segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Luís Veiga Leitão


CIGARRA

Esta não é filha do sol
com pernas e pés de marinheiros
subindo às árvores das herdades.
Esta é preciso ouvi-la dias inteiros
aquém das grades.

Esta
não chama para os campos doirados
onde o canto é livre e aquece, morno.
Mas para silêncios hirtos e cerrados
com fardas e armas em torno.

Desde o sinal das auroras
até à noite que plange
amortalhando as horas,
seu canto não canta, range…

Ó cigarra das torvas claridades!

Seus cantos só pode cantá-los
a boca de pedra e dentes ralos
do ferro nas grades.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Noite de Pedra" (1955)

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Daniel Filipe


DESNECESSÁRIA EXPLICAÇÃO


Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?

Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho,
se dentro de mim cabe
a glória de ir sozinho?

Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?

Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir

Daniel Filipe
(1925-1964)
In "Marinheiro em Terra" (1949)

Sebastião da Gama


OS QUE VINHAM DA DOR



Os que vinham da Dor tinham nos olhos
estampadas verdades crudelíssimas.


Tudo que era difícil era fácil
aos que vinham da Dor directamente.


A flor só era bela na raiz,
o Mar só era belo nos naufrágios,
as mãos só eram belas se enrugadas,
aos olhos sabedores e vividos
dos que vinham da Dor directamente.


Os que vinham da Dor directamente
eram nobres de mais p'ra desprezar-vos,
Mar azul!, mãos de lírio!, lírios puros!


Mas nos seus olhos graves só cabiam
as verdades humanas crudelíssimas
que traziam da Dor diretamente.

Sebastião da Gama
(1924-1952)
in "Campo Aberto" (1951)

António Reis


SEI AO CHEGAR A CASA

Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego

Tu
se o ar é fresco

eu
se deixo de respirar
subitamente

António Reis
(1927-1991)
In "Novos Poemas Quotidianos"

sábado, 26 de fevereiro de 2011

José Carlos Ary dos Santos


CATINGA DE INIMIGO


Minha senhora da cruz vermelha
crucificada na cruz gamada
trazeis-me novas da minha orelha?

Ai é cortada!

Minha senhora visitadora
da minha vida tão desairada
trazeis-me novas da minha cova?

Ai é cavada!

Minha senhora retardadora
desta vingança sempre adiada
trazeis-me novas da minha hora?

Ui é suada!

José Carlos Ary dos Santos
(1937-1984)
in "De Palavra em Punho"
(Antologia Poética da Resistência de Fernando Pessoa ao 25 de Abril)
Organização e Apresentação de José Fanha.

Sebastião da Gama



NASCI PARA SER IGNORANTE

Nasci para ser ignorante
mas os parentes teimaram
(e dali não arrancaram)
em fazer de mim estudante.

Que remédio? Obedeci.
Há já três lustros que estudo.
Aprender, aprendi tudo,
mas tudo desaprendi.

Perdi o nome às Estrelas,
aos nossos rios e aos de fora.
Confundo fauna com flora.
Atrapalham-me as parcelas.

Mas passo dias inteiros
a ver um rio passar.
Com aves e ondas do Mar
tenho amores verdadeiros.

Rebrilha sempre uma Estrela
por sobre o meu parapeito;
pois não sou eu que me deito
sem ter falado com ela.

Conheço mais de mil flores.
Elas conhecem-me a mim.
Só não sei como em latim
as crismaram os doutores.

No entanto sou promovido,
mal haja lugar aberto,
a mestre: julgam-me esperto,
inteligente e sabido.

O pior é se um director
espreita p'la fechadura:
lá se vai licenciatura
se ouve as lições do doutor.

Lá se vai o ordenado
de tuta-e-meia por mês.
Lá fico eu de uma vez
um Poeta desempregado.

Se me não lograr o fado
porém, com tais directores,
e de rios, aves e flores
somente for vigiado,

enquanto as aulas correrem
não sentirei calafrios,
que flores, aves e rios
ignorante é que me querem.

Sebastião da Gama
(1924-1952)

António Manuel Couto Viana



HERÓI ANÓNIMO



Concerta a rede da faina,
Como quem tece uma vida,
Ora agreste, ora florida,
Se o mar se encrespa ou se amaina.


Homem da minha Ribeira,
Busca o pão , dia após dia,
Ao Sol quente, à noite fria,
A bordo de uma traineira.


Vida rude! Nunca a deixe.
Sem ele, que é dele, o peixe?
Que é de nós? Miséria e fome.


Vendo-o a lidar, sem cansaço,
Louvo-o nos versos que faço.
... E nem sequer sei seu nome!

António Manuel Couto Viana
(1923-2005)

António Manuel Couto Viana


O AVESTRUZ LÍRICO


Avestruz:
O sarcasmo de duas asas breves
(Ânsia frustrada de espaço e luz,
De coisas frágeis, líricas, leves);

Patas afeitas ao chão;
Voar? Até onde o pescoço dá.
Bicho sem classificação:
Nem cá, nem lá.

Isto sou (Dói-me a ironia
– Pudor nem eu sei de quê).
Daí a absurda fantasia
De me esconder na poesia,
Por crer que ninguém a lê.

António Manuel Couto Viana
(1923-2010)

Eugénio de Andrade


TO A GREEN GOD


Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era um corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Carlos de Oliveira


ACUSAM-ME DE MÁGOA...

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

Carlos de Oliveira.
(1921-1981)

Carlos Drummond de Andrade


POR MUITO TEMPO



Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Nário Dionísio


CASA DESERTA


Ah nada pior que a casa deserta,
sozinha, sozinha.

O fogão apagado e tudo sem interesse.
O mundo lá longe, para lá da floresta.
E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta…

Ah nada pior que estes dias e dias,
de cachimbo aceso, com as mãos inertes,
com todas as estradas inteiramente barradas,
ouvindo a floresta.
Com tudo lá longe, na casa deserta,
o vento soprando
e a chuva caindo, na noite caindo…

Há uma cancela que range nos gonzos
um velho cão de guarda que ladra sem motivo -
parece que é gente que vem a entrar…

E é só vento soprando, soprando
e a chuva caindo…

Mudaram muita vez as folhas da floresta.
Os olhos do homem são olhos de doido.
Fogão apagado, aceso o cachimbo, o mundo lá longe.

E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta…

Mário Dionísio
(1916-1993)
in "Poesia Incompleta"

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Mário Dionísio


A PALAVRA QUE FALTA


Nestes largos sem jardins
nestes jardins sem crianças
nestas casas sem janelas
nestas caras sem expressão
flutua ácida e quente
uma palavra medrosa

uma palavra hesitante
que luz em cada cabeça
que esmorece em cada boca
uma palavra só uma
que ninguém imaginou
uma palavra perdida
antes de ser encontrada

Mário Dionísio
(1916-1993)
in "Poesia Incompleta"

José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987. Já lá vão 24 anos...

Juan Ramón Jiménez


UM ROUXINOL.


Ó rouxinol da noite, que astro feito trino,
rosa feita harmonia, em tua garganta canta?
Pássaro do prazer, em que prado divino
bebes a água pura que te molha a garganta?

Para que a tua voz seja a glória, único eleito
pela noite de Maio, que pureza de sons
vês na tua frente e ergues com teu pequeno peito
imensa como um céu ou um mar de encarnações?

É o setim do luar que reveste a urna
de tuas jóias azuis, palpitantes e belas?
Chama em teu peito um deus? Ou a que antiga e nocturna
eternidade roubou o teu bico as estrelas?

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
in "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

Juan Ramón Jiménez


TEU CORAÇÃO E O MEU.



Teu coração e o meu
são dois prados em flor,
juntos pelo arco-íris.

Meu coração e o teu
são meninos dormindo,
juntos pela via-láctea.

Teu coração e o meu
são duas rosas juntas
pelo olhar jubiloso do eterno.

Juan Ramón Jiménez
(1885-1958)
in "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Álvaro de Campos


ESTOU CANSADO, É CLARO.



Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...

E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente: eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto me dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.


Álvaro de Campos
(1890-1935)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

José Ángel Valente


O AMOR ESTÁ NO QUE LANÇAMOS.



O amor está no que lançamos
(pontes, palavras).

O amor está em quanto erguemos
(risos, bandeiras).

E no que combatemos
(noite, vazio)
por verdadeiro amor.

O amor está em quanto levantamos
(torres, promessas).

Em quanto nós colhemos e semeamos
(filhos, futuro).

E nas ruínas de quanto derrubamos
(usurpação, mentira)
por verdadeiro amor.

José Ángel Valente
(1929-2000)
in "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

José Agustín Goytisolo


A GUERRA


De súbito, o ar
abateu-se incendiado,
caiu, como espada,
sobre a terra. Oh, sim
recordo os clamores!

Entre o fumo e o sangue
olhei os muros
da minha pátria,
como cego olhei
para toda a parte,
a procurar um peito,
uma palavra, algo
onde esconder o pranto.

E só encontrei morte,
ruínas e morte
sob o céu vazio.

José Agustín Goytisolo
(1928-1999)
in "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

Luis Alberto de Cuenca


ABRE TODAS AS PORTAS:



Abre todas as portas: a que conduz ao ouro,
a que leva ao poder, a que esconde o mistério
do amor, a que oculta o segredo insondável
da felicidade; a que te dá a vida
para sempre no gozo de uma visão sublime.
Abre todas as portas sem te mostrares curioso
nem ligar nada às manchas de sangue
que salpicam as paredes das habitações
proibidas, nem às jóias que revestem os tectos
e aos lábios que na sombra procuram os teus,
nem à palavra santa que espreita nas ombreiras.
Desesperadamente, civilizadamente,
contendo o riso, secando tuas lágrimas,
no extremo do mundo, no final do caminho,
a ouvir como assobiam as balas inimigas
em volta e como estão cantando os rouxinóis,
não duvides, irmão: abre todas as portas.
Embora não haja nada dentro.

Luis Alberto de Cuenca
Trad. de José Bento.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Vitorino Nemésio morreu a 20 de Fevereiro de 1978.


JÁ UM POUCO DE VENTO SE DEMORA.



Já um pouco de vento se demora;
Já sua força vale a de uma mão
Nestes papéis que trago para fora,
Que o campo dá certeza e solidão.

O calor fez a casa mais delgada,
Agora colho a tarde: a vida não.
Sou a macieira carregada:
De palavras a mais cobri o chão.

Árvores há no outono que conhecem
O toque e ardor das folhas de amanhã
E esperando-as, altas, adormecem.
Com espaço e vento nunca a vida é vã.

Eu volto à mão do outono em meus papéis.
Penso e, indiscreto, o ar remove
Estas imagens cruéis
Que a minha vida comove

Vitorino Nemésio
(19/12/1901-20/02/1978)

Manuel Freire canta Carlos de Oliveira.

Carlos de Oliveira


NÃO HÁ MACHADO QUE CORTE


Não há machado que corte
A raiz ao pensamento
Não há morte para o vento
Não há morte

Se ao morrer o coração
Morresse a luz que lhe é querida
Sem razão seria a vida
Sem razão

Nada apaga a luz que vive
No amor num pensamento
Porque é livre como o vento
Porque é livre

Carlos de Oliveira
(1921-1981)

Carlos Queirós


CANTAM AO LONGE


Cantam ao longe. Anoitece.
Faz frio pensar na vida;
E a Natureza parece
Dizer, em voz comovida,
Que o Homem não a merece.

Carlos Queirós
(1907-1949)

Carlos Queirós


APELO À POESIA

Porque vieste? - Não chamei por ti!
Era tão natural o que eu pensava,
(Nem triste, nem alegre, de maneira
Que pudesse sentir a tua falta...)
E tu vieste,
Como se fosses necessária!

Poesia! nunca mais venhas assim:
Pé ante pé, cobardemente oculta
Nas ideias mais simples,
Nos mais ingénuos sentimentos:
Um sorriso, um olhar, uma lembrança...
– Não sejas como o Amor!

É verdade que vens, como se fosses
uma parte de mim que vive longe,
Presa ao meu coração
Por um elo invisível;
Mas não regresses mais sem que eu te chame,
– Não sejas como a Saudade!

De súbito, arrebatas-me, através
De zonas espectrais, de ignotos climas;
E, quando desço à vida, já não sei
Onde era o meu lugar...
Poesia! nunca mais venhas assim
– Não sejas como a Loucura!

Embora a dor me fira, de tal modo
Que só as tuas mãos saibam curar-me,
Ou ninguém, se não tu, possa entender
O meu contentamento...
Não venhas nunca mais sem que eu te chame,
– Não sejas como a Morte!

Carlos Queirós
(1907-1949)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Humberto Díaz Casanueva


TENTATIVA DE SOLIDÃO


Por meus lados adormecidos, sempre atrás de uma claridade
desci até olhar-me frente a frente.
Escrevo as tristezas com minha velha flauta de sombras
enquanto nos copos de vinho bebo meus diversos rostos.
Sem chorar despojando-me de tantos estigmas mortais
aguardo a alma que fugitiva vem do seu passado
em busca de uma fonte adormecida para descer para a noite.
Quero estar sozinho em meu grande espectro, meus olhares desertos,
meus cantos doem-me porque não findam em seu próprio delírio,
mal reluzo neles, mal vou escorrendo
como o orvalho desce dos olhos das sombras.
Quero ser meu próprio testemunho, a realidade de meu signo,
mas, - que povoado imenso galopa, respira, sofre?
O peito de raiz perturbado está com substâncias alheias.
Vacila esta veia que entra à minha frente vinda do crepúsculo,
tão vasta como o passado de fogo de uma estrela,
deixa-me seus sinais de luz mas seu esconjuro não consegue
que esta fronte asile também nós malignos.
Ah, a alma volte a fugir com os pés gelados do susto,
no meu interior com cilício estou para devolver ao dia.



Humberto Díaz Casanueva (CHILE)
(1908-1992)
Tradução de José Bento

Armando Rodrigues


ALADO, O SOL...



Alado, o sol na água pousa
e dele treme a água amedrontada,
que a ardente imagem lhe devolve em rosa
e em si própria um distante sonho ousa
de céu amargo, que não sonha nada.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)

Daniel Filipe


UMA PALAVRA ANTIGA


Uma palavra antiga
mais nada .
Eh amiga ,
camarada !

Eh , onde quer que o sonho
leve o teu corpo tenso , teu sabor campesino ,
agridoce , de azedas e medronho ,
tua voz - aurora , sol , vitorioso sino.

Motivo de cantiga ,
anónima e amada
eh amiga ,
camarada !


Daniel Filipe
(1925-1964)
in "Pátria Lugar de Exílio"

Luís Cilía canta Daniel Filipe "Uma Palavra Antiga"

Ruy Cinatti


O ESPANTO


O que se passa em mim é um prodígio.
Um sim que se dilata
até perder o sentido
longe, como o balão
fugido da criança.
Um sim, transgredido,
arremetido
à estupidez do ouvido,
da razão.
Um sim que quando explode me diz não
com delicadeza.

Ruy Cinatti
(1915-1986)

Eugénio de Andrade


PROCURO-TE



Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)
in "As Palavras Interditas"

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Egito Gonçalves


A AVENTURA É FICAR!...


Calafetado contra os sonhos, fico
Contigo, prisioneiro dos liames
Que te cercam e cercam o teu rosto,
A tua carne rasgada nos arames.

Extinguiu-se o apelo da partida...
As quilhas já não sofrem a espuma.
Fico contigo na luta pelo dia
No endurecido leito de caruma.

Tu estás sentada sobre a terra...
Pelas searas corre um vento rude.
Teu corpo é uma espiga amadurecida
Pela água aprisionada do açude.

Corsários acamaradam no mar largo...
Mas do teu caule fino, nasce e ondeia
À minha volta, uma canção serena
Que me prende docemente à tua teia.

Egito Gonçalves
(1922-2001)

Pablo Neruda


NÃO HÁ ESQUECIMENTO
(SONATA)




Se me perguntais onde estive,
devo dizer «Acontece».
Devo falar do chão que as pedras escurecem,
do rio que permanecendo se destrói:
não sei senão as coisas que os pássaros perdem,
o mar que ficou para trás ou minha irmã chorando.
Porquê tantas regiões, porquê um dia
se junta a outro dia? Porquê uma negra noite
se acumula na boca? Porquê mortos?
Se me perguntais de onde venho, tenho que conversar com coisas gastas,
com utensílios demasiado amargos,
com grandes animais muitas vezes já podres
e com meu angustiado coração.

Não são as lembranças que se atravessaram,
nem é a pomba amarelenta que no esquecimento dorme,
mas sim faces com lágrimas,
dedos na garganta, e o que se desmorona das folhas:
a escuridão de um dia decorrido,
de um dia alimentado com o nosso triste sangue.

Eis aqui violetas, andorinhas,
tudo o que nos agrada e aparece
nos doces cartões de visita de longa cauda
onde passeiam o tempo e a doçura.
Mas não penetremos para além desses dentes,
não mordamos as cascas que o silêncio acumula,
pois não sei que responder:
há tantos mortos,
e tantos molhes que o sol rubro partia,
e tantas cabeças que batem nos navios,
e tantas mãos que encerraram já beijos,
e tantas coisas que desejo esquecer.

Pablo Neruda
(1904-1973)
Trad. de José Bento.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Carlosa Paredes "Canto do Amanhecer"

Thelonious Monk morreu a 17 de Fevereiro de 1982.

Armando Silva Carvalho


O'NEILL TOMA LÁ CINCO.



Que fascínio produzem nos consumidores
estes homenzinhos barrocos, bacocos
e que não se calam?
Nos meios de massa não há gato
nem cão que não tenha quinhão.
Rimando, por aí abaixo, seria um descascar
nesta funambulesca mostra,
triturada depois pelo desgaste
dos tiques, do porte e do nariz,
pela sapiente máquina de fazer perfis,
mostra que, dividida pela população,
em termos estatísticos,
daria meio político a cada cidadão,
com alguns décimos a distribuir
por plantas e outros animais
de estimação.
É caso para crer nos banhas de cobra
e outras criaturas que,
de paleio ao ombro,
calcorreiam o pare, escute e olhe
de todos os sectores, visíveis, invisíveis,
pois para portuga e meio e não como o paleio
ainda que ensebado das europas, usas
e que tais
caligrafado depois pelas multinacionais
para pôr toda esta gente a emprenhar
pello canal auditivo
sem pílula, igreja, Jeová ou partido
que os possa deter nesta fornicação
tão colectiva, tão dada ao sentimento
que, mesmo não atinando no sentido,
molha o branco do olho
com a cantilena duma fauna no quadrado
que ergue sem despudor a crista
em busca de mercado.
Não será isto razão para tanta louvadeus,
louvatua ou louvaminha
à escrita literata,
pois, feita a anedota,
é dado ao poema que se segue
direito de resposta imediata
ao gozo do autor, quiçá nefelibata,
de andar para aqui com o novelo das rimas
e a dar razão às primas,
que os senhores doutores ao mostrarem os dentes
entre detergentes,
possuem aquela unção tão delicodoce,
calvamente precoce,
que nos põe todos camiliescamente
a cantar a vitória do antigamente.
E isto, primo, no balcão das nações
ditas civilizadas,
tão televisão, tão eurovisão
tão à nossa frente!

Armando Silva Carvalho,"Sentimento dum Acidental"

Serge Reggiani "Le temps qui rest"

Alexandre O'Neill


HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM.


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill
(1924-1986)

José Gomes Ferreira


CHORO

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
as crianças violadas
nos muros da noite
húmidos de carne lívida
onde as rosas se desgrenham
para os cabelos dos charcos.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
diante desta mulher que ri
com um sol de soluços na boca
— no exílio dos Rumos Decepados.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
este sequestro de ir buscar cadáveres
ao peso dos poços
— onde já nem sequer há lodo
para as estrelas descerem
arrependidas de céu.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
a coragem do último sorriso
para o rosto bem-amado
naquela Noite dos Muros a erguerem-se nos olhos
com as mãos ainda à procura do eterno
na carne de despir,
suada de ilusão.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
todas as humilhações das mulheres de joelhos nos tapetes da súplica
todos os vagabundos caídos ao luar onde o sol para atirar camélias
todas as prostitutas esbofeteadas pelos esqueleto de repente dos espelhos
todas as horas-da-morte nos casebres em que as aranhas tecem vestidos para o sopro do
silêncio
todas as crianças com cães batidos no crispar das bocas sujas
de miséria...

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro...

Mas não por mim, ouviram?
Eu não preciso de lágrimas!
Eu não quero lágrimas!

Levanto-me e proíbo as estrelas de fingir que choram por mim!

Deixem-me para aqui, seco,
senhor de insónias e de cardos,
neste ódio enternecido
de chorar em segredo pelos outros
à espera daquele Dia
em que o meu coração
estoire de amor a Terra
com as lágrimas públicas de pedra incendiada
a correrem-me nas faces
— num arrepio de Primavera
e de Catástrofe!

José Gomes Ferreira
(1900-1985)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Vieira da Silva


CANÇÃO DE MÁGOA

tantos sonhos esquecidos
perdidos no pó da estrada
tantos dias tantas noites
à espera da madrugada

o que foi feito de nós
companheiros de viagem
que é da nossa liberdade
feita de fé e coragem

vai-se o tempo e nós aqui
adormecidos no cais
entretidos com o medo
de já ser tarde demais

teimosamente morrendo
por detrás desta janela
a fingir que somos livres
com um cravo na lapela.

Vieira da Silva
in, Marginal.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

António Machado


ROSA DE FOGO


Tecidos sois de primavera, amantes,
de terra e água e vento e sol tecidos.
A serra em vossos peitos arquejantes,
nos olhos os campos já floridos,

passeai vossa mútua primavera
e bebei sem temor o doce leite
que hoje vos dá a lúbrica pantera,
antes que, irada, no caminho espreite.

Caminhai, quando o eixo do planeta
se abeira do solstício do verão,
verde a amendoeira, lânguida a violeta,

próxima a fonte e perto a sequidão,
rumando à tarde do amor completa,
com a rosa de fogo em vossa mão.

António Machado
(1875-1939)

in "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea", Selecção e Tradução de José Bento.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Luis Cernuda


QUISERA ESTAR SÓ NO SUL

Talvez meus lentos olhos não vejam mais o sul
De ligeiras paisagens adormecidas no ar,
Com corpos à sombra de ramos como flores
Ou fugindo num galope de cavalos furiosos.

O sul é um deserto que chora enquanto canta,
E não se extingue essa voz como pássaro morto;
Para o mar encaminha os desejos amargos
Abrindo um eco débil que vive lentamente.

No sul tão distante quero estar confundido.
A chuva ali não é mais que rosa entreaberta.
A própria névoa ri: um riso branco no vento.
Obscuridade ou luz, ali são belezas iguais.

Luis Cernuda
(1902-1963)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

Oswaldo Montenegro


METADE


Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio

Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

Oswaldo Montenegro

METADE- OSWALDO MONTENEGRO

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Vasco de Lima Couto


CRAVO ABERTO


Cravo aberto, cravo aberto
nas pontes do meu país...
Cravo que disseste: «certo,
aqui começa a raiz...»

Cravo que nasceste pobre
nos jardins do desencanto
e eras, na sombra dos homens,
perfume de muito pranto.

Cravo que abristes as prisões
e as celas - negras!, da fome.
Cravo de Abril e de Maio.
rio de sol no meu nome.

Amarraste a madrugada
às fontes dum dia novo...
Cravo de sangue e de sonho,
MÃO DE SOLDADO E DE POVO!

Vasco de Lima Couto
(1923-1980)
(Entre "os meus papéis" encontrei, com data de Julho de 1974, um recorte de jornal com este poema.)

Parva que sou - "Os Deolinda"

Juan Ramón Jiménez


NOCTURNO DE MOGUER


"As árvores não estão sós:
estão com as suas sombras.
A alma é que está só.

A Lua atira ao vale
sua prata redonda.
Uma vinha de cinza
enflora a estrela louca.

As colinas não vão sós:
andam com a sua aragem.
A alma é que anda só.

Ouço o mundo assobiar,
búzios o acompanham.
O mar, num claro abraço
de homem e mulher, se arrouba.

E os rios não vão sós
pois vão com as ondas.
A alma é que vai só."

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
(Prémio Nobel 1956)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

Juan Ramón Jiménez


O INSONE


Meus olhos abertos!
Levai-me até ao mar
a ver se adormeço!

Aqui tão distantes,
não se hão-de fechar
meus olhos abertos.

Chorarão lembranças,
formarão um mar
de pranto e desejo.

Um mar sem consolo,
que me há-de levar
à insónia eterna.

Não imitam os beijos
nem doces cantares
a onda e o vento.

A onda e o vento!
Quero ver o mar,
a ver se adormeço!

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
in Antologia Poética, Trd. José Bento
(Prémio Nobel da Literatura 1956 )

sábado, 12 de fevereiro de 2011

África Minha...

Daniel Filipe


Poema primeiro do "CANTO E LAMENTAÇÃO NA CIDADE OCUPADA"



Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida

Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma
em praças ruas becos boîtes e monumentos

Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote

Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz

Ei-la resplendente de amor teoria
e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone

Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo

Ei-la a cidade prometida
esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor.

Daniel Filipe
(1925-1964)
in "A Invenção do Amor e outros poemas"

Juan Luis Panero


A CONDIÇÃO HUMANA


À luz vacilante do crepúsculo,
no Château de Verrières,
André Malraux e Louise Vilmorin
falavam, pausadamente, diante de uma chávena de chá.
Inteligente, subentendida, lúcida,
a conversa era quase uma música,
quando um golpe seco no vidro da janela
- talvez um pássaro ofuscado pelas luzes -
lhe recordou certas noites de Espanha,
o ruído dos motores dos aviões,
as metralhadoras atroando o ar.
Seria em Espanha ou na China?
Um áspero cheiro de húmida vegetação,
clarões, corpos que caem junto de um rio,
estrelas impassíveis na sombra infinita.
Não, não, era na Alsácia, os tanques nazis
a arrastarem-se sobre a erva
e, de súbito, soldados e mais soldados.
Detinham-no, iam fuzilá-lo,
o matraquear final da descarga e depois nada.
Quieta e em silêncio, diante dele,
Louise via o reu rosto descomposto,
aqueles tiques, implacáveis e rápidos,
que desfiguravam as suas feições,
o tremor da sua mão na chávena de chá,
umas gotas de suor na ampla testa.
Não, também não era na Alsácia, eram os seus dois filhos
e o Alfa Romeo a 120 que se estampa
e os corpos despedaçados sobre a estrada.
- "Iam a velocidade excessiva", disse uma testemunha -.
O vazio, um gelado vazio, fez-se por um momento
na sua memória,
olhou para os móveis, para as delicadas chávenas na mesa,
para os olhos de Louise.
Com afectada expressão esboçou um sorriso,
enquanto passava o lenço pela testa.
Levantou-se, com visível esforço
gordo, inchado pelo álcool e a droga,
já não era o jovem guerreiro das fotografias -
serviu-se de um whisky e ao voltar a sentar-se
acariciou, suavemente, a cabeça de Louise.
Escutava-se o leve rumor dos móveis antigos,
lá fora, o vento do outono empurrava as folhas.
Voltou-se para ela, olhou-a outra vez nos olhos,
perguntou-lhe, com voz rouca, talvez sem esperar resposta,
"Que relação há entre um homem
e o mito que esse homem encarna?"
Escutava-se o leve rumor dos móveis antigos;
lá fora, o vento do outono empurrava as folhas.

Juan Luis Panero, In "Poemas", Relógio D'Água,
Lisboa, 2003, pp 43-45 (Trad. Joaquim Manuel
de Magalhães).

Juan Ramón Jiménez


NÃO ROUBES...


Não roubes
à tua pura solidão
teu ser calado e firme.
Evita o necessário
explicar-te a ti mesmo
contra quase toda a gente.
Tu sozinho encherás
inteiramente o mundo.

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Tradução de José Bento.

Juan Ramón Jiménez


EU NÃO SOU EU:


Eu não sou eu.
Sou este
que vai ao meu lado sem eu vê-lo;
que, por vezes, vou ver,
e que, às vezes, esqueço.
O que se cala, sereno, quando falo,
o que perdoa, doce, quando odeio,
o que passeia por onde estou ausente,
o que ficará de pé quando eu morrer.

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Tradução de José Bento.

Mário Dionísio


CONSCIÊNCIA


Cada minuto uma questão
Mil fronteiras que venço ou que não venço
Mas nenhuma de mais dura e duradoura combustão:
ser o que penso

Mário Dionísio
(1916-1993)
in "Poesia Incompleta"

Mário Dionísio


CERTEZA


As horas de saudade e de martírio
Por tudo o que passou
E o tempo cristalizou
Passei-as

A certeza do fim veio tão cá dentro
Que às vezes inda o finado
Dentro do seu trono fechado
Revive

As raivas de ficar e não seguir
E não cumprir os planos
Que vêm de anos e anos
Esgotei-as

Mas o medo da hora derradeira
Feito de negações
Renúncias cruzes perdão
Não tive

Mário Dionísio
(1916-1993)
in "Poesia incompleta"

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Políbio Gomes dos Santos


POEMA DA VOZ QUE ESCUTA


Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro - a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.

Políbio Gomes dos Santos
(1911-1939)
In "A Voz que Escuta"

João Apolinário


OS POBRES TRABALHAM CEDO...


Os pobres trabalham cedo
cedo começam a vida.
Tudo neles é sempre cedo
Até a fome e a desgraça
uma estrela concebida
com duas chagas de medo
Abertas esponjas fundas
no corpo magro e doído
do homem desde criança
condenado a ser vendido
(pesado numa balança)
por qualquer preço colhido
na engrenagem ou na teia
duma aranha gigantesca
que entre ventres de lua cheia
(ainda no sangue) os pesca
os domina suga enreda
em meandros duma trama
que cobre a cidade toda

Esta cidade que acorda
na marmita dum rapaz
com doze anos apenas
e poucas horas de sono
caminhando para a luta
dos olhos do capataz
que faz as vezes do dono
Esta cidade que acorda
molhada triste dormente
e que em vez de algum bombom
no ventre daquele menino
(com doze anos apenas
e poucas horas de sono)
lhe amassa o pão numa açorda
que a própria fome da mãe
(a insónia do pão duro)
dá ao filho porque o dono
lhe marca bem o futuro

São quatro escudos que ganha
esta vítima da aranha

João Apolinário
(1924-1988)
In "O Guardador de Automóveis"

Raul de Carvaho


GUIO-ME...


Guio-me
Por teus olhos abertos
Sobre a trémula e ardente
Superfície das lágrimas.

De tantas coisas
É feito o Mundo!

Entre escombros, espigas, dias e noites
Procuram os homens ansiosamente
O ramo de louro.

Quando, fatigados,
Próximos estão do limiar, do pórtico,
Os homens deixam, à entrada,
Suas mais queridas coisas.

E ei-los que apenas se incomodam,
E se interrogam,
Sobre o modo mais simples
De se despir e adormecer.

Raul de Carvalho
(1920-1984)
in "Mesa da Solidão"

Raul de Carvalho


SERENIDADE ÉS MINHA
(À memória de Fernando Pessoa)



Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humidade das bocas.

Vem serenidade!
Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os ombros subam à altura dos lábios
e com que os lábios cheguem à altura dos beijos.

Carrega para a cama dos desempregados
todas as coisas verdes, todas as coisas vis
fechadas no cofre das águas:
os corais, as anémonas, os monstros sublunares,
as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.

Vem serenidade,
com o país veloz e virginal das ondas,
com o martírio leve dos amantes sem Deus,
com o cheiro sensual das pernas no cinema,
com o vinho e as uvas e o frémito das virgens,
com o macio ventre das mulheres violadas,
com os filhos que os pais amaldiçoam,
com as lanternas postas à beira dos abismos,
e os segredos e os ninhos e o feno
e as procissões sem padre, sem anjos e, contudo,
com Deus molhando os olhos
e as esperanças dos pobres.

Vem, serenidade,
com a paz e a guerra
derrubar as selvagens
florestas do instinto.

Vem, e levanta
palácios na sombra.
Tem a paciência de quem deixa entre os lábios
um espaço absoluto.

Vem, e desponta,
oriunda dos mares,
orquídea fresca das noites vagabundas,
serena espécie de contentamento,
surpresa, plenitude.

Vem dos prédios sem almas e sem luzes,
dos números irreais de todas as semanas,
dos caixeiros sem cor e sem família,
das flores que rebentam nas mãos dos namorados,
dos bancos que os jardins afogam no silêncio,
das jarras que os marujos trazem sempre da China,
dos aventais vermelhos com que as mulheres esperam
a chegada da força e da vertigem.

Vem, serenidade,
e põe no peito sujo dos ladrões
a cruz dos crimes sem cadeia,
põe na boca dos pobres o pão que eles precisam,
põe nos olhos dos cegos a luz que lhes pertence.

Vem nos bicos dos pés para junto dos berços,
para junto das campas dos jovens que morreram,
para junto das artérias que servem
de campo para o trigo, de mar para os navios.

Vem, serenidade!
E do salgado bojo das tuas naus felizes
despeja a confiança,
a grande confiança.
Grande como os teus braços,
grande serenidade!

E põe teus pés na terra,
e deixa que outras vozes
se comovam contigo
no Outono, no Inverno,
no Verão, na Primavera.

Vem, serenidade,
para que não se fale
nem de paz nem de guerra nem de Deus,
porque foi tudo junto
e guardado e levado
para a casa dos homens.

Vem, serenidade,
vem com a madrugada,
vem com os anjos de oiro que fugiram da Lua,
com as nuvens que proíbem o céu,
vem com o nevoeiro.

Vem com as meretrizes que chamam da janela,
volume dos corpos saciados na cama,
as mil aparições do amor nas esquinas,
as dívidas que os pais nos pagam em segredo,
as costas que os marinheiros levantam
quando arrastam o mar pelas ruas.

Vem serenidade,
e lembra-te de nós,
que te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio,
um sítio aonde a morte tem todos os direitos.

Lembra-te da miséria dourada dos meus versos,
desta roupa de imagens que me cobre
corpo silencioso,
das noites que passei perseguindo uma estrela,
do hálito, da fome, da doença, do crime,
com que dou vida e morte
a mim próprio e aos outros.

Vem serenidade,
e acaba com o vício
de plantar roseiras no duro chão dos dias,
vício de beber água
com o copo do vinho milagroso do sangue.

Vem, serenidade,
não apagues ainda
a lâmpada que forra
os cantos do meu quarto,
papel com que embrulho meus rios de aventura
em que vai navegando o futuro.

Vem, serenidade!
E pousa, mais serena que as mãos de minha Mãe,
mais húmida que a pele marítima da cais,
mais branca que o soluço, o silêncio, a origem,
mais livre que uma ave em seu voo,
mais branda que a grávida brandura do papel em que escrevo,
mais humana e alegre que o sorriso das noivas,
do que a voz dos amigos, do que o sol nas searas.

Vem serenidade,
para perto de mim e para nunca.

.....................................................

De manhã, quando as carroças de hortaliça
chiam por dentro da lisa e sonolenta
tarefa terminada,
quando um ramo de flores matinais
é uma ofensa ao nosso limitado horizonte,
quando os astros entregam ao carteiro surpreendido
mais um postal da esperança enigmática,
quando os tacões furados pelos relógios podres,
pelas tardes por trás das grades e dos muros,
pelas convencionais visitas aos enfermos,
formam, em densos ângulos de humano desespero,
uma nuvem que aumenta a vã periferia
que rodeia a cidade,
é então que eu peço como quem pede amor:
Vem serenidade!

Com a medalha, os gestos e os teus olhos azuis,
vem, serenidade!

Com as horas maiúsculas do cio,
com os músculos inchados da preguiça,
vem, serenidade!

Vem, com o perturbante mistério dos cabelos,
o riso que não é da boca nem dos dentes
mas que se espalha, inteiro,
num corpo alucinado de bandeira.

Vem serenidade,
antes que os passos da noite vigilante
arranquem as primeiras unhas da madrugada,
antes que as ruas cheias de corações de gás
se percam no fantástico cenário da cidade,
antes que, nos pés dormentes dos pedintes,
a cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos,
a revolta semeie florestas de gritos
e a raiva vá partir as amarras diárias.

Vem, serenidade,
leva-me num vagon de mercadorias,
num convés de algodão e borracha e madeira,
na hélice emigrante, na tábua azul dos peixes,
na carnívora concha do sono.

Leva-me para longe
deste bíblico espaço,
desta confusão abúlica dos mitos,
deste enorme pulmão de silêncio e vergonha.
Longe das sentinelas de mármore
que exigem passaporte a quem passa.
A bordo, no porão,
conversando com velhos tripulantes descalços,
crianças criminosas fugidas à polícia,
moços contrabandistas, negociantes mouros,
emigrados políticos que vão
em busca da perdida liberdade.
Vem, serenidade
e leva-me contigo.

Com ciganos comendo amoras e limões,
e música de harmónio, e ciúme, e vinganças,
e subindo nos ares o livre e musical
facho rubro que une os seios da terra ao Sol.

Vem, serenidade!
Os comboios nos esperam.
Há famílias inteiras com o jantar na mesa,
aguardando que batam, que empurrem, que irrompam
pela porta levíssima,
e que a porta se abra e por ela se entornem
os frutos e a justiça.

Serenidade, eu rezo:
Acorda minha mãe quando ela dorme,
quando ela tem no rosto a solidão completa
de quem passou a noite perguntando por mim,
de quem perdeu de vista o meu destino.

Ajuda-me a cumprir a missão de poeta,
a confundir, numa só e lúcida claridade,
a palavra esquecida no coração do homem.

Vem serenidade
leva os vencidos,
regulariza o trânsito cardíaco dos sonhos
e dá-lhes nomes novos,
novos ventos, novos portos, novos pulsos.
E recorda comigo o barulho das ondas,
as mentiras da fé, os amigos medrosos,
os assombros da Índia imaginada,
o espanto aprendiz da nossa fala,
ainda nossa, ainda bela, ainda livre
destes montes altíssimos que tapam
as veias ao Oceano.

Vem, serenidade,
e faz que não fiquemos doentes, só de ver
que a beleza não nasce dia a dia na terra.
E reúne os pedaços dos espelhos partidos,
e não cedas demais ao vislumbre de vermos
a nossa idade exacta
outra vez paralela ao percurso dos pássaros.

E dá asas ao peso
da melancolia,
e põe ordem no caos e carne nos espectros,
e ensina aos suicidas a volúpia do baile,
e enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem,
e não apagues nunca o fogo que os consome,
o impulso que os coloca, nus e iluminados,
no topo das montanhas, no extremo dos mastros,
na chaminé do sangue.

Serenidade, assiste
à multiplicação original do Mundo:
Um manto terníssimo de espuma,
um ninho de corais, de limos, de cabelos,
um universo de algas despidas e retrácteis,
um polvo de ternura deliciosa e fresca.

Vem, e compartilha
das mais simples paixões,
do jogo que jogamos sem parceiro,
dos humilhantes nós que a garganta irradia,
da suspeita violenta, do inesperado abrigo.

Vem, com teu frio de esquecimento,
com a tua alucinante e alucinada mão,
e põe, no religioso ofício do poema,
a alegria, a fé, os milagres, a luz!

Vem, e defende-me
da traição dos encontros,
do engano na presença de Aquele
cuja palavra é silêncio,
cujo corpo é de ar,
cujo amor é demais
absoluto e eterno
para ser meu, que o amo.

Para sempre irreal,
para sempre obscena,
para sempre inocente
Serenidade, és minha.

Raul de Carvalho
(1920-1984) in "Líricas Portuguesas" 3ª edição de Novembro de 1958.