segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O Trompetista Maurice André faleceu a noite passada (21/5/33-25/2/2012)

Carlos Drummond de Andrade


PROCURA DA POESIA



Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objecto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda húmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
In "Antologia da Poesia Brasileira"

Mário Dionísio


VIDA INTERIOR


1
Noutro tempo chorava
tristemente
com o peso do mundo nas costas dobradas

Ia
com os ombros caídos e os olhos no chão
abandonadamente
pelas estradas

Mas agora
cruamente
alguma coisa me põe os olhos secos
e me atira a cabeça
e o corpo todo
para a frente

2
Donde vem donde vem
esta mão invisível que me puxa
e nos junta tão forte?

Donde vem
este vento que se ergue e me põe deste lado
e nos põe deste lado
e me faz caminhar
e nos faz caminhar
teimosamente?

Donde vem este ardor?
Donde vem esta voz?

(felicidade crua do perig0
és tu quem fala alegremente
na tormenta)

Vem do fundo de mim
vem do fundo de nós

Mário Dionísio
(1916-1993)
In "Poesia Incompleta"

Cântico Negro de José Régio dito por José Régio.

Sebastião da Gama


BRINCADEIRA


Ando a correr atrás do Outro,
como fazem
dois meninos brincando num jardim...

… até me achar de repente,
sem saber como, o Outro lá da frente,
que vai fugindo de mim.

Sebastião da Gama
(1924-1952)
In "Serra-Mãe"

Vitorino Nemésio


CAMPOS DO MONDEGO


Salgueirinhos dos campos do Mondego.
Mais tenros do que os gestos dos meus filhos,
Cá venho ver-vos. Álamos e milhos,
Eis a rima, a noz oca do “sossego”.

Tudo quanto floristes no pilriteiro
No pilrito te dou desta saudade;
MAS OLHA QUE, SE UM HOMEM É VERDADE,
POBRE QUE SEJA, VALE UM RIO INTEIRO.

Sujo das minhas águas arrastadas,
Um momento me espelho dos teus dias
Pelas redondas águas sossegadas,

Como aquelas laranjas de oiro ardente
Que o comboio passando torna frias
Neste meu vago coração corrente.

Vitorino Nemésio
(1901-1978)

Em que local está placa?

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Luís Veiga Leitão


CORREDOR


Cem metros à sombra — temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
Neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.


Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de paz.


E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.


E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha dos railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes no cais.


E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa"

Fiama Hasse Pais Brandão


POEMA SOBRE A ESPERANÇA


Quem aqui espera está assim estando
alguém aqui sentado e a sua esperança

Alguém aqui já esteve e o desespero
quem esteve aqui sentindo e desespera

Aqui se espera e está em nosso assento
aqui em esperança estamos nós sentindo

Ao desespero aqui já não assente
quem aqui espera estando em sua esperança

Fiama Hasse Pais Brandão
(1938-2007)
in "Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa"
(3ª Edição Lisboa/1971)

António Guerra Carneiro




ALGUMAS PALAVRAS



Algumas palavras são mais que o som.
Soltam-se delas lâmpadas, por vezes gritos.
Palavras que demoram na boca
com o sabor da manhã de Outubro, o claro gosto
da terra húmida, castanha até doer.


E há noites em que se ouve, além das horas,
um chamar por nós, um apelo
comovido. Podemos afirmar: são irmãos,
são mães, são companheiras. Mas é outra a face
revelada. Todo um ruído quente
quase desanimado. Um ténue vento
queimando-se nos vidros. Posso dizer:
em noites assim alguns morrem, muito antes
de saberem o nome e a voz. De quem
esse clamor? Saber que na antiga casa
as portas se abriram, um ou outro quarto
vai iluminar-se e começa o dia!


Há palavras lança-chamas,
Conheço algumas que nos fazem viver,
por não serem simples som
mas estradas incendiadas por dentro,
duplos corações batendo com o calor
da certeza do dia que se segue.
Assim me apoio às palavras,
procuro a tudo dar um nome,
e em noites destas – salientes, defumadas,
com vozes que nos chamam – sou um corpo
novo. Quebrando o meu silêncio,
povoo alguns espaços de alegria.
Rasgo o papel. Irado, desejoso
de saber até onde, quando, como,
o corpo vai. Nas palavras me encontro.
Cansado, quase morto, à espera,
sempre à espera. Nas palavras vivo,
denuncio ou ataco. Há um grande sol
à nossa espera. Quantos somos?

Eduardo Guerra Carneiro
(1942-2004)
Do Livro "Algumas Palavras" (1969)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Papiniano Carlos


UM GALO CANTA


Um galo canta
na manhã futura.
Seu canto espanta
a noite escura.

Abre-se, floresce
como um clarim.
Ou será que amanhece
dentro de mim?

Aqui, onde
tudo acaba e principia:
sol que nunca se esconde,
noite que sempre foi dia.

Papiniano Carlos
In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"

Luís Veiga Leitão


SEGREDO


Lá, na última das celas
nódoa negra de açoites,
não há dias, não há noites
porque as as noites têm estrelas.

Lá, só na sombra que dói.
Sombra e brancura de um osso
que o preso remói, remói
no fundo do seu poço.

Lá, quando o vierem buscar
amanhã, depois ou logo,
terá na alma mais um fogo,
mais uma chama no olhar.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Manuel António Pina


ATROPELAMENTO E FUGA


Era preciso mais do que silêncio,
era preciso pelo menos uma grande gritaria,
uma crise de nervos, um incêndio,
portas a bater, correrias.
Mas ficaste calada,
apetecia-te chorar mas primeiro tinhas que arranjar o cabelo,
perguntaste-me as horas, eram 3 da tarde,
já não me lembro de que dia, talvez de um dia
em que era eu quem morria,
um dia que começara mal, tinha deixado
as chaves na fechadura do lado de dentro da porta,
e agora ali estavas tu, morta(morta como se
estivesses morta!),olhando-me em silêncio estendida no asfalto,
e ninguém perguntava nada e ninguém falava alto!

Manuel António Pina
In "Poesia, com Saudade da Prosa"
(Uma antologia pessoal)

Manuel António Pina


OS MORTOS


Eu sei, é preciso esquecer,
desenterrar os nossos mortos e voltar a enterrá-los,
os nossos mortos anseiam por morrer
e só a nossa dor pode matá-los.

Tanta memória! O frenesim
escuro das suas palavras comendo-me a boca,
a minha voz numerosa e rouca
de todos eles desprendendo-se de mim.

Porém como esquecer? Com que palavras e sem que palavras?
Tudo isto (eu sei) é antigo e repetido; fez-se tarde
no que pode ser dito. Onde estavas
quando chamei por ti, literalidade?

E todavia em certos dias materiais
quase posso tocar os meus sentidos,
tão perto estou, e morrer nos meus sentidos,
os meus sentidos sentindo-me com mãos primeiras, terminais.


Manuel António Pina
In "Poesia,Saudade da Prosa"
(Uma antologia pessoal)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Papiniano Carlos



IMPROVISO NA MORTE DO SEMEADOR

Carregavas em teus ombros um navio
de relâmpagos, em teu coração a pedra
e a voz das cidades insubmissas.

Levavas em teu rastro uma aurora
de espigas, em teus lábios as palavras
que não temem fogo, frio ou morte.

Submerso no ódio e no terror, chegavas
em cada noite e, feroz, reconstruías
uma vez mais a esperança.

A terra semeavas e, por amá-la tanto,
(transforma-se o amador na coisa amada)
és agora, ó semeador, a própria semente
oculta e violenta.

Papiniano Carlos
in "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa..."

Luís Veiga Leitão


PÃO DE CÁRCERE


Da cova de mão inimiga
és uma pedra roxa e mole
-acre veneno de espiga
duma seara sem sol.

Pão cozido em chamas pretas.
Pão amassado e levedado
com suores de forçado
e ferrugem de grilhetas.

Branco e puro que fosses
teus olhos, olhos grandes
nunca seriam doces.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"

Luís Veiga Leitão


SOL


Tu que pões o oiro da doçura
na miséria de um fruto amargo
e na ruga duma pedra escura
o sorriso largo,
hoje
como são estranhas e raras
e roxas e cruas
as nossas mãos, amigo!

-Roubaram-lhe a cor do trigo
estes ladrões das searas.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Gabriel Okara



ADHIAMBO

Eu ouço muitas vozes
como dizem que um louco ouve;
eu ouço as árvores falarem
como dizem que um curandeiro ouve.

Talvez eu seja um louco,
eu seja um curandeiro.

Talvez eu seja louco,
pois as vozes tentam-me,
incitam-me desde a lua da meia noite e do silêncio da minha secretária
a caminhar na crista das ondas, atravessando o mar.

Talvez eu seja um curandeiro
que ouve seivas falantes,
que vê através das árvores
mas que perdeu os seus poderes
de invocação.

Mas as vozes e as árvores
convocam agora um nome e uma figura
esboçada em silêncio, que na
face da lua caminha, passando
sobre continentes e mares.

E eu levantei a minha mão,
a minha mão trémula, agarrando
o meu coração como um lenço
e acenei e acenei – e acenei -
mas ela desviou o olhar.


Gabriel Okara
Nigéria (n.1921)
Trad. de José Alberto Oliveira
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Egito Gonçalves


ENGANAM SOB A APARÊNCIA DOMÉSTICA...



«ESTES CÃES SÃO FEROZES» devia
estar escrito. Nada porém
desvenda à luz o facto,
o vau por onde escapar
aos colmilhos das feras.
Impunes, disfarçados,
organizam a ofensa
e a uma esquina, súbita,
a mordedura colhe-te.
Nada fizeste e és já
poeira na aluvião.

Alguns contravenenam, ganham
o preço do resgate, musculam
a cinza dos dedos mutilados.

Deviam inverter as grades. Deviam
estar abertos os caminhos.
Deviam ser mantidos em curto-
circuito, ali, entre os arames,
rotulados, bem longe: «CÃES
FEROZES: PERIGO!»


Egito Gonçalves
(1920-2004)
In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"

Cintio Vitier


CONFISSÃO


Bem que eu não saiba história, ou muito pouca, sou
o autor destas páginas.

Tudo me aconteceu desde o princípio.
Sou o protagonista,
a vitima, o culpado e o carrasco.

Sou o que olha e o que actua.
As idades descansaram em mim.
Os dias foram o meu alimento.
As ideias, minhas asas,
meus punhais.

Pelo vazio de minhas mãos passou
o rio das armas.

Meus olhos são os fornos em que ardeu
a criação inteira.

Meu canto é o silêncio.

Homem, mulher, criança, ancião,
cada gesto meu treme nas estrelas
atravessando o tempo irrepetível

Eu sou. Não busquem outro,
não torturem outro,
não amem outro.

Não tenho maneira de escapar.

Cintio Vitier
((1921-2009)
in "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
Trad. de José Bento.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Claudio Rodríguez


NOITE ABERTA


Bem-vinda a noite para quem vai seguro
e com os olhos claros olha sereno o campo,
e com a vida limpa olha com paz o céu,
sua cidade e sua casa, sua família e obra.

Mas de quem vacilante anda e vê sombra, sê duro
cenho do céu e vive o castigo de sua terra
e a malevolência de seus seres queridos,
inimiga é a noite e sua piedade acosso.

E ainda mais neste páramo de tão alta Rioja,
onde se abre com tal claridade que deslumbra,
tão próxima palpita que muito assombra, e muito
penetra na alma, fundamente a perturba.

Porque a noite sempre, como o fogo, revela,
melhora, pule o tempo, a oração o soluço,
dá pureza ao pecado, limpidez à lembrança,
castigando e salvando toda uma vida inteira.

Bem-vinda a noite com seu belo perigo.

Cludio Rodríguez
(1934-1999)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
Trad. de José Bento.

Primo Levi


VÓS QUE VIVEIS TRANQUILOS

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais forças para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

Primo Levi
(1919-1987)

Sophia Mello Breyner Andresen


NAQUELE TEMPO


Sob o caramanchão de glicínia lilás
As abelhas e eu
Tontas de perfume

Lá no alto as abelhas
Doiradas e pequenas
Não se ocupavam de mim
Iam de flor em flor
E cá em baixo eu
Sentada no banco de azulejos
Entre penumbra e luz
Flor e perfume
Tão ávida como as abelhas.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)