domingo, 28 de outubro de 2012

 ATERRAR...
 
 
Aterrar, espantar, amedrontar,
corromper, compelir, impor, forçar,
iludir, perverter, desvirtuar,
cuspir, espezinhar, escravizar,

embrutecer, escarnecer, violar,
humilhar, desprezar, vilipendiar,
agredir, explorar, aprisionar,
mentir, espoliar, arruinar,

bater, envilecer, atrofiar,
desiludir, rasgar, atraiçoar,
extorquir, subverter, desbaratar,

atrair, investir, encurralar,
ignorar, abortar, assassinar...
É da gente que estamos a falar.
 
Vasco Costa Marques
(1928-2006)
 




ÚLTIMO POEMA DO AMOR AUSENTE


Todo o corpo lhes dói de acertar os relógios
De momento a momento às vantagens do tempo
Meu amor meu amor tem por vezes o gosto
Do veneno sorvido ao desabar das pontes

A mais frágil aragem os confunde
O espaço aberto enreda-lhes os passos
O convívio da vida esboroa as palavras
A liberdade é um peso enorme nos seus ombros

«Tudo quanto perdi na violência do tempo
Veio hoje até mim como o espinho da flor
Como o operário morto entre o ferro e o cimento
Da construção do amor

Foi um lento e incógnito perfume
Foi um lago sem margens intransposto
Foi uma pedra vermelha de lume
O mais belo sorrir de desgosto»

Vasco Costa Marques
(1928-2006)
In "Poesia dos Dias Úteis"

sábado, 27 de outubro de 2012

 BATALHA DA SANGUESSUGA


Suga sangue, sanguessuga
suga sangue, mata a sede,
que o sangue também te suga,
que o sangue também tem sede.

Vais inchando, sanguessuga,
com meu sangue? Que me importa?



Conheço-te, sanguessuga!
Suga sangue, suga, suga,
que amanhã tombarás morta!

Rebentarás, sanguessuga,
como um odre, de repente?
morrerei eu de anemia?
Melodramaticamente?

Não no sei. Mas, sanguessuga,
morreremos nesse dia,
nasceremos nesse dia,
num segundo, para sempre!


 


António Luís Moita


In "Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa"


(1971)
SEJA ESTE  MINUTO


seja este minuto
o minuto de paz

esta palavra a palavra amiga
e a mão sem versos
poise na tua fronte

seja este minuto
o minuto de silêncio que pediste

e a vida não deu não tinha
 
Jaime Salazar Sampaio
(1925-2010)
In "O Silêncio de um Homem"
(1960)

ELEGIA EM FORMA DE EPÍSTOLA


A circunstância de sermos homem e mulher
presos por uma aliança tácita
e secreta
do sangue
é que nos prende à vida, meu amor, e nos salva.
Nascemos sem
passaporte,
entre fronteiras guardadas
por sentinelas de sal e de silêncio.
O rio da história
corre, estrangulado, entre as pedras,
e o cascalho, e os detritos humanos,
e a alegria suicida das coisas limpas e puras
abandonadas e soltas à vertigem da morte.
Construímos
para nossa defesa
um muro de ironia e de sarcasmo
– imponderável cortina
de humana ternura envergonhada
ou, como tu dizes, perseguida.
O silêncio
é a corda
que nos prende aos mastros,
a antena vegetal por onde
a vida se insinua,
universal e atenta.
Marinheiros
duma pátria
ancorada no tempo,
bebemos o sal dos minutos que passam
e adormecemos, hirtos, de costas para o mar.

Albano Martins
In "Coração de Bússola"
(1967)

terça-feira, 23 de outubro de 2012

 OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO.


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
In "Antologia Poética"
 MÃOS DADAS.


Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.


Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
In "Antologia Poética"

sábado, 20 de outubro de 2012

 CONTAS


Uma noite, quando a noite não acabava,
contei cada estrela no céu dos teus olhos;
e nessa noite em que nenhum astro brilhava

deste-me sóis e planetas aos molhos.


Nessa noite, que nenhum cometa incendiou,

fizemos a mais longa viagem do amor;

no teu corpo, onde o meu encalhou,

fiz o caminho de náufrago e navegador.


Tu és a ilha que todos desejaram,
a lagoa negra onde sonhei mergulhar,
e as lentas contas que os dedos contaram


por entre cabelos suspensos do ar -
nessa noite em que não houve madrugada

desfiando um terço sem deus nem tabuada.


Nuno Júdice
In "Contas x Contos x Cantos e Que +"

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

 QUADRAS DO ALEIXO.

Eu não sei porque razão
Certos homens a meu ver
Quanto mais pequenos são
Maiores querem parecer.

Veste bem já reparaste
Mas ele próprio ignora
Que por dentro é um contraste
Do que apresenta por fora.

António Aleixo
(1899-1949)
 PASSAMOS PELAS COISAS SEM AS VER.

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos;
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos:
como frutos de sombra sem sabor
vamos caindo ao chão apodrecidos. 


Eugénio de Andrade
(1923-2005)
SENTENÇA.

Quem pense e não aja
conforme ao que pensa
faz aos mais ofensa
e a si próprio ultraja.
Bem haja, bem haja
quem o medo vença.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
SÃO AMIGOS CAMARADAS E IRMÃOS.


São amigos camaradas e irmãos
Vão a monte aos gritos cantando
Passageiros de quilómetros vãos
com bandeiras de sonho acenando

São amigos camaradas e irmãos
Vão a monte dizendo cantigas
e são simples como as próprias mãos
grossas mãos de torcer as espigas

São amigos camaradas e irmãos
Levam fé com farnéis e amor
Passageiros de quilómetros vãos
vão pagar as promessas de dor

João Apolinário
(1924-1988)
In "O Guardador de Automóveis)
QUEM RENOVA O MISTÉRIO DA VIDA.


Quem renova o mistério da vida
Quem descobre depois o segredo
E para ganhar uma luta perdida
cava em si a coragem e o medo

Quem inventa a palavra e o amor
E procria os frutos maduros
dominando a semente e a flor
projectadas nos séculos futuros

João Apolinário
(1924-1988)
In "O Guardador de Automóveis"
(Edição de 29 e Dezembro de 1956)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

TERRA HUMANA

É inútil desistir.
Por detrás das muralhas da vontade
Mora o desejo, a força que as derruba.
Deixa que nasça, que avolume e suba
Esta maré de seiva e de ternura!
A grandeza do homem, criatura
Que cresce enquanto ama e pode amar,
É saber
Que só depois do gosto de pecar
Lhe vem o gosto de se arrepender.

Miguel Torga
(1907-1995)
Coimbra, 30 de Novembro de 1953
In "Diário VII" (1956)
 FADO
 
 
Tem cada povo o seu fado
Já talhado
No livro da natureza.
Um destino reservado,
De riqueza,
De pobreza,
Consoante o chão lavrado.
E nada pode mudar
A fatal condenação.
No solo que lhe calhar,
A humana vegetação
Tem de viver, vegetar,
A cantar
Ou a chorar
Às grades dessa prisão.

Miguel Torga
(1907-1995)
In "Poemas Ibéricos"
(1965)

domingo, 14 de outubro de 2012


A POESIA É UMA ARMA CARREGADA DE FUTURO

Quando já nada se espera de pessoalmente exaltante,
mas se palpita e se continua para cá da consciência,
ferozmente existindo, cegamente afirmando,
como um pulso que lateja nas trevas,

quando se olham de frente
os claros olhos vertiginosos da morte,
dizem-se as verdades:
as bárbaras, terríveis, amorosas crueldades.

Dizem-se os poemas
que dilatam os pulmões de quantos, asfixiados,
pedem ser, pedem ritmo,
pedem lei para o que sentem excessivo.

Com a velocidade do instinto,
com o raio do prodígio,
como mágica evidência, converte-se o real
no idêntico a si mesmo.

poesia para o pobre, poesia necessária
como o pão de cada dia,
como o ar que exigimos treze vezes por minuto,
para ser e enquanto somos dizer um sim que glorifica.

Porque vivemos de vez em quando, porque mal nos deixam
dizer que somos quem somos,
nossos cantos não podem sem pecado ser um ornamento.
Estamos a tocar o fundo.

Maldigo a poesia concebida como um luxo
cultural pelos neutrais
que lavando as mãos, se desinteressam e evadem.
Maldigo a poesia de quem não toma partido até manchar-se.

Faço minhas as faltas. Sinto em mim quantos sofrem
e canto ao respirar.
Canto, canto, e a cantar para além de minhas mágoas
pessoais, fico maior.

Quisera dar-vos vida, provocar novos actos,
e calculo por isso com técnica,que venço.
Sinto-me um engenheiro do verso e um operário
que com outros trabalha Espanha nos seus aços

Assim é a minha poesia: poesia-ferramenta
e ao mesmo tempo pulsação do unânime e cego.
Assim é, arma carregada de futuro expansivo
com que aponto ao peito.

Não é uma poesia gota a gota pensada.
Nem um belo produto. Nem um fruto perfeito.
É algo como o ar que todos respiramos
e é o canto que difunde o que dentro levamos.

São palavras que todos repetimos sentindo
como nossas, e voam. São mais que o que elas dizem.

São o mais necessário: o que possui um nome.
São no céu, e, na terra, são actos.

Gabriel Celaya,1911-1990
Tradução de José Bento.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

TESTAMENTO DO POETA


  Todo esse vosso esforço é vão, amigos:
Não sou dos que se aceita... a não ser mortos.
Demais, já desisti de quaisquer portos;
Não peço a vossa esmola de mendigos.

O mesmo vos direi, sonhos antigos
De amor! olhos nos meus outrora absortos!
Corpos já hoje inchados, velhos, tortos,
Que fostes o melhor dos meus pascigos!

E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje
Que tudo e todos vejo reduzidos,
E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge.

Para reaver, porém, todo o Universo,
E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!....
Basta-me o gesto de contar um verso.

José Régio

(1901-1969)
In "Poemas de Deus e do Diabo"

domingo, 7 de outubro de 2012

 POEMA QUOTIDIANO.


 É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro porém senhor administrador
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou
Orientou diz-se até os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar... Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro

Ruy Belo

(1933-1978)
In "Aquele Grande Rio Eufrates"
(1961).
 PERPLEXIDADE.


Hesito no caminho.
Ninguém segue este rumo...
É noutra direcção
Que o vento leva o fumo
Das paixões...
Chegar, sei que não chego,
De nenhuma maneira;
Mas queria ao menos ir no lírico sossego
De quem não se enganou na estrada verdadeira.


E não vou.
Cada vez mais sozinho
Na solidão,
Duvido da certeza dos meus passos.
Vejo a sede ancestral da multidão
Voltar costas às fontes que pressinto,
E fico na mortal indecisão
De afirmar ou negar o cego instinto
Que me serve de guia e de bordão.

Miguel Torga
(1907-1995)
In "Câmara Ardente"
(1962)

sábado, 6 de outubro de 2012

VILANCETE CASTELHANO DE GIL VICENTE


Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.
Se a lágrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem.

Carlos de Oliveira
(1921-1981)

CANÇÃO PARA FERNANDO LOPES-GRAÇA PÔR EM MÚSICA.



Não seja o travor das lágrimas
capaz de embargar-te a voz;
que a boca a sorrir não mate
nos lábios o brado de combate.

Olha que a vida nos acena
para além da luta.
Canta os sonhos com que esperas,
que o espelho da vida nos escuta.


 João José Cahofel
(1919-1982)







FIRMEZA. 


Sem frases de desânimo,
Nem complicações de alma,
Que o teu corpo agora fale,
Presente e seguro do que vale.
Pedra em que a vida se alicerça,
Argamassa e nervo,
Pega-lhe como um senhor
E nunca como um servo.

Não seja o travor das lágrimas
Capaz de embargar-te a voz;
Que a boca a sorrir não mate
Nos lábios o brado de combate.

Olha que a vida nos acena
Para além da luta.
Canta os sonhos com que esperas,
Que o espelho da vida nos escuta

João José Cachofel
(1919-1982)
CANÇÃO DOS RAPAZES DA ILHA.


Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá ...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá ...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei de atirar ao mar.
Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá ...
sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.


Aguinaldo da Fonseca.
(Cabo-Verde)

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

RENDIÇÃO


Vem, camarada, vem
render-me neste sonho de beleza!
Vem olhar doutro modo a natureza
e cantá-la também

Ergue o teu coração como ninguém;
Fala doutro luar, doutra pureza;
Tens outra humanidade, outra certeza:
Leva a chama da vida mais além!

Até onde podia, caminhei.
Vi a lama da terra que pisei,
e cobri-a de versos e de espanto.

Mas, se o facho é maior na tua mão,
vem camarada irmão,
erguer sobre os meus versos o teu canto.


Miguel Torga
(1907-1995)

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

COMO SE NUNCA:


É algo mais que o dia o que morre esta tarde?
O vento,
            - que leva ele,
que aromas arrebata?
Desatadas de súbito as folhas das árvores
cegas vão pelo céu.
Pássaros altos atravessam, adiantam-se
à luz que os guia.
            Sombria claridade
será já em outro sítio
- só por um instante –
madrugada.

Com bandeiras de fumo alguém me avisa:

            - Olha bem tudo isto;
isto que passa
não voltará jamais
e é como se não tivesse nunca sido

efémera matéria de tua vida.

Ángel González
(1925-2008) 
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.
                         ESTOU NA PRISÃO.


                         Estou na prisão. 
                         Prisão é tudo,
                         mesmo este pensamento
                         de revolta permanente
                         pois dele,
                         livre que sou
                         me não liberto.
                         Esta, porém, é mais estreita,
                         feita de muros e de grades
                         por homens e para homens,
                         que só se vence
                         pelo desprezo vertical,
                         pela teimosia vertical,
                         pelo amor violento.
 
                         Armindo Rodrigues
                         (1904-1993)
                          In "Sol dos Dias Tristes"
 
 
 
 
 
                        NÃO SE CANSA A NATUREZA.


                        
                         Não se cansa a natureza
                         em criar coisas em vão
                         Porque há tanto vinho e pão,
                         se faltam em tanta mesa?
                         Vivem uns de corpo erguido,
                         outros ao esforçado curvados.
                         Sonhos à razão negados,
                         à razão negais sentido.
                         Está errada a divisão
                         entre a fartura e riqueza
                         Não se cansa a natureza
                         em criar coisa em vão.
                         
                         Armindo Rodrigues
                         (1904-1993)
                          In "Breve Cancioneiro Devolvido"
 
 
 
 
 
 
 

SÍSIFO

Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.


Miguel Torga
(1907-1995)
In  "Diário  XIII"

FRATERNIDADE

 Não me dói nada meu particular.
Peno cilícios da comunidade.
Água dum rio doce, entrei no mar
E salguei-me no sal da imensidade.

Dei o sossego às ondas
Da multidão.
E agora tenho chagas
No coração
E uma angústia secreta.

Mas não podia, lírico poeta,
Ficar, de avena, a exercitar o ouvido,
Longe do mundo e longe do ruído.

Miguel Torga

(1907-1995)
In "Cântico do Homem"

terça-feira, 2 de outubro de 2012


 A tudo se empresta aroma.
 De tudo aroma se extrai.
 O trigo que o homem sonha
 Precede, vivo, o trigal.

 Nasce o trigo e cresce o pão
 Que no sonho se transforma.
 Só com raízes no chão
 Tem asas livres o homem.

 António Luís Moita
In " Cidade Sem Tempo"
ABDICAÇÃO

A paz que tenho,  dela abdico:
não satisfaz a minha ânsia.
– Só  a distância
me faz rico.

Que importam  velas, catedrais
para o meu sonho de partir?
– Sou  longe e mais
só com sorrir.

Lírios, amores, cavalos-de-pasta,
também os teve a minha infância.
– Só  a distância
hoje me basta.

Daniel Filipe
(1925-1964)
 






segunda-feira, 1 de outubro de 2012

 A ÁRVORE DO SILÊNCIO


Se a nossa voz crescesse, onde era a árvore?
Em que pontas, a corola do silêncio?
Coração já cansado, és a raiz;
Uma ave te passe a outro país.

Coisas da terra são palavra:
Semeia o que calou.
Não faz sentido quem lavra
Se não colhe o que amou.

Assim, sílaba e folha, porque não
Num só ramo levá-las
Com a graça e o redondo de uma mão?

( Tu não te calas? Tu não te calas?!)



(5-8-1962)


Vitorino Nemésio
(1901-1978)
In  "Canto de Véspera"
E EMBORA

E embora
o teu ódio me degrede
a este inferno,
e me condene
a séculos de sede,
também te acuso, terra:

de sendo fogo
os não queimares,
de tendo vento
os não levares,
de trazeres sobre o dorso
o horror dos mares
onde eles se não somem;

de não soltares
a besta vingadora
no nosso orgulho de homens.

Carlos de Oliveira
(1921-1981)
In "A Leve Têmpera do Vento"