quinta-feira, 30 de setembro de 2010

António Torrado






O CONTADOR ANTES DE COMEÇAR



O contador
antes de começar
fez um gesto no ar
em redondo
como se quisesse desenhar
o Sol
a casca de um caracol
um balão
a sombra de um pião
um bombo...
E disse:
- A história que vou contar
começa por uma ponta
dá uma volta reviravolta
meia tonta
e acaba
tal e qual
mesmo ao lado
donde tudo tinha começado.


Por isso,
para a cambalhota final
da história em salto mortal
onde ninguém corre perigo,
contem
contem comigo.
E o contador, contente
por contar,
ficou-se a olhar
para toda aquela gente
à roda da história
e dele,
contador
desenhador no ar
inventor da arte de saltar
sem se mexer.
Ficou-se a olhar, a olhar
e suspirou de prazer
a ponto de se esquecer
de continuar.


- Mas onde é que eu ia? -
- perguntou o contador,
um pouco perdido
no meio do contentamento
do contar e ouvir contar,
que é assim a modos que
uma espécie de cócega,
virada do avesso,
uma sede, um sabor
um sabor a pêssego
antes do pêssego chegar ao calor
do céu-da-boca...


- Ah! - lembrou-se o contador
que, às vezes, se distraía
dos recados que trazia.
E com um lento aceno
de quem muda a folha
dum livro ou do pensamento,
o contador concluiu:
A história que vou contar
é, nem mais nem menos,
do que uma história circular
como vão já já já
poder observar


Ora façam favor de reparar...

António Torrado

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Egito Gonçalves


SENTO-ME ENTÃO A OLHAR O RIO


Sento-me então a olhar o rio,
os pensamentos formam cardumes
que contra a corrente se insurgem
mas as águas são inexoráveis;
olhando-as, a superfície cintila,
propaga-se como se fossem notas
de um piano na garupa de um cavalo
que se dirige para o mar.
O Douro bebe as cores da cidade,
sobre elas eu abro o coração
em que te encontras, as colinas
emolduram as raízes que à terra
nos ligam. Para os meus olhos
é momento de pausa: as coisas
que interrogo não resistem à maré,
não dão respostas; perdem-se no mar
como tudo o que a memória não reteve.
Mas este rio
já foi longamente folheado, nele
escrevemos
o romance que nos deu uma casa,
nos cortou o cabelo, nos afastou
das rugas, nos entregou o azul
(tecido, nuvem, divã, janela...),
o voo das artérias, lugar do corpo,
portas que amanhecem, espelho
onde fazemos fluir a vida. Acordes
da guitarra que forja o horizonte,
que guia o sinuoso voo das gaivotas
e acaricia a pele que rasga atalhos
no interior dos sonhos. Estarei
vivo enquanto assim me guardar
teu coração. E no seu lucilar,
esta água imita o fogo
que devora sombras e escombros,
libertando a asa que no sangue
respira. A foz está próxima,
mas o horizonte é o teu olhar.
No leitor do carro, a guitarra flexível
sublinha o que divago; os acordes
disparam,
encontram-me na trajectória do seu alvo.

Egito Gonçalves

Egito Gonçalves


O TEU NOME É UM VOCÁBULO

O teu nome é um vocábulo
de amor, uma carícia
que a língua desenvolve.
Não o posso pronunciar
em voz alta
quando não estou só. As
respirações alheias
corrompem: poderia
dissolver-se no vento,
fragmentar-se
perder
o seu mistério indecifrável,
desviar
a flecha do seu alvo.
Pronuncio-o eliminando
o som, das duas sílabas
que rolam no meu corpo,
abrem os poros e,
pelos olhos,
enviam a mensagem necessária
ao suporte de Outubro.
Tudo canta, rodeando o silêncio,
a ligeira brisa que perfuma
as letras
quando passas a porta
e o teu sorriso doce
avança para mim
A garganta abre-se,
as sílabas esvoaçam, transformam
o espaço em música,
os acordes da água:
o meu corpo é agora um piano
onde a alegria abre
a felicidade, as suas asas.


Egito Gonçalves

Federico Garcia Lorca


MORTE DE ANTONIMHO, O CAMBÓRIO

Vozes de morte soaram
perto do Guadalquivir.
Vozes antigas que procuram
voz de cravo varonil.
Cravou-lhes sobre as botas
mordidas de javali.
Na luta dava saltos
ensaboados de delfim.
Banhou com sangue inimigo
sua gravata carmesim,
mas eram quatro punhais
e teve que sucumbir.
Quando as estrelas cravam
rojões na água gris,
quando os novilhos sonham
verônicas de aleli,
vozes de morte soaram
perto do Guadalquivir.

Antonio Torres Heredia,
Cambório de dura crina,
moreno de verde lua,
voz de cravo varonil:
Quem te tirou a vida
perto do Guadalquivir?
Meus quatro primos Herédias
filhos de Benamejí.
O que em outros não invejavam,
era invejado em mim.
Sapatos cor de passa,
medalhões de marfim,
e esta cútis mesclada
com azeitona e jasmim.
Ai, Antoninho, o Cambório,
digno de uma Imperatriz!
Lembra-te da Virgem
porque vais morrer.
Ai, Federico García,
chama a Guarda Civil!
Já meu talhe se quebrou
como haste de milho.

Três golpes sangrentos teve
e morreu de perfil.
Viva moeda que nunca
tornará a repetir-se.
Um anjo garboso põe-lhe
a cabeça num coxim.
Outros de rubor cansado
acenderam um candil.
E quando os quatro primos
chegam a Benameji,
vozes de morte cessaram
perto do Guadalquivir.

Frederico Garcia Lorca
(1898-1936)

Gabriel Celaya


BIOGRAFIA

Não pegues na colher com a mão esquerda.
Não ponhas os cotovelos na mesa.
Dobra bem o guardanapo.
Isso, para começar.

Extraia a raiz quadrada de três mil trezentos e treze.
Onde fica o Tanganica? Em que ano nasceu Cervantes?
Dou-lhe um zero em comportamento se falar com o seu colega.
Isso, para continuar.

Parece-lhe decente que um engenheiro faça versos?
A cultura é um enfeite e o negócio é o negócio.
Se continuas com essa moça fechamos-te a porta.
Isso, para viver.

Não sejas tão louco. Sê educado. Sê correcto.

Não bebas. Não fumes. Não tussas. Não respires.
Ai, sim, não respirar! Dar o não a todos os nãos.
E descansar: morrer.

Gabriel Celaya (1911-1991)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Ramon Gómez De La Serna


"A única pessoa que muda de verdade a face do planeta é aquela que lavra modestamente o seu terreno."

Ramon Gómez De La Serna (1888-1963)

Léon Filipe


SEI TODAS AS HISTÓRIAS


Eu não sei muitas coisas , é verdade.
Apenas falo do que tenho visto.
E já vi:
Que o berço do homem o embalam com histórias.
Que os gritos de angustia do homem os afogam com histórias.
Que o pranto do homem o tapam com histórias.
Que os ossos do homem os enterram com histórias.
E que o medo do homem ...
Inventou todas as histórias.
Sei muito poucas coisas, é verdade,
mas adormeceram-me com todas as histórias...
e sei todas as histórias.

Léon Filipe (1884-1968)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Adolfo Casais Monteiro


VEM VENTO, VARRE!


Vem vento, varre
Sonhos e mortos.
Vem vento, varre
Medos e culpas.
Quer seja dia,
Quer faça treva,
Varre sem pena,
Leva adiante
Paz e sossego,
Leva contigo
Nocturnas preces,
Presságios fúnebres,
Pávidos rostos
Só cobardia.

Que fique apenas
Erecto e duro
O tronco estreme
De raiz funda.
Leva a doçura,
Se for preciso:
Ao canto fundo
Basta o que basta.

Vem vento, varre!

Adolfo Casais Monteiro

Inês Lourenço



TOPONÍMIA


Mudam-se os tempos. Já
não sabemos as matinais canções
nem habitamos vilas morenas.
Toleramos serventes de pedreiro louros,
de preferência não legalizados. Queremos
um grande apartamento em condomínio
fechado, um ferrari, uma piscina, um topo
de gama de uma coisa qualquer.


Temos ruas, temos praças e pontes
com nome de revolução. Como todos
os países temos hino - nação valente
imortal. Tivemos canela e diamantes,
santos, barregãs e dinastias de
tiranos e servos. Andámos muito
no mar, trocando rotas e poderes,
escravos, inquisições e cruzes.


Agora, neste estreito
quadrilátero, de onde saímos
e mal regressámos, sem índias nem
quinto império - salvou-se o manuscrito do
Luís Vaz a nado - restam-nos a sardinha
e a conquilha - ao que consta cercadas
de barcos espanhóis - o bacalhau
que já não vem da Terra Nova, a memória
dos pescadores de baleias, esgotada a captura
nas ilhas.


Também temos o treze
de Maio, o negócio clandestino
das abortadeiras, a broa de Avintes,
os tintos, por enquanto de marca e
o leitão da Bairrada e o Benfica e
o Sporting e o Futebol
Clube do Porto.


Temos ruas, temos praças e
pontes com nome de revolução,
topónimos nebulosos que a distância
apagará. Apenas aquela rua
chamada Cantor Zeca Afonso
poderá surpreender o transeunte
se acrescentarem o aviso:


nunca quis uma rua
só para si.

Inês Lourenço
(Logros Consentidos,2005)

Adolfo Casais Monteiro




V



A música era linda...
vinha do rádio, meiga, mansa,
macia como um corpo quente de mulher...
era doce, cariciosa e lânguida...


Mas eu tinha ainda nos ouvidos,
como um clamor de milhões de bocas:
“No campo de concentração hoje ocupado pelas nossas tropas
os alemães queimaram milhares de vivos num formo crematório...
Nas cubatas, os mortos misturavam-se com os moribundos...
O sargento S.S. não pôde recordar quantos homens tinha morto...
Os mortos apodrecem aos montes, e os vivos arrancam-lhes as roupas
para as fogueiras em que ao lado se aquecem...
EM MUITOS CADÁVERES ENCONTROU-SE UM CORTE LONGITUDINAL:
ERAM OS VIVOS QUE TINHAM TIRADO AOS MORTOS O FÍGADO
E OS RINS PARA COMER,
A ÚNICA CARNE QUE AINDA RESTAVA NOS CADÁVARES...”


E lembro-me de repente dum filme muito antigo
Em que o criminoso perguntava:
“De quoi est fait un homme, monsieur le comissaire?”
e nos seus olhos lia-se o pavor
de quem vi u um abismo e não lhe sabe o fundo...
De quoi est fait un homme? De que são feitos os homens
que queimaram vivos outros homens? Que tinham centos de crianças
a morrer de fome e pavor, escravos como os pais?
que matavam ou deixavam morrer homens aos milhões,
que os faziam descer ao mais fundo da degradação,
torturados, esfomeados, feitos chaga e esqueleto?
Eram esses mesmos homens
que faziam pouco da liberdade,
que vinham salvar o mundo da desordem,
que vinham ensinar a ORDEM ao planeta!
Sim, que traziam a paz com as grades das prisões,
a ordem com as câmara de tortura...


E depois a música vem, cariciosa e lenta,
a julgar que apaga a ignomínia que lançaram sobre a terra!
A julgar que esqueceremos a abjecção dos que sonharam
apagar da terra a insubmissão do homem livre!
Não — nem cárceres, nem deportações, nem represálias, nem torturas
acabarão jamais com a insubmissão do homem livre,
do homem livre nas cadeias, cantando nas torturas,
porque vê diante de si os irmãos que estão lutando,
que hão-se-cair, para outros sempre se erguerem,
clamando em vozes sempre novas
QUE O HOMEM NÃO SE HÁ-DE SUBMETER À VIOLÊNCIA!
Homens sem partido e de todos os partidos,
que nasceram com a revolta porque não lhes vale de nada viver para serem escravos,
homens sem partido e de todos os partidos —, menos todos quantos
só sabem dizer ORDEM! e clamar VIOLÊNCIA!
os que pedem sangue porque são sanguinários, sim,
mas também todos os que nunca souberam querer nada,
os que dizem “Não é possível que se torturem os presos políticos”,
os que não podem acreditar
porque não querem ser incomodados pela pestilência dos crimes cometidos para eles
— para eles continuarem a acreditar que a ORDEM não é apenas a mordaça
sobre as bocas livres que hão-de gritar até ao fim do mundo
QUE SÓ O HOMEM LIVRE É DIGNO DE SER HOMEM!

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
1944-45
(Europa, 1946)

Natália Correia


"O ACTO SEXUAL É PARA TER FILHOS"... João Morgado, deputado do CDS, quando se debatia a despenalização do aborto (1982).

FICOU CAPADO O MORGADO.


"O acto sexual é para ter filhos -disse ele.
Já que o coito-Diz Morgado-
tem como fim cristalino
fazer menino ou menina;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca
temos na procriação
prova que houve truca-truca.
Sendo pai de um só rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se função
faz o órgão - diz o ditado -,
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado"

Natália Correia,1982.

domingo, 26 de setembro de 2010

Raul de Carvalho


X

Todas as horas, todos os minutos,
são para mim a véspera da partida.

Preparo-me para a morte, como quem
Se prepara para a vida.

Em qualquer parte eu disse que a Beleza
Não nasce só mas sim acompanhada.

Não são palavras minhas as que eu digo.
A minha boca pertence aos que me amam.

Mudos e sós.
À nossa volta todos os amantes
Sentir-se-ão tranquilos.
Um coração puro
É como o sol:
Brilha todos os dias.

Raul de Carvalho
(1920-1984)
(Realidade Branca,1968)

Cesário Verde


Horas Mortas

O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

Cesário Verde

Jorge Ganhão / Manuel da Fonseca "O Vagabundo do Mar "

Manuel da Fonseca


O VAGABUNDO DO MAR

Sou barco de vela e remo
sou vagabundo do mar.
Não tenho escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré...

Muitas vezes acontece
largar o rumo tomado
da praia para onde ia...

Foi o vento que virou?
foi o mar que enraiveceu
e não há porto de abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?

Sei lá.

Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.

É, por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar.

E agora,
queira ou não queira,
cara alegre e braço forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar.

Manuel da Fonseca

Manuel da Fonseca


SETE CANÇÕES DA VIDA

-Quarta-

Depois que nossos pés andaram toda a terra,
cruzaram caminhos, devassaram florestas, escalaram montanhas
e volveram sangrentos riscando as estradas do mundo;
depois que o mar é um murmúrio azul de águas fáceis
e se foi o mistério que havia nas distâncias,
evaporado como espuma na quilha dos navios;
depois que nossas mãos mergulharam na noite milenária,
tocaram luas mortas, revolveram estrelas
e enfim! acenaram escorrendo luz de sóis:
- por que não vamos colher os frutos que nós semeámos?
porque não vamos, irmãos, porque não vamos?!

Manuel da Fonseca

Armindo Rodrigues


Liberdade

Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.

É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
e, mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.


Armindo Rodrigues
(1904-1993)

Joaquim Namorado


CANTAR DE AMIGO

Eu e tu: milhões!…

Entre nós – perto ou longe!
– entre nós rios e mares
montanhas e cordilheiras…

Eu e tu perdidos
nesta distância sem fim do desconhecido.

Eu e tu unidos
para além das cordilheiras
por sobre mares de diferença
na comunhão de nossos destinos confundidos
– a minha e a tua vida
correndo para a confluência
num mesmo Norte.

Eu e tu amassados
nesta angústia que é de nós,
minha e tua,
e mais do que de nós…

Eu e tu
carne do mesmo corpo
amor do mesmo amor
sangue do mesmo sacrifício!

Eu e tu
elos da mesma cadeia
grãos da mesma seara
pedras da mesma muralha!

Eu e tu, que não sei quem és.
Que não sabes quem sou:

– Eu e tu: Amigo! Milhões…

Joaquim Namorad0
(1914-1986)
In “Antologia de Poetas Alentejanos”
Edição da C. M. de Vila Viçosa

Sidónio Muralha


SONETO IMPERFEITO DA CAMINHADA PERFEITA


Já não há mordaças,nem ameaças,nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos...Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças,nem ameaças,nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Sidónio Muralha (1920 - 1982)

O NOVO CANCIONEIRO (1941)


...O NOVO CANCIONEIRO (1941), série de dez livros de poemas de jovens poetas, foi surpresa, revelação e abalo literário nos tempos terríveis da Segunda Guerra Mundial, quando parecia que o terror fascista ia tomar conta do mundo. A nova corrente realista surgia na sociedade, e no campo das letras, como uma uma lufada de ar fresco, de talento, de lirismo ligado à vida, apontando e acusando com coragem situações e injustiças, e, embora com dúvidas e contradições, confiando no destino dos povos e no futuro. A nova corrente poética justificava-se porque «o Dia do Juízo/não é no céu...é na Terra!».
Cada poeta fala por si e fala por todos. Assume o «eu» e explica um «nós» de fraternidade e militância. «Eu e tu/que não sei quem és, que não sabes quem sou:/eu e tu, Amigo! Milhões!»(Joaquim Namorado, Aviso à Navegação). Não se trata de uma posição contemplativa mas de uma atitude de intervenção e de luta. «Vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico/como era a Tuna do Zé Jacinto/tocando a marcha Almadanim» (Manuel Fonseca, Planície). Ou em palavras escaldantes, «Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas/que possam perturbar a nossa caminhada,/em que os poetas são os próprios versos dos poemas/e onde cada poema é uma bandeira desfraldada. «(Sidónio Muralha, Passagem de Nível.).
....................................................................................
José Gomes Ferreira, poeta militante e militante poeta, tinha consciência de que, na voz do poeta, «embora tão rubra e tão sozinha,/arde o sonho de todos nós/como uma bandeira».
Em todo este vasto movimento poético, de convicção e combate, a liberdade era um objectivo central contra a ditadura e era uma conquista, patente na poesia e na acção. «Ser livre/» nos versos de Armindo Rodrigues, (...) é estar atado, amordaçado, em sangue, exausto,/e, mesmo assim,/nunca desesperar,/de, custe o que custar,/chegar ao fim» (Liberdade).
....................................................................................
Álvaro Cunhal.
"Álvaro Cunhal A Arte, O Artista e a Sociedade"

sábado, 25 de setembro de 2010

José Antonio Muñoz Rojas


A FELICIDADE


A felicidade, o que é a felicidade? (A palavra
não me deixa feliz, diga-se de passagem). Eu diria
que é simplesmente ir contigo pela mão,
parar um instante porque um odor nos chama,
uma luz nos percorre, algo que nos aquece
por dentro e nos faz pensar que não é a vida
que nos leva, mas antes que a vida somos nós
e que viver é isso, simplesmente isso.


José Antonio Muñoz Rojas
(1909-2009)

António Ramos Rosa


DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO



Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra

escrevo cavo e escavo na cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente
uma pedra

busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo o corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras

Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto

Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto

As minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito

Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único no abismo branco

Sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total

Que tenho eu a dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que de mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada



António Ramos Rosa

(Poema dedicado a Álvaro Cunhal que se encontrava preso.)

Jorge Luis Borges


A LUA


Há tanta solidão nesse ouro.
A lua das noites não é a lua
do primeiro Adão. Os longos séculos
da vigília humana encheram-na
de antigo pranto. Olha para ela. É o teu espelho.

Jorge Luis Borges
"La Moneda de Hierro"
(1976)

Pablo Neruda


MULHER


Título de ouro e nome da Terra
Flor palpitante da Primavera
Levedura Santa da Vida
Chegou a hora da aurora,
A hora de todas as mulheres juntas
Defendendo a Paz, a Terra, o Filho,
Amor, dor e luta se congregam
Nos vossos corações juntos
E a minha palavra é esta :
Ajudemos o nascimento
da Igualdade e da Alegria

Pablo Neruda

Armando Silva Carvalho


AS CORDAS DE PAREDES


Nesta cidade sem música
o homem da guitarra gritava o seu segredo
com as mãos em desalinho.

Cristais de crispação
jorravam de uma lua baça
ou quentes do forno da madeira
do linho.

Aí vai a minha vida.
E o homem vergado sobre si, enrolado e mudo,
bordava-se nas suas cordas de aço
macias de suor e livres
do fracasso.

Nesta cidade de ventre abandonado ao vento
mais perverso
ele é uma raiz, uma toalha de água
leve tremor de pálpebras
que retine feliz
no rosto da nossa mágoa.

Colhemos a sonora fruta
que ele deixa tombar das mãos.
E como um rapazinho amedrontado
o homem da guitarra
ainda está aí
à espera de nós, da voz,
de outra cidade.
Talvez de outros irmãos.

Armando Silva Carvalho,"Lisboas - Roteiro Sentimental"

Ruy Cinatti


DE MONTE A MONTA...

De monte a monta, o meu grito
soa, soa, como voz
de um eco do infinito
ecoando em todos nós.

Timor cresce como um grito
ecoando em todos nós.

Ruy Cinatti

Sebastião Alba


GOSTO DOS AMIGOS

Gosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta.

Sebastião Alba

Rosalia de Castro


BEM SEI QUE NÃO HÁ NADA

Bem sei que não há nada
novo debaixo do céu,
que antes outros pensaram
as coisas que agora penso.

Porém, por que escrevo?
Bem, porque assim somos,
relógios que repetimos
eternamente o mesmo.

Rosalia de Castro
(1837-1885)

Miguel Florián


CHUVA


A água dilui a consciência, gota a gota
encharca as imagens, agitam-se os seus reflexos,
tremem apenas um instante sobre a ferida. Nunca
acabará a chuva. Na memória chove,
volto a ver os charcos da infância, uma manta
encharcada sobre vagas cabeças, e um rosto
muito fugaz de mulher. Sempre esteve a chover,
os pássaros fugitivos procuravam aquecer-se
no nosso sangue. Aquela boca de tépida lua
emudecida e fria, sobre a erva húmida…
Onde leva a água essas sementes?, em que mar
desaguam?, em que mãe germinam?, acaso
a alma é terra e, logo, já madura, frutificam
sob o tremor da memória? Tocar o mundo
com as nossas mãos cegas, e logo, na recordação,
outro mundo renasce mais intenso. Aquela
mão pousada sobre o tempo, aquela fronte
com o seu gesto de argila, e este turvo afã
do homem em levantar a sua casa destruída
sob a tempestade, esta inquietação de abrir
nas ondas de todos os regatos a entranha
acesa do musgo. Sim, em que oceano,
em que leito se vertem as palavras?, que cais
abrigam os seus barcos? O céu é água parada,
e o pó, e os vestígios que espelham e abrasam
na sua luz a consciência. Todos náufragos sob
igual aguaceiro, peregrinos do sonho,
crescendo sob o peito do tempo, sustendo-nos
sobre a mão incerta de um deus que nos ignora.

Miguel Florián

Sebastião da Gama


A VERDADE ERA BELA

A verdade era bela,
como vinha nos livros.
À beirinha das águas
a verdade era bela.

Os que deram por ela
abriram-se e contaram
que a verdade era bela,

Quase todos se riram.
Os que punham nos livros
que a verdade era bela,
muito mais do que os outros.

A verdade era bela
mas doía nos olhos
mas doía nos lábios
mas doía no peito
dos que davam por ela.

Sebastião da Gama

Sebastião da Gama


PELO SONHO É QUE VAMOS

Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?
- Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama

Álvaro Cunhal "Desenhos na Prisão"

Abel Salazar "TRAPEIRAS" óleo de 1921

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Carta de Álvaro Cunhal a Abel Salazar


Caro Dr.Abel Salazar:


Venho de ver a sua exposição.De início, choca a distância entre dois temas:a mulher ociosa e a mulher que trabalha.Custa a compreender como uma mesma sensibilidade pôde sentir a beleza serena e cuidada da mulher que vive para si-para os seus vestidos, o seu ménage, o seu aspecto-e a beleza do vigor e do esforço da mulher que luta pela vida e pelo pão, e que, por tal, se verga sob insuportáveis fardos.
Esse contraste tenho-o como a maior lição-talvez dada involuntariamente-a tirar da exposição dos seus trabalhos.
Mas se da parte do artista não houvesse apenas vibração ante o "espectáculo" do trabalho; se houvesse também uma compreensão do que remediavelmente doloroso tem esse trabalho; então haveria que exigir mais.
Mais que os bustos ajoujados pelo esforço. Mais que as mãos crispadas pelo desespero. Mais que as feições sombrias e trágicas. Mais que os braços enrodilhados sobre o tronco, a exprimirem retraimento forçado de aspirações. Mais que os passos cansados. Haveria que exigir do artista uma compreensão paralela da beleza serena das elegantes burguesas, do que essa beleza deve a esses outros corpos deformados, do que essa serenidade deve a essas outras almas inquietas e angustiadas. Das burguesinhas haveria que traduzir o egoísmo, a vaidade, o vazio de sentimentos e -acima de tudo- o seu desprendimento e desinteresse por aqueles a cujo esforço devem tudo com que se adornam e pintam, tudo o que comem e bebem. E haveria ainda que ridicularizar. Não quero dizer que se deformasse a realidade. O que é lamentável não é o facto de o artista não traduzir assim o mundo. Porque se assim o não vê, assim o não deve traduzir (exige-o a sinceridade, a base de toda arte séria). O que é lamentável é o facto de o artista assim o não ver, assim o não sentir. Porque, caro doutor, são dois mundos sim, mas que se interpenetram e explicam mutuamente.
Por isso, tenho como parte de mais interesse na exposição a série de quadros de mulheres no trabalho. Ao contrário do que sucede com muitos pintores "modernos" não há um embelezamento artificial da mulher trabalhadora. Ela nas feições contraídas, e nas atitudes desalentadas ou desesperadas, e na tragédia dos olhos que procuram resistir à sombra e à sonolência da fadiga, se adivinha o descontentamento e a vontade de libertação - mal definidos ainda, talvez excessivamente instintivos-, num passo para o levantamento e para revolta.
A mulher trabalhadora aparece mergulhada nas trevas poirentas das oficinas, onde raras manchas de luz lembram que no nosso país o sol brilha. Ou então, os seus pés descalços e inchados chapinham dolorosamente na lama. As roupas são ásperas, sujas, suadas e bafientas. As cabeças abaixam-se sob o peso do fardo. Porém não é o desalento que as atira irresistivelmente para baixo. As cabeças não pendem. Vergam sim mas retesadas e enérgicas; suportando, mas reagindo. Essa sua série de trabalhos marca uma posição nova na nossa pintura moderna. Constitui uma primeira interpretação vigorosa, realista e revolucionária do mundo do trabalho.
Sem dúvida, eu não tenho a pretensão de dizer-lhe coisas novas, nem de lhe dar conselhos. Mas, vendo a sua exposição, senti-me no dever de encorajar o artista, de o incitar a ir mais longe, mesmo que a coragem lhe não falte e seja já seu propósito assente ir ainda mais longe. Mas- ir mais longe com determinada direcção. E, na demarcação dessa direcção, vejo com desgosto muitos jovens progressistas deixarem agradar-se mais pelas "notas de Paris", que pelas múltiplas «mulheres no trabalho».

Álvaro Cunhal

Mais: Gostaria de ter um quadro seu, mas não posso comprar. Isto, de certa forma, é uma afirmação brusca e inesperada. Mas também é franca e sincera.

in "ABEL SALAZAR O Médico / O Cientista / O Artista / O Cidadão

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Ruy Belo


COMO QUEM ESCREVE COM SENTIMENTOS

Estou sujeito ao tempo sou este momento
perguntam-me quem fui e permaneço mudo
o tempo poisa-me nos ombros em relento
partiu no vento essa mulher e perdi tudo

Já não virá ninguém por muito que vier
em vão esperei a rosa da minha roseira
quando um pássaro sai dos olhos da mulher
é porque ela é de longe e não da nossa beira

Resta-me um sonho desconexo e desconforme
Na haste da camélia que o vento quebrou
jamais a vida branca como ela dorme
Eu era essa camélia e nunca mais o sou

A minha vida é hoje um sítio de silêncio
a própria dor se estreme é dor emudecida
que não me traga cá notícias nenhum núncio
porque o silêncio é o sinónimo da vida

O mundo para além dessa mulher sobrava
tudo vida vulgar tumultuária e cega
o brilho do olhar equilibrava a chuva
nas suas costas hoje toda a luz se apaga

Mulher que um golpe de ar me pôde arrebatar.
enfim não existia ou só ela existia
Asas que ela tivesse deixou-as queimar
e tê-la-á levado estranha ventania

Daqueles traços fisionómicos de pedra
não quero já ouvir a voz que às vezes vem
na calma destacada por um cão que ladra
Não há ninguém perto de mim sinto-me bem

Cada casa que roço é escura como um poço
se sou alguma coisa sou-o sem saber
sossego solitário sem mistério isso
talvez tivesse sido o que sempre quis ser

As flores vinham nela e era primavera
mas tanto a nomeei e tanto repeti
erros numa estratégia imprópria para ela
tamanho amor expus que cedo a consumi

A noite quando ao fim descer decerto há-de
ser certa solução. Foi há muito a infância
Ao tempo o que tu tens tu bem o sabes cede
estendo as mãos talvez te fique a inocência

A vida é uma coisa a que me habituei
adeus susto e absurdo e sobressalto e espanto
A infância é uma insignificância eu sei
e apenas por a ter perdido a amamos tanto

Estou sozinho e então converso com a noite
das palavras que nos subjugam nos submetem
As coisas passam e em vez delas é aceite
o nosso sistema de signos onde as metem

Esta minha existência assim crepuscular
devida àquela que é rastos destroços restos
acusa hoje alguma intriga consular
de quem não tem cabeça a comandar os gestos

Foi uma rosa rubra a autora desta obra
aberta e arrogante grácil flor do instante
que triunfante não há coisa que não abra
para ferir quem a viu e morrer de repente

E noite sou e sonho e dor e desespero
mero ser sórdido e ardido e encardido
mas já não tarda a abrir-se na manhã que espero
um arco com vitrais aos vendavais vedado

E embora a minha fome tenha o nome dela
e da água bebida na face passada
não peço nada à vida que a vida era ela
e que sei eu da vida sei menos que nada


Ruy Belo

Ruy Belo


A FLOR DA SOLIDÃO


Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário silencioso
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos

Ruy Belo

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Ruy Belo


PORTUGAL SACRO-PROFANO
-Lugar onde-


Neste país sem olhos e sem boca
hábito dos rios castanheiros costumados
país palavra húmida e translúcida
palavra tensa e densa com certa espessura
(pátria de palavra apenas tem a superfície)
os comboios são mansos têm dorsos alvos
engolem povoados limpamente
tiram gente de aqui põem-na ali
retalham os campos congregam-se
dividem-se nas várias direcções
e os homens dão-lhes boas digestões:
cordeiros de metal ou talvez grilos
que mãe aperta ao peito os filhos ao ouvi-los?
Neste país do espaço raso do silêncio e solidão
solidão da vidraça solidão da chuva
país natal dos barcos e do mar
do preto como cor profissional
dos templos onde a devoção se multiplica em luzes
do natal que há no mar da póvoa de varzim
país do sino objecto inútil
única coisa a mais sobre estes dias
Aqui é que eu coisa feita de dias única razão
vou polindo o poema sensação de segurança
com saúde de um grito ao sol
combalido tirito imito a dor
de se poder estar só e haver casas
cuidados mastigados coisas sérias
o bafo sobre o aço como o vento na água
País poema homem
matéria para mais esquecimento
do fundo deste dia solitário e triste
após as sucessivas quebras de calor
antes da morte pequenina celular e muito pessoal
natural como descer da camioneta ao fim da rua
neste país sem olhos e sem boca

Ruy Belo

in "Homem de Palavra(s)"

Ruy Belo


O VALOR DO VENTO


Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
o vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
o vento é o melhor veículo que conheço
só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
mas só hoje soube verdadeiramente o valor do vento
o vento actualmente vale oitenta escudos
partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto


Ruy Belo
"in TODOS OS POEMAS"

domingo, 19 de setembro de 2010

José Agustín Goytisolo


SEGREDO

Antes eu não sabia
porque é que se deve
- dia após dia –

andar sempre em frente
como se diz até
o corpo aguentar.

Agora sei.
Se vieres comigo
digo-te.

José Agustín Goytisolo

Yves Montand "Les Feuilles Mortes" de J.Prévert / J .Kosma

Jacques Prévert


MANHÃ FARTA


É terrível o som
da casca de ovo cozido partido sobre o balcão
é terrível esse som
quando ressoa na memória do homem sem pão
é terrível também a cabeça desse homem
do homem sem pão
quando se olha às seis da manhã
na montra do grande armazém
uma cabeça cor de farinha
mas não é para a sua cabeça que ele olha
na montra da loja Potin
está-se nas tintas para a sua cabeça, o homem
não pensa nela
sonha
imagina uma outra cabeça
uma cabeça de vitela, por exemplo,
com molho vinagrete
ou qualquer outra cabeça que se trinque
e remexe o maxilar lentamente
lentamente
e range os dentes lentamente
porque o mundo lhe dá cabo da cabeça
e ele nada pode contra esse mundo
e conta pelo dedos: um dois três
um dois três
há três dias que não come
e por muito que há três dias repita que
Isto não pode continuar
isto continua
três dias
três noites
sem comer
e atrás daqueles vidros
aqueles pastéis, aquelas garrafas, aquelas conservas
peixes mortos protegidos pelas latas
latas protegidas pelos vidros
vidros protegidos pelos chuis
chuis protegidos pelo medo
tantas barricadas para seis míseras sardinhas...
Logo adiante o bar da esquina
café-creme e croissants quentes
o homem cambaleia
e dentro da cabeça
uma névoa de palavras
uma névoa de palavras
sardinhas para comer
ovo cozido café-creme
café com pingo de rum
café-creme
café-creme
café-crime com pingos de sangue!...
Um homem muito estimado no seu bairro
foi degolado em pleno dia
o assassino vagabundo roubou-lhe
dois francos
ou seja: um café pingado
setenta cêntimos
duas fatias de pão com manteiga
e vinte e cinco cêntimos para a gorjeta do empregado.
É terrível
o som da casca do ovo cozido partido sobre o balcão
É terrível esse som
quando ressoa na memória do homem sem pão.


Jacques Prévert
"Paroles"

Jacques Prévert


PARIS AT NIGHT


Três fósforos um a um acesos na noite
O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos
O terceiro para ver a tua boca
E toda a escuridão para recordar tudo isso
Apertando-te nos braços.


Jacques Prévert
"Paroles"

Albert Camus


Albert Camus

(...)

«É verdade, o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média chamavam o «desconforto»? Em geral esqueciam-nos aí para o resto da vida. Esta cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficientemente alta para se poder estar de pé, nem suficientemente larga para se poder estar deitado. Tinha-se de adoptar o género tolhido, viver em diagonal; o sono era uma queda, a vigília um acocoramento. Meu caro, havia génio, e eu peso as minhas palavras, neste achado tão simples. Todos os dias, pelo imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, o condenado sabia que estava culpado e que a inocência consiste em nos espreguiçarmos gostosamente. Pode imaginar nesta cela um frequentador dos cimos e das cobertas dos navios. O quê? Podia-se viver nesta cela e ser-se inocente? Improvável, altamente improvável. Ou então o meu raciocínio caía pela raiz. Que a inocência seja forçada a viver corcunda, recuso-me a considerar por um único segundo esta hipótese. De resto, nós não nos podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos. Cada homem atesta o crime de todos os outros, eis a minha fé e a minha esperança.
Acredite-me, as religiões enganam-se desde o momento que pregam moral e fulminam mandamentos. Deus não é necessário para criar culpabilidade, nem para castigar. Para isso bastam os nossos semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do juízo final. Permita-me que ria respeitosamente. Eu espero-o a pé firme: conheci o que há de pior, que é o juízo dos homens.»

(...)

Albert Camus
in "A Queda"
(Livros do Brasil,
Tradução revista de José Terra)

sábado, 18 de setembro de 2010

Jacques Brel


JACQUES BREL / JOANNE ESNER:


Disseram-me Brel-gica. Disseram-me Brel alegre, Brel triste, Brel louco, Brel doente.
Disseram-me das suas noites em claro a contar histórias sem fim, das suas canecas de cerveja que cobriam mesas, da suas tournées por estradas cobertas de gelo, sempre sozinho ao volante a percorrer as Ardenas, como aposta, como teimosia e na insistência ao mergulhar dez ou onze vezes, de fato e gravata, nas águas geladas do Zoute, às cinco da manhã de um dia para liquidar Frantz.

Disseram-me que Brel era um homem da noite e homem do dia, que era famélico e de paladar requintado, que todas as manhãs sofria ao espelho e se tornava belo sob a luz violenta dos projectores do Olympia.

Disseram-me que ele sabia pilotar Boeings, até mesmo os 747, e que vomitava sempre antes de entrar no palco. Sempre, sem excepção.

Disseram-me que as suas paisagens eram feitas das águas cinzentas e moribundas do Inverno, mas que necessitava de sol, dos trópicos, das tórridas ilhas Marquesas para viver, para respirar.

Disseram-me que ele não gostava muito das mulheres, mas que para elas tinha descoberto pérolas de chuva vindas de países onde nunca chove.

Disseram-me que cedo tinha cortado relações com a família e que os primeiros dinheiros que ganhou serviram para comprar uma máquina americana para a fábrica do pai.

Disseram-me que era um mão-rotas, mas que a sua mulher geria em seu nome os bens, os seus poemas, os seus tesouros.

Eu só conhecia o eremita selvagem, inimigo da imprensa, sem concessóes, e falaram-me de noites de farra em que ele foi o animador.
Esse misantropo, esse marginal forte, puro e duro pagou do seu bolso três curas de desintoxicação a um judeu louco que encontrou por acaso e que, um belo dia lhe pediu dinheiro.
Era o blasfemo, o excomungado, que foi amigo toda a vida de um padre a sério, que ele visitava a cada regresso.

Disseram-me que era feio, desajeitado de corpo e, no entanto, mulheres muito belas o quiseram, o perseguiram, o conquistaram.

Quando partiu para viver longe de todios, a trinta e cinco horas de voo da Europa, a oito dias de viagem de Paris (contando as esperas), Brel escrevia num postal endereçado ao seu amigo de infância Frantz: "Até já".

Disseram-me que ele tinha passado noites inteiras numa salinha das traseiras de um cabaret à espera de poder rever alguns amigos, ele, o puro-sangue impaciente perante os minutos, os dias, o tempo, sempre apressado, sempre demasiado apressado.

Falaram-me de um homem com uma tão grande pressa de viver e de outro, o mesmo, que sabia esperar anos e anos para ser oportuno.

Disseram-me que a sua vida eram só vitórias, que o sucesso lhe sorria em todas as suas iniciativas, ele que só contava o insucesso, o desespero apreendido de cor, ou desaprendido, o desespero, que volta sempre. Foram vitórias, sem dúvida.
Excepto Le Far West. E também me falaram de Le Far West .

Disseram-me que o cancro começou no fim das filmagens. Que ele sabia. Que ele se estava nas tintas, dado que ainda havia submarinos que ele não conhecia, e vinte mil léguas submarinas e montes de estrelas na Via Láctea e coragem, Brel, coragem e quantas coisas mais?

Tanto me disseram, o Frantz, o Pierre, o Jacques, o Edouard, o Henri, a Zozo, o Janou, tanto, que a certa altura eu perguntei a mim mesmo como é que era Jacques Brel. Mas o personagem que eles não desvendavam não o conseguia eu fixar, como num sonho triste em que uma cara se aproxima e se transforma em porcelana. E, um dia, mesmo antes da minha partida, um amigo dele mostrou-me um filme que tinha uma antiga entrevista de Brel. Três horas de entrevista, em que ele fala da sua vida, das pessoas e das coisas que ama.

E, a um dado momento, em resposta a uma pergunta relativa à sua profissão, Brel diz muito depressa uma frase, e foi essa a única que me ficou na memória, talvez po causa da veemência com que ele disse: "É preciso enganarmo-nos, é preciso ser imprudente, é preciso ser louco. De outro modo não passamos de diminuídos."

Joanne Esner

José Gomes Ferreira


ALGUNS DESTES MONSTROS...


(Vejo passar gente monstruosa através
da montra do café. Pesadelo.)


Alguns destes monstros
já nasceram como os vejo de mordaças de pano cru,
açames de gelo,
simulacro de dentes com fome (chora-se melhor assim),
silêncio por fora das palavras de que ninguém já sabe o sentido
sem desterro.

Outros entraram nas escolas
de bocas ainda livres
- mas logo corriam os senhores professores com agulhas enfiadas de treva
a coserem-lhe os lábios
com teias de aranha.
E ai de quem não desaprendesse
que os números têm a cor misteriosa dos dedos
- e fechem por favor as crianças nos quartos às escuras,
ensinem-nas a sonhar
a instrução primária dos cárceres
(contanto que não sonhem alto).

Os mais velhos,
esses operam-se,
substituem-se-lhes as cordas vocais
por guitarras de açúcar ardente,
enquanto se colam nos lábios dos ditadores
mecanismos com espelhos para darem a ilusão do diálogo,
e pequenos aparelhos transparentes de repetir ecos.

Outras vezes encosto-me
à porta do café
à espera do Carlos ou do Fafe
contente de haver raparigas luminosas nos intervalos,
todas tão ágeis nas suas mordaças de cetim implácido
tules de voos mentais,
filtros de véus de mel
a cheirarem tão bem a palavras lúcidas
atravessadas de risos e saliva.
De vez em quando
apetece-me quebrar os vidros do café
e perguntar aos monstros
(por gestos, visto as próprias palavras já serem mordaças):
como conseguem comer
com dentes de algodão em rama?
E onde aprenderam a sorrir assim
com gengivas forradas de sedas de punhal
e arame farpado nos bocejos?
- como se as mordaças tornassem o mundo mais azul
e as línguas beijassem melhor
fechadas em redomas de cristal.

Agora só falta amordaçar o resto,
o vento, os pássaros, as fontes, os vulcões, o fogo,
as maçãs, os oboés, os tufões
a desordem do sonho.

A desordem, sim. Porque a desordem já começou - informam os jornais
com alarde de tinta inquieta.
A desordem que vai destruir os tijolos do sono
nesta cidade
construída de perfumes mortos
e materiais de luz
por arquitectos que usam principalmente a argamassa do sol
traçada de céu vivo
na construção de cofres subterrâneos dos Bancos Loucos
onde os poetas guardam o ouro das nuvens dos poentes
para as reformas na velhice.

Sim. Garantem-me e eu confirmo,
graças aos sinais secretos que aprendi para furar mordaças
(ai dos poetas que não rasgam mordaças nem pedras!)
que já começou a desordem.

Mas uma desordem tão compassada e grave
que, pela primeira vez, não me apetece gritar
com os outros,
os que só agora repararam nas mordaças
e deixaram de ouvir
os violinos de viverem mortos,
como quem pede desculpa de haver relâmpagos e trovões
- a falsa linguagem dos gigantes nas alturas
que faz tremer o mundo
quando se torna humana.

Mas não assim, nas bocas cerradas à força com adesivos
destes pobres anões montados em sombras de burros espectrais
que apodrecem amordaçadamente dos cascos às crinas
e mesmo quando zurram não arreganham os dentes
para acordar o marasmo do pântano
onde os combates continuam e continuarão até à última caveira do sol,
- só com furor de ecos
em busca de lâminas
nas manhãs desistentes.


José Gomes Ferreira
Poesia V
Lisboa, 1958

António Ramos Rosa


A LIBERDADE É SABER QUE...

A liberdade é saber que ninguém ouve ou vê
o que em imaginada visão vou escrevendo
e que não é mais que a contingência de um instante
em que a palavra se aventura a não ser nada

Para quê a palavra se não vem de uma nascente
e se não abre um horizonte? Mas a palavra irrompe
do oriente que contém em si e é o vazio magnético
que transmuda o nada em mutação azul

Que posso ser eu mais que o vibrante vagar
em que do mundo só sinto a sua lonjura de veludo
e na página cintilam as brancas constelações?

Tal é o vago movimento da ingénua liberdade
que toca o seu extremo e cria o seu espaço
em que atravessa a sua ausência branca

António Ramos Rosa

José Gomes Ferreira


POEMA


(O Eugénio de Andrade espera-me num café. Atravesso as ruas do Porto - a cidade onde nasci - com os punhos cerrados de dor.)


Não nasci por acaso nestas pedras
mas para aprender dureza,
lume excedido,
coragem de mãos lúcidas.

Aqui no avesso da construção dos tempos
a palavra liberdade
é menos secreta.

Anda nos olhos da rua,
pega lanças aos gestos,
tira punhais das lágrimas,
conclui as manhãs.

E principalmente
não cheira a museu azedo
ou musgo embalado
pela chuva da boca dos mortos.

Começa nos cabelos das crianças
para me sentir mais nascido nestas pedras.
Porto
- cidade de luz de granito.

Tristeza de luz viril
com punhados de grito.


José Gomes Ferreira
(Porto,1900-Lisboa,1985)

José Gomes Ferreira


QUE ANDO A ESCONDER DE MIM.


Que ando a esconder de mim
com estes gritos de unhas contra a injustiça do mundo
que só me deixam no coração
tédios de céu afogado?

Que ando a esconder de mim
com esta raiva do amor pelos outros,
a querer arrancar lágrimas de tudo
para as colar nos olhos vazios?

Que ando a esconder de mim
nesta agonia de escurecer a alma
para a confundir com a noite
– bandeira negra de todos os humilhados?

Que ando a esconder de mim
sem coragem de mostrar aos homens
a minha pobre dor,
tão débil e exígua,
que em vão oculto atrás de toda a dor humana
para a tornar maior?

José Gomes Ferreira
(1900-1985)

José Gomes Ferreira


AH! SE ACONTECESSE ENFIM QUALQUER COISA!


Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa!

Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço!

Mas não.

Lá está o sol do costume
com a exactidão
duma bola de lume
desenhada a compasso...

...sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
- que é sol com bolor...

e desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.

Ah! Como queres que acredite em ti
- braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa?

José Gomes Ferreira
(Porto,1900-Lisboa,1985)

Pedro Tamen


NÃO SEI,AMOR,SE TE CONSINTO

Não sei, amor, sequer, se te consinto
ou se te inventas, brilhas, adormeces
nas palavras sem carne em que te minto
a verdade intemida em que me esqueces.



Não sei, amor, se as lavas do vulcão
nos lavam, veras, ou se trocam tintas
dos olhos ao cabelo ou coração
de tudo e de ti mesma. Não que sintas



outra coisa de mais que nos feneça;
mas só não sei, amor, se tu não sabes
que sei de certo a malha que nos teça,



o vento que nos leves ou nos traves,
a mão que te nos dê ou te nos peça,
o princípio de sol que nos acabes.

Pedro Tamen
(OS Quarenta E DOIS SONETOS,1973)

Mário Cesariny


NO PAÍS...

no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno


e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história de amor só até ao pescoço


e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora ai está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)


diz que grandeza de alma. Honestos porque
Calafetagem por motivo de obras.
relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato



Mário Cesariny (1923-2006)
discurso sobre a reabilitação do real quotidiano
manual de prestidigitação
assírio e alvim
1981

Gomes Leal



NA TABERNA

A João de Deus


Vejo apontar o Inverno...
os crepitantes frios
Me açoutam as vidraças...
(Francisco Manuel)


Alguns dormem nas mesas, debruçados,
Junto aos restos de um vinho já bebido;
--Outros contam seus casos desgraçados.--

Um delles alto, magro, mal vestido,
Conta historias d'amor, lançando fumo
Duum cachimbo de gesso enegrecido.

Um tenta levantar um outro a prumo
Sobre os ombros, e um calvo, e já vermelho
Faz das suas misérias um resumo.

Depois conta que o pão ético e velho
Lhe está para morrer; lastima a vida;
E sobre as vinhas pede um bom conselho.

A casa é escura, velha, enegrecida
Do fumo. Noite velha, ouve-se o vento
Bater na antiga porta carcomida.

O frio, a neve, a fome, o mau sustento
Tem quebrantado muito aquelas frontes,
E em muitos esmagado o pensamento.

N'alguns extinguido, mesmo, as fontes
Da justiça e do bem; e feito errar
No mundo, como os lobos pelos montes.

E o egoísmo dos filhos e do Lar
Banido o dó das lastimas estranhas;
E tornado-os mais frios do que o mar.

Alguns vivem nas neves, nas montanhas,
Outros o rio tem por seu vizinho;
E com a Fome travam más campanhas.

E--todos--tem o ar triste e mesquinho,
Dos que vão sem prazer, habituados,
Como a um sono que tira maus cuidados,

Beber as suas lágrimas com vinho.
(Gomes Leal, 1848-1921)
(Claridades do Sul,1875)