Camões, que não sou, afortunado!
Também desiludido,
Mas ainda lembrado da epopeia….
Ah, meu povo traído,
Mansa colmeia
A que ninguém colhe o mel!.....
Ah, meu pobre corcel
Impaciente,
Alado
E condenado
A choutar nesta praia do Ocidente…

Miguel Torga
(1907-1995)
EXORCISMO


Canto
O meu desencanto.
Este cansaço
Lasso
De tudo quanto,

Esta melancolia
Penitente
De quem sente
Que luta e que porfia
Inutilmente.

Esta baça impressão
De que nada vale.
Esta tristeza triste
Que resiste
Às razões da razão inconformada.

Miguel Torga
(1907-1995)
 FICAM AS SOMBRAS.


Não. Não podeis levar tudo.
Depois do corpo,
E da alma,
E do nome,
E da terra da própria sepultura,
Fica a memória de uma criatura
Que viveu,
E sofreu,
E cantou,
E nunca se dobrou
À dura tirania que o venceu.
Fica dentro de vós a consciência
De que ali onde o mundo é mais vazio
Havia um homem.
E sabeis que se comem
Os frutos acres da recordação…
Fantasmas invisíveis que atormentam
O sono leve dos que se alimentam
Da liberdade de qualquer irmão.


Miguel Torga
(1907-1995)

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

 ESTRADAS ERMAS JUNTO AO MAR.

Pouco a pouco eles partiram
sonhavam outros mundos dentro
deste mundo. Levaram suas palavras
carregadas de bandeiras a esvoaçar
ao vento. Levaram o próprio vento
que por vezes trazia
as guitarras secretas da líricas ilusões.
E as tardes de Verão e o cheiro do jasmim
e as raparigas debruçadas das janelas
e as estrelas ardentes que deixavam
pelas estradas ermas junto ao mar.
Levaram o próprio mar que estava dentro
dos íntimos caminhos nunca desbravados.
Levaram os livros que narravam
as cidades futuras. Levaram
as próprias cidades e a abstracção
de suas casas e suas ruas
onde se juntavam todos e ninguém.

Levaram as manhãs anunciadas
e o amor de uma noite de um só
Verão. Levaram o próprio amor
levaram a noite e o Verão
as teorias e os teoremas
as gramáticas viradas do avesso
as praças os poemas
e sobretudo aquele verso
onde os povos passavam a cantar.

Pouco a pouco partiram. E só deixaram
estradas ermas junto ao mar.

Manuel Alegre
In "Nada Está Escrito"
DILEMA

É uma voz que me chama e me defende:
- Vem...; mas não venhas...; cada sonho é
Tanto mais vivo quanto mais se estende
A dura rota que nos leva ao pé.

E eu ouço a voz que prega no deserto,
E não paro nem volto; apenas sinto
Que, se chego, desperto,
E, se não chego, minto.”

 

Miguel Torga
(1907-1995)
 É ASSIM  A MÚSICA.


A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
- sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração – por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas.


Eugénio de Andrade
(1923-2005)
CONTRATO.

Se estiveres contente, dou-te uma maçã;
se tiveres medo, torço a tua mão;
e se me deixares, quero apertar-te,
sem te fazer mal, contra o coração.

Se eu estiver contente, dás-me uma maçã?
Se eu estiver com medo, torce a minha mão.
E se tu quiseres, podes apertar-me,
sem me fazer mal, contra o coração.

Isto é um contrato, só com dois se faz:
venho oferecer-to com desesperada
calma, sendo incerto que estes nossos jogos
possam dos amantes expulsar demónios.


Gastão Cruz

 QUANDO OS TEUS OLHOS ABSORVEM


Quando os teus olhos absorvem
todas as cores da minha
mais íntima tristeza,
e compreendes e calas e prometes
um lugar qualquer na tua alma,
e a tua voz demora a regressar
ao neutro compromisso das palavras,

sei que as tuas mãos ajudariam
a limpar estas lágrimas antigas
por dentro do meu rosto.

Vítor Matos e Sá
(1926-1975)
DO SENTIMENTO TRÁGICO DA VIDA.

Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.

Natália Correia
(1923 - 1993)

É DIFÍCIL NA VIDA ACHAR ALGUÉM.

É difícil na vida achar alguém
Que seja na verdade um grande amigo,
E se assim penso – e com tristeza o digo,
É porque o sei, talvez, como ninguém.

Se a amizade é um bem – e se esse bem
Traz o conforto de um divino abrigo,
Por mim, direi, que nunca mais consigo
Iludir-me nas graças que ele tem.

Afectos, sacrifícios, lealdade!,
Tudo se apaga ou fica na memória
Se a ilusão dá lugar à realidade.

E ai daqueles que pensam na excepção:
Acabam por ficar dentro da história
De que a vida é um sonho e uma traição.

António Botto
(1897 - 1959)

domingo, 8 de setembro de 2013



CANTAS: E A VIDA FICA SUSPENSA.
 


Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu. 



Eugénio de Andrade
(1923-2005)
SORRISO AUDÍVEL DAS FOLHAS


 Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

 

Fernando Pessoa
(1888-1935)
PROCLAMAÇÃO


A natureza não desce
a contratos. Nem a vida
se mede pela razão.

A vida é toda mistério.

Quem largamente se deu
não ofendeu a justiça
mas viveu do coração.




Ruy Cinatti
(1915-1986)



 DISPONIBILIDADE


Vem ver a vida
passar silenciosamente
como a ave no ar claro.

Vê-a que desce. Prende-a.
Nas tuas mãos em concha
fica um instante.

Deixa-a fugir. Outras há.

Ruy Cinatti
(1915-1986)

sábado, 7 de setembro de 2013

 CANÇÃO


As coisas que desejamos
tarde ou nunca as recebemos,
e as que menos queremos,
mais depressa as alcançamos.
 
   Porque a Fortuna desvia
aquilo que nos apraz,
mas o que pesar nos faz
ela mesmo pra nós guia.
E pelo que mais penamos
alcançar não o podemos,
e o que menos queremos
muito depressa alcançamos.

Juan del Encina
  (1468-1529)
(Trad. de José Bento)



 POESIA FÁCIL


Paz não procuro, guerra não suporto,
Tranquilo e só vou pelo mundo, e cheio
De cantos sufocados. Como anseio
Silentes névoas de um imenso porto!

Um porto a transbordar de velas leves
Quase a partir pelo horizonte azul
Em doce ondulação, enquanto exul
Perpassa o vento em seus acordes breves.

Acordes tais que o vento em si transporta
Longínquos sobre o mar desconhecido.
Eu sonho. A vida é triste. Estou sozinho.

Oh quando, quando a ardente madrugada
Em que a minha alma acordará no sol,
No eterno sol, fremente e libertada!

 
Dino Campana
 (1885-1932)
(Trad. de Jorge de Sena)
VIGÍLIA

Aqui estou eu sentado
ao lado de mim mesmo
para que nunca seja
aquele que não sou.

Não que eu seja muito
mas quero ser inteiro
porque faço parte
de um todo maior.

Eu pertenço a um povo,
povo que pertence
a todos os povos
mesmo que não saiba.

E todos os povos
respondem de cada
criança que nasce
sem o ter pedido.

De cada criança
eu sou responsável.
Nós todos o somos
se acaso nascemos.

Só nasce quem sabe
nascer de si mesmo
- quem não renasceu
que se vá embora.

Sidónio Muralha
(1920-1982)

segunda-feira, 15 de julho de 2013

 COMUNICADO


Falta um combate ainda, o decisivo.
Ganhei quantos perdi, porque resisto.
Mesmo cansado e mutilado, existo,
Num vitalismo cósmico ostensivo.

Filho da Terra, minha mãe amada,
É ela que levanta o lutador caído.
Anteu anão,
Toco-lhe o coração,
E ergo-me do chão
Fortalecido.

Mas há fúrias hercúleas contra mim:
O tempo, a morte, e o próprio desencanto
De viver...
Pode, porém, ainda acontecer
Que, mesmo nessa hora, a consciência
Negue, de frente, a própria violência
Que me vencer...


Miguel Torga
(1907-1995)

domingo, 14 de julho de 2013


 FLOR DA LIBERDADE


Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós… Também nós… E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
A sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
Ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.

Sepultos insepultos,
Vivos amortalhados,
Passados e presentes cidadãos:
Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!
E essa flor que nunca desespera
No jardim da perpétua primavera.

Miguel Torga
(1907-1995)

sexta-feira, 12 de julho de 2013

 CARTA

Há muito tempo, sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesma envelhecí: olha em relevo
estes sinais em mim, não das carícias


(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a tua menina, que a sol-posta
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes é tanta
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

E quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.


Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
 AVE DA ESPERANÇA


Passo a noite a sonhar o amanhecer.
Sou a ave da esperança.
Pássaro triste que na luz do sol
Aquece as alegrias do futuro,
O tempo que há-de vir sem este muro
De silêncio e negrura
A cercá-lo de medo e de espessura
Maciça e tumular;
O tempo que há-de vir - esse desejo
Com asas, primavera e liberdade;
Tempo que ninguém há-de
Corromper
Com palavras de amor, que são a morte
Antes de se morrer. 


Miguel Torga
(1907-1995)

domingo, 30 de junho de 2013

 REGRESSO ETERNO


Altos silêncios da noite e os olhos perdidos,
Submersos na escuridão das árvores
Como na alma o rumor de um regato,
Insistente e melódico,
Serpeando entre pedras o fulgor de uma idéia,
Quase emoção;
E folhas que caem e distraem
O sentido interior
Na natureza calma e definida
Pela vivência dum corpo em cuja essência
A terra inteira vibra
E a noite de estrelas premedita.

A noite! Se fosse noite. . .
Mas os meus passos soam e não param,
Mesmo parados pelo pensamento,
Pelo terror que não acaba e perverte os sentido
A esquina do acaso;
Outros mundos se somem,
Outros no ar luzes refletem sem origem.
É por eles que os meus passos não param.
E é por eles que o mistério se incendeia.


Tudo é tangível, luminoso e vago
Na orla que se afasta e a ilha dobra
Em balas de precário sonho...
Tudo é possível porque à vida dura
E a noite se desfaz
Em altos silêncios puros.
Mas nada impede o renascer da imagem,
A infância perdida, reavida,
Nuns olhos vagabundos debruçados,
Junto a um regato que sem cessar murmura.

Ruy Cinatti
(1915-1986)
in "O Livro do Nómada Meu Amigo"


sábado, 15 de junho de 2013

 ÀS VEZES, EM SONHO TRISTE.


Às vezes, em sonho triste
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.

Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

segunda-feira, 10 de junho de 2013



LUNALVA


Se quiserem saber quem sou
- Não sei quem sou
Só sei que em mim
A sombra e a luz
São vultos
Que se buscam e se amam
Loucamente
Se quiserem saber do meu destino
- Não sei do meu destino
- Não sei do meu nome
Só sei daquela sede
Imensa sede
Que ainda não foi saciada
Se quiserem saber donde venho
- Não sei donde venho
Talvez venha do vento
Do deserto
Do mar
Ou do fundo das madrugadas
Não
Não me amem tão depressa
"Não me compreendam tão depressa"
Não me julguem tão fácil
Por favor
Não me julguem tão mesquinho
Tão cotidiano
O pão que trago comigo
- Não é pão
É fogo
O vinho que trago comigo
- Não é vinho
É sangue
E eu vos afirmo
- Todos hão de beber
Do Fogo e do Sangue

Carlos Nejar

domingo, 9 de junho de 2013

 HAJA TEMERIDADE


Sobre a ponte insegura é que é passar!
Fica o rio a correr dentro das veias.
Quanta angústia levar,
Quantas areias
De oiro
Ou de ilusão,
É como se nos fossem afogar
A inquietação.

Arcos de ferro ou de granito
E sólidos soalhos de varanda
Não me parecem piso de quem anda
A descobrir as formas imprecisas
Desta humana aventura.
Só de credo na boca vale a pena
Olhar a vida, que da sepultura
Nos acena.

Miguel Torga
(1907-1995)
 PANORAMA


Pátria vista da fraga onde nasci.
Que infinito silêncio circular!
De cada ponto cardeal assoma
A mesma expressão muda.
É de agora ou de sempre esta paisagem
Sem palavras
Sem gritos,
Sem o eco sequer de uma praga incontida?
Ah! Portugal calado!
Ah! povo amordaçado
Por não sei que mordaça consentida!

Miguel Torga
(1907-1995)
LEI SÁLICA


As  mulheres da família sempre
tiveram  um jeito quase póstumo
de existir: guardar o lume
em silêncio, comer depois de
servir os outros, morrer primeiro.


Saíam à hora de ponta do destino
para lerem os caminhos perdidos
e coleccionavam a abdicação
em caixinhas de folha, entre bilhetes
caducados ou dentes de infâncias alheias.


Esperavam a vida toda por uma vida
próxima, de alma presa a alfinetes
no vestido preferido para o enterro,
os passos medidos nas suas varandas
a dar para o fim do mundo.


Retomo-lhes às vezes os gestos
neste meu exílio inventado,
mas acaba aqui: vou encher de corpo
a sombra, mesmo que nem tempo
me reste já para a pesar.

Inês Dias
In" Um Raio Ardente e Paredes Frias"

sábado, 8 de junho de 2013

SE UMA ROSA INFINITA ME EXPLODISSE NO PEITO.



Se uma rosa infinita me explodisse no peito
e, ao chegar o crepúsculo, me florescesse nos lábios,
deixarias que fosse removendo as sombras
- porque vives nas sombras - com as minhas mãos sedentas,
com cavalos de insónia galopando à minha frente,
e a colocasse lentamente nos teus ombros nocturnos?

Se um ramo de fogo me brotasse da língua,
deixarias que fosse como um vento na noite
- essa noite que tens na tua voz e na tua casa -,
a dizer-te as palavras no dorso nu?

Antonio Gamoneda
In " Oração Fria"
Trad. de João Moita
Assírio & Alvim
(2013)






 LÍNGUA PORTUGUESA.



Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!


Olavo Bilac
(1865-1918)

 

AMOR

 

A minha maneira de te amar é simples:
aperto-te contra mim
como se houvesse um pouco de justiça no meu coração
e eu ta pudesse dar com o corpo.

Quando revolvo os teus cabelos
algo de belo se forma entre as minhas mãos.

E quase não sei mais nada. Só aspiro
a estar em paz contigo e a estar em paz
com um dever desconhecido
que às vezes também pesa no meu coração.

Antonio Gamoneda
 In "Oração Fria"
Trad. de João Moita
 Assírio & Alvim, 2013.

domingo, 19 de maio de 2013

  INSÓNIA.
 
Perguntarás aos peixes
como se dorme
de olhos abertos. Porque o sono
dos vivos é um fosso
de víboras
insones. E precisas
por isso
de estar atento. De dormir
acordado.
 
Albano Martins
In " Escrito a Vermelho"
 PRIMEIRO DIA.


Depois será como se nascêssemos de novo,
trouxéssemos para o dia
a nossa mais funda e mais bela face.

Dia de chuva solar em nossos cabelos ilimitados.
Ergueremos os ombros cansados.
E nos reveremos nas águas
do próprio rio que somos, inextinguível.

Pousarão as aves marinhas e as terrestres
nos nossos ombros escorrendo sol e limos,
e as rãs adormecerão nos pauis
onde nos diluímos sôfregamente raízes.
E os peixes e os navios navegarão em nosso sangue,
na maior das navegações
de todos os tempos.

Erecto estará nosso braço, e formidável.
Sob as nossas mãos
crescerão as formas anunciadas.
E as palavras nos brotarão dos lábios,
e serão searas
e aves do tamanho do mundo.

Papiniano Carlos
(1918-2012)
TENHO DÓ DAS ESTRELAS

Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo…
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir…

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão?

Fernando Pessoa
(1888-1935)
ROSTO AFOGADO


Para sempre um luar de naufrágio
anunciará a aurora fria.
Para sempre o teu rosto afogado,
entre retratos e vendedores ambulantes,
entre cigarros e gente sem destino,
flutuará rodeado de escamas cintilantes.

Se me pudesse matar,
seria pela curva doce dos teus olhos,
pela tua fronte de bosque adormecido,
pela tua voz onde sempre amanhecia,
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra
era um rumor de festa,
pela tua boca onde os peixes se esqueciam
de continuar a viagem nupcial.
Mas a minha morte é este vaguear contigo
na parte mais débil do meu corpo,
com uma espinha de silêncio
atravessada na garganta.

Não sei se te procuro ou se me esqueço
de ti quando acaso me debruço
nuns olhos subitamente acesos
ao dobrar de uma esquina,
na boca dos anjos embriagados
de tanta solidão bebida pelos bares,
nas mãos levemente adolescentes
pousadas na indolência dos joelhos.
Quem me dirá que não é verdade
o teu rosto afogado, o teu rosto perdido,
de sombra  em sombra, nas ruas da cidade?

Ninguém te conheceu,
ninguém viu romper a luz na tua cama,
ninguém sabe, ninguém,
que o teu corpo, continente selvagem,
se desvelava por uma pedra branca,
atirada contra o nevoeiro.

Por isso escrevo esta elegia
como quem oferece a luz dos olhos;
por isso canto o teu rosto afogado
como quem canta um funeral de espigas.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "As Palavras Interditas"
A VELHICE PEDE DESCULPA


  Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.

Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.

Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.

Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.

Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.

Cecília Meireles

(1901-1964)
 In "Poemas"
 (1958)

quarta-feira, 1 de maio de 2013


 PERFIL


Não. Não tenho limites.
Quero de tudo
Tudo.
O ramo que sacudo
Fica varejado.
Já nascido em pecado,
Todos são naturais
À minha condição,
Que quando, por excepção,
Os não pratico
É que me mortifico.
Alma perdida
Antes de se perder,
Sou uma fonte incontida
De viver.
E o que redime a vida
É ela não caber
Em nenhuma medida.





Miguel Torga
(1907-1995)
Cristalizações



   


Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
 Vibra uma imensa claridade crua.
 De cócoras, em linha, os calceteiros,
 Com lentidão, terrosos e grosseiros,
 Calçam de lado a lado a longa rua.

Com as elevações secaram do relento,
 E o descoberto sol abafa e cria!
 A frialdade exige o movimento;
 E as poças de água, como em chão vidrento,
 Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
 Disseminadas, gritam as peixeiras;
 Luzem, aquecem na manhã bonita,
 Uns barracões de gente pobrezita
 E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem as aves; nem o choro duma nora!
 Tomam por outra parte os viandantes;
 E o ferro e a pedra - que união sonora! -
 Retinem alto pelo espaço fora,
 Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
 Cuja coluna nunca se endireita,
 Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
 Pesam enormemente os grossos maços,
 Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
 Que espessos forros! Numa das regueiras
 Acamam-se as japonas, os coletes;
 E eles descalçam com os picaretes,
 Que ferem lume sobre sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente as flores,
 Fundeiam, como a esquadra em fria paz,
 As árvores despidas. Sóbrias cores!
 Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
 Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -
 Carros de mão, que chiam carregados,
 Conduzem saibro, vagarosamente;
 Vê-se a cidade, mercantil, contente:
 Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
 Em arco, sem as nuvens flutuantes,
 O céu renova a tinta corredia;
 E os charcos brilham tanto, que eu diria
 Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
 Eu tudo encontro alegremente exacto.
 Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
 E tangem-me, excitados, sacudidos,
 O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
 De tão lavada e igual temperatura!
 Os ares, o caminho, a luz reagem;
 Cheira-me a fogo, a sílex, a ferrugem;
 Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;
 Dois assobiam, altas as marretas
 Possantes, grossas, temperadas de aço;
 E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
 E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
 Que vida tão custosa! Que diabo!
 E os cavadores pousam as enxadas,
 E cospem nas calosas mãos gretadas,
 Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas
 Uma bandeira penso que transluz!
 Com ela sofres, bebes, agonizas:
 Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
 E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
 Surge um perfil direito que se aguça;
 E ar matinal de quem saiu da toca,
 Uma figura fina, desemboca,
 Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
 E a quem, à noite na plateia, atraio
 Os olhos lisos como polimento!
 Com seu rostinho estreito, friorento,
 Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
 Como lajões. Os bons trabalhadores!
 Os filhos das lezírias, dos montados:
 Os das planícies, altos, aprumados;
 Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
 Furtiva a tiritar em suas peles,
 Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
 Neste Dezembro enérgico, sucinto,
 E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
 Eles, bovinos, másculos, ossudos,
 Encaram-na, sanguínea, brutalmente:
 E ela vacila, hesita, impaciente
 Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
 Sem que inda o público a passagem abra,
 O demonico arrisca-se, atravessa
 Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
 Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

Cesário Verde
(1855-1886)