sábado, 31 de julho de 2010

Eugénio de Andrade


NÃO O PROCURES


Não o procures perto do mar,
não o procures
nas colinas.
Se o não descobres nos fenos,
se o não pressentes nas fontes,
procura-o nesta canção.
O seu canto vem doutro rio,
a fêmea doutro lugar.
Só quem ama assim as aves
traz o sol todo na mão.
O pão alvo está na mesa,
as azeitonas, o vinho,
ao lado a rosa, também ela
trazida doutra canção.
Não tardará que o melro branco
venha comer contigo
e com a luz fina de Abril.

Assim há-de cantar um dia
a terra
o seu coração pueril.

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade


O LUGAR da CASA

Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de Abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

Eugénio de Andrade

Miguel Torga


Aos Poetas

Somos nós
As humanas cigarras!
Nós,
Desde os tempos de Esopo conhecidos.
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos
A passar!...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras,
Asas que em certas horas
Palpitam,
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura!
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz!
Vinho que não é meu,
mas sim do mosto que a beleza traz!

E vos digo e conjuro que canteis!
Que sejais menestreis
De uma gesta de amor universal!
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural!
Homens de toda a terra sem fronteiras!
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
Crias de Adão e Eva verdadeiras!
Homens da torre de Babel!

Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão!
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão!


Miguel Torga

Miguel Torga


GUERRA CIVIL

É contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto
O que digo
E o que faço
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço

Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino.

Miguel Torga

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Pablo Neruda


Não te quero senão porque te quero.


Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Tal vez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.

Pablo Neruda

Eugénio de Andrade


Passamos pelas coisas sem as ver


Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 20 de julho de 2010

Sophia Mello Breyner Andresen


DATA

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça

Sophia Mello Breyner

domingo, 18 de julho de 2010

Pablo Neruda


Para o Meu Coração...

Para o meu coração basta o teu peito,
para a tua liberdade as minhas asas.
Da minha boca chegará até ao céu
o que dormia sobre a tua alma.

És em ti a ilusão de cada dia.
Como o orvalho tu chegas às corolas.
Minas o horizonte com a tua ausência.
Eternamente em fuga como a onda.

Eu disse que no vento ias cantando
como os pinheiros e como os mastros.
Como eles tu és alta e taciturna.
E ficas logo triste, como uma viagem.

Acolhedora como um velho caminho.
Povoam-te ecos e vozes nostálgicas.
Eu acordei e às vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam na tua alma.

Pablo Neruda
In "Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada"

José Saramago e a "LER"


A revista "LER" de Julho/Agosto de 2010 dedica um grande espaço à obra de José Saramago. São artigos e opiniões muito interessantes para ler, ou reler, por toda a gente.Vale a pena ler por isso aqui deixo a recomendação.

José Saramago "O POETA"


Neste último ano dediquei muito do meu tempo livre a ler,e reler,poesia.Desde sempre que me interessei pela poesia e pelos grandes poetas do mundo...desde Torga a Neruda... De José Saramago fui lendo tudo o que aparecia...menos a sua poesia que, quase, desconhecia. após a sua morte fui "ver" da poesia de Saramago e a surpresa foi grande e agradável. A todos os que já leram a "prosa" de Saramago recomendo estes dois "livrinhos" vão ver que vão gostar.

sábado, 17 de julho de 2010

António Lobo Antunes


EU QUERO MORRER NO MAR


Olha os meus olhos morena
porque a aventura é ficar
se a minha terra é pequena
eu quero morrer no mar.

Lençóis de algas e peixes
de barcos a menear
no dia em que tu me deixes
eu quero morrer no mar

E se o negro é a tua cor
respirando devagar
depois do amor meu amor
eu quero morrer no mar.

António Lobo Antunes

Pablo Neruda



PARA O MEU CORAÇÃO...

Para meu coração basta teu peito,
para tua liberdade as minhas asas.
Da minha boca chegará até ao céu
o que dormia sobre a sua alma.

És em ti a ilusão de cada dia.
Como o orvalho tu chegas às corolas.
Minas o horizonte com a tua ausência.
Eternamente em fuga como a onda.

Eu disse que no vento ias cantando
como os pinheiros e como os mastros.
Como eles tu és alta e taciturna.
E ficas logo triste, como uma viagem.

Acolhedora como um velho caminho.
Povoam-te ecos e vozes nostálgicas.
Eu acordei e às vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam na tua alma.

in "Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada"
Tradução de Fernando Assis Pacheco.

José Saramago


TENHO UM IRMÃO SIAMÊS


Tenho um irmão siamês
(Há quem tenha, mas o meu,
Ligado à sola dos pés,
Anda espalhado no chão,
Todo mordido da raiva
De ser mais raso do que eu.)

Tenho um irmão siamês
(É a sombra, cão rafeiro,
Vai à frente ou de viés
Conforme a luz e a feição,
De modo que sempre caiba
Nos limites do ponteiro.)

Tenho um irmão siamês
(Minha morte antecipada,
Já deitada,
À espera da minha vez.)

José Saramago
in "Provavelmente Alegria"

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Jorge de Sena


CARTA A MEUS FILHOS...

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena
(Lisboa 25/06/1959)

Jorge de Sena


POEMA


Dizem alguns directores literários
(e accionistas da própria propaganda)
que «o Sena não se vende». E é verdade:
Não vende. Só as putas se vendem.
E em Portugal são tantas que não há
bolsas bastantes para comprá-las,
nem caralhos bastantes
para fodê-las como mereciam.

Glasgow-Londres, 23 de Fevereiro de 1973

Jorge de Sena

A Canalha

Como esta gente odeia, como espuma
por entre os dentes podres a sua baba
de tudo sujo nem sequer prazer!
Como se querem reles e mesquinhos,
piolhosos, fétidos e promíscuos
na sarna vergonhosa e pustulenta!
Como se rabialçam de importantes,
fingindo-se de vítimas, vestais,
piedosas prostitutas delicadas!
Como se querem torpes e venais
palhaços pagos da miséria rasca
de seus cafés, popós e brilhantinas!
Há que esmagar a DDT, penicilina
e pau pelos costados tal canalha
de coxos, vesgos, e ladrões e pulhas,
tratá-los como lixo de oito séculos
de um povo que merece melhor gente
para salvá-lo de si mesmo e de outrem.

7 de Dezembro de 1971

Publicado na revista Hífen, Porto, nº.6, Fevereiro 1991.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Luís Cília canta João Apolinário "RECUSO-ME"

Luís Cília "Canto de Esperança"

Fernando Pinto do Amaral


CONSELHO AOS CRÍTICOS DO NOVO SÉCULO

Admit nothing
Blame everyone
Be bitter
Barbara Kruger


Se queres parecer inteligente,
desdenha de quem escreve coisas simples
e desconfia, desconfia sempre
dos sentimentos, das convicções.

Diz mal da tua época,
procura dar a tudo um ar difícil
e cita alguns autores que ninguém leu.

Se queres que te respeitem,
reserva a admiração e o elogio
pra certos mortos bem escolhidos,
de preferência estrangeiros,
e acima de tudo
não caias nunca na vulgaridade
de ser compreendido pelos que te lerem.

Fernando Pinto do Amaral
in "Pena Suspensa"

domingo, 11 de julho de 2010

Luís Cília canta Jorge de Sena "NO CASTO PROMONTÓRIO"

Zeca Afonso canta Jorge de Sena (Epígrafe para a arte de furtar)

Jorge de Sena


HEI-DE SER TUDO O QUE ELES QUEREM

1

Hei-de ser tudo o que eles querem:
a raiva é toda de eu não ser um espelho
em que mirem com gosto os próprios cornos,
as caudas com lacinhos, e os bigodes
de chibos capripédicos.
Não sou nem sequer imagem.
Mas voz eu sou
que como agulha ou lança ou faca ou espada
mesmo que não dissesse da miséria
de lodo e trampa em que se espojam vis
só porque existe é como uma denúncia.
Hei-de ser tudo, não o sendo. Um dia
– podres na terra ou nos caixões de chumbo
estes zelosos treponemas lusos -
uma outra gente, e limpa, julgará
desta vergonha inominável que é
ter de existir num tempo de canalhas
de um umbigo preso à podridão de impérios
e à lei de mendigar favor dos grandes.

2

De cada vez que um governo necessita de segredos,
por segurança do Estado
ou para melhor êxito
nas negociações internacionais,
é o mesmo que negar,
como negaram sempre desde que o mundo é mundo,
a liberdade.

Sempre que um povo aceita que o seu governo,
ainda que eleito com quantas tricas já se sabe,
invoque a lei e a ordem para calar alguém,
como fizeram sempre desde que o mundo é mundo,
nega-se
a liberdade.

Porque, se há algum segredo na vida pública
que todos não podem saber
é porque alguém, sem saber,
é o preço do negócio feito.
E se há uma ordem e uma lei que não inclua
mesmo que seja o último dos asnos e dos pulhas
e o seu direito a ser como nasceu ou o fizeram,
a liberdade
é uma farsa,
a segurança
é uma farsa,
a ordem é uma farsa,
não há nada que não seja uma farsa,
a mesma farsa representada sempre
desde que o mundo é mundo,
por aqueles que se arrogam ser
empresários dos outros
e nem pagam decentemente
senão aos maus actores.

Jorge de Sena
(1919-1978)

Ana Hatherly


ESTA GENTE / ESSA GENTE

O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unha e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer
ser dominada por gente

NENHUMA!

A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente

Ana Hatherly
in "Um Calculador de Improbabilidades"

Pablo Neruda


É PROIBIDO CHORAR SEM APRENDER


É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer
Ter medo de suas lembranças.

É proibido não rir dos problemas
Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,

Não transformar sonhos em realidade.
É proibido não demonstrar amor
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor.
É proibido deixar os amigos

Não tentar compreender o que viveram juntos
Chamá-los somente quando necessita deles.
É proibido não ser você mesmo diante das pessoas,
Fingir que elas não te importam,

Ser gentil só para que se lembrem de você,
Esquecer aqueles que gostam de você.
É proibido não fazer as coisas por si mesmo,
Não crer em Deus e fazer seu destino,

Ter medo da vida e de seus compromissos,
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro.
É proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar,

Esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque seus caminhos se
desencontraram,
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente.
É proibido não tentar compreender as pessoas,
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua,

Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte.
É proibido não criar sua história,
Deixar de dar graças a Deus por sua vida,

Não ter um momento para quem necessita de você,
Não compreender que o que a vida te dá, também te tira.
É proibido não buscar a felicidade,

Não viver sua vida com uma atitude positiva,
Não pensar que podemos ser melhores,
Não sentir que sem você este mundo não seria igual.

Pablo Neruda

Pablo Neruda


PAZ,MAS NÃO A SUA


Paz no Vietname!Olha o que deixaste
dentro dessa paz de sepultura
cheia de mortos por ti calcinados!

Com um raio de eterna queimadura
perguntarão por ti os enterrados.
Nixon, encontrar-te-ão essas mãos duras

da revolução sobre a terra
para humilhar tua pálida figura:

será o Vietname que te ganhou a guerra.

Nixon,não creio em tua imposta paz!
Tua invasão foi dizimada,foi vencida
quanto já não podias perder mais.

E quando teus bombardeiros homicidas
caíam como moscas abatidas
pelo disparar da liberdade!

Esta não foi a tua paz,Nixon sangrento!
Nixon,sanguinolento Presidente:
é tua a medalha de remordimento!

É apaz dos povos inocentes
que tu entregaste ao fogo e ao tormento!
É do Vietname a paz desfigurada

pelos teus papéis e embaixadores.
É a paz de uma terra dessangrada
e que encheu o mundo com seus louros

que brotaram do sangue derramado:

É a vitória do Ho Chi Minh ausente
a que te obrigou teu punho ensanguentado

a confirmar a paz desses valentes


Pablo Neruda
"in Antologia de Pablo Neruda"
(Tradução de José Bento)

sábado, 10 de julho de 2010

Nicanor Parra



FAZ FRIO


Há que ter paciência com o Sol.
Há quarenta dias
Que não se vê por nenhuma parte.

De sobrancelhas franzidas
Os astrónomos ianques examinam o céu
Como se estivesse cheio de maus presságios
E concluem que o Sol anda de viagem
Pelos países subdesenvolvidos
Com as malas cheias de dólares
Em missão de caridade cristã.

E os sábios soviéticos
─ Que estão por lançar um homem à Lua ─
Informam que o Sol
Anda pelos impérios coloniais
A fotografar índios desnutridos
E assassínios de negros em massa.

Em quem,
em quem podemos acreditar?

No poeta chileno
que nos pede
Para termos paciência com o pobre Sol!
Ele estaria feliz de brilhar
E de bronzear os corpos e as almas
Dos banhistas do hemisfério norte
─ Especialmente as coxas das raparigas
Que ainda não cumpriram vinte anos ─
Para isso foi feito.
Encantá-lo-ia aquecer a terra
Para que novamente o trigo floresça.

Mas as nuvens não o deixam sair.

Ele não tem culpa de nada:
Há que ter paciência com o Sol.


Nicanor Parra
"in Canciones Rusas(1967)

Nicanor Parra


ADVERTÊNCIAS

É proibido rezar, espirrar
Cuspir, elogiar, ajoelhar-se
Venerar, uivar, escarrar.

Neste recinto é proibido dormir
Inocular, falar, excomungar
Harmonizar, fugir, interceptar.

É estritamente proibido correr.

É proibido fumar e fornicar.

Nicanor Parra
"in La Camisa de Fuerza"

Nicanor Parra



ÚLTIMO BRINDE

Queiramos ou não
Temos apenas três alternativas:
O ontem, o presente e o amanhã.

E nem sequer três
Porque como disse o filósofo
O ontem é ontem
Apenas nos pertence como recordação:
À rosa desfolhada
Não se podem tirar mais pétalas.

São apenas duas
As cartas por jogar:
O presente e o dia de amanhã.

E nem sequer duas
Porque é um facto bem estabelecido
Que o presente não existe
Senão na medida em que se faz passado
E já passou…
como a juventude.

Bem feitas as contas
Resta-nos apenas o amanhã:
Ergo o meu copo
Por esse dia que jamais chega
Mas que é o único
De que dispomos realmente.

Nicanor Parra
"in Canciones Rusas(1967)

Eugénio de Andrade




À MEMÓRIA DE RUY BELO


Provavelmente já te encontrarás à vontade
entre os anjos e, com esse sorriso onde a infância
tomava sempre o comboio para as férias grandes,
já terás feito amigos, sem saudades dos dias
onde passaste quase anónimo e leve
como o vento da praia e a rapariga de Cambridge,
que não deu por ti, ou se deu era de Vila do Conde.


A morte como a sede sempre te foi próxima,
sempre a vi a teu lado, em cada encontro nosso
ela aí estava, um pouco distraída, é certo,
mas estava, como estava o mar e a alegria
ou a chuva nos versos da tua juventude.


Só não esperava tão cedo vê-la assim, na quarta
página de um jornal trazido pelo vento,
nesse agosto de Caldelas, no calor do meio-dia,
jornal onde em primeira página também vinha
a promoção de um militar a general,
ou talvez dois, ou três, ou quatro, já não sei:
isto de militares custa a distingui-los,
feitos em forma como os galos de Barcelos,
igualmente bravos, igualmente inúteis,
passeando de cu melancólico pelas ruas
a saudade e a sífilis do império,
e tão inimigos todos daquela festa
que em ti, em mim, e nas dunas principia.


Consola-me ao menos a ideia de te haverem
deixado em paz na morte; ninguém na assembleia
da república fingiu que te lera os versos,
ninguém, cheio de piedade por si próprio,
propôs funerais nacionais ou, a título póstumo,
te quis fazer visconde, cavaleiro, comendador,
qualquer coisa assim para estrumar os campos.
Eles não deram por ti, e a culpa é tua,
foste sempre discreto (até mesmo na morte),
não mandaste à merda o país, nem nenhum ministro,
não chateaste ninguém, nem sequer a tua lavadeira,
e foste a enterrar numa aldeia que não sei
onde fica, mas seja onde for será a tua.


Agrada-me que tudo assim fosse, e agora
que começaste a fazer corpo com a terra
a única evidência é crescer para o sol.

Eugénio de Andrade
(1978)"in Poesia de Eugénio de Andrade"

Eugénio de Andrade


O SORRISO



Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade
"in O Outro Nome do Mundo"

Eugénio de Andrade


AS AMORAS

O meu país sabe às amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade
"in O Outro Nome da Terra"

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Carlos Drummomd de Andrade


ENTRE O SER E AS COISAS

Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.


As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.


N´água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.


E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungido,
uma fogueira a arder no dia findo.

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade


MÃOS DADAS



Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.


Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Miguel Torga


MENSAGEM


Não me posso render, haja o que houver.
Salvar a vida pouco me adianta.
O pendão que levanta
A minha decidida teimosia,
Transcende a noite e o dia
De uma breve e terrena duração.
Luto por todos e também por mim,
Mas assim:
Desprendido da própria perdição.


É o espírito da terra que eu defendo,
Numa cega constância
De namorado:
Esta causa perdida em cada instância,
E sempre a transitar de tempo e de julgado.

Miguel Torga

Miguel Torga


EXORTAÇÃO

Em nome do teu nome,
Que é viril,
E leal,
E limpo, na concisa brevidade
— Homem, lembra-te bem —!
Sê viril,
E leal,
E limpo, na concisa condição.
Traz à compreensão
Todos os sentimentos recalcados
De que te sentes dono envergonhado;
Leva, doirado,
O sol da consciência
Às íntimas funduras do teu ser,
Onde moram
Esses monstros que temes enfrentar.
Os leões da caverna só devoram
Quem os ouve rugir e se recusa a entrar...

Miguel Torga
Chaves,27 de Setembro de 1960.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

António Gedeão


POEMA DA MORTE NA ESTRADA

Na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
estão quinhentos mortos com os olhos abertos.

A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo para fechar os olhos.

Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.

Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam.
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só momento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.

António Gedeão, in "Linhas de Força"

António Gedeão


POEMA NUMA ESQUINA DE PARIS


Dezenas e dezenas de pessoas passam ininterruptamente ao longo do passeio.
Umas para lá.
Outras para cá.
Umas para cá.
Outras para lá.
Mas cada uma que passa
tem de fazer na esquina um pequeno rodeio
para não se esbarrar com o par que aí se abraça.
Olhos cerrados, lábios juntos e ardentes,
tentam matar a inesgotável sede.
Através dos seus corpos transparentes
lê-se na esquina da parede:

DANS CETTE PLACE A ÉTÉ TUÉ
MAURICE DUPRÉ
HÉROS DE LA RÉSISTANCE:
VIVE LA FRANCE.


António Gedeão
(31/12/1966)

António Gedeão



IMPRESSÃO DIGITAL

"Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns


Quem diz escolhos, diz flores!
De tudo o mesmo se diz!
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.


Pelas ruas e estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandecente!!


Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos!
Onde Sancho vê moinhos,
D.Quixote vê gigantes.


Vê moinhos? São moinhos!
Vê gigantes? São gigantes!"


António Gedeão, in "Movimento Perpétuo"

terça-feira, 6 de julho de 2010

Alberto Caeiro


DA MINHA ALDEIA...

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

Alberto Caeiro

domingo, 4 de julho de 2010

Armindo Rodrigues


HOMEM,ABRE OS OLHOS E VERÁS

Homem,
abre os olhos e verás
em cada outro homem um irmão.

Homem,
as paixões que te consomem
não são boas nem más.
São a tua condição.

A paz,
porém, só a terás
quando o pão que os outros comem,
homem,
for igual ao teu pão.


Armindo Rodrigues
(1904-1993)

Armindo Rodrigues


LIBERDADE

Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.

É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
e, mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.


Armindo Rodrigues
(1904-1993)

Papiniano Carlos


CAMINHOS SERENOS

Sob as estrelas, sob as bombas,
sob os turvos ódios e injustiças,
no frio corredor de lâminas eriçadas,
no meio do sangue, das lágrimas
CAMINHEMOS SERENOS.

De mãos dadas,
através da última das ignomínias,
sob o negro mar da iniquidade
CAMINHEMOS SERENOS.

Sob a fúria dos ventos desumanos,
sob a treva e os furacões de fogo
aos que nem com a morte podem vencer-nos
CAMINHEMOS SERENOS.

O que nos leva e indestrutível,
a luz que nos guia connosco vai.
E já que o cárcere é pequeno
para o sonho prisioneiro,
já que o cárcere não basta
para a ave inviolável,
que temer, oh minha querida?
CAMINHEMOS SERENOS.

No pavor da floresta gelada,
através das torturas, através da morte,
EM BUSCA DO PAÍS DA AURORA,
DE MÃOS DADAS QUERIDA, DE MÃOS DADAS,
CAMINHEMOS SERENOS.

Papiniano Carlos

Papiniano Carlos



VOSSOS NOMES

No chumbo,no terror,na morte,com sangue escrevo vossos nomes.
Na pedra,no ácido,neste branco muro escrevo vossos nomes.
Nas trevas,no medo,na raiz da aurora escrevo vossos nomes.
No sonho,nos ventos,na flor do trigo escrevo vossos nomes.
No aço das duras tarefas,no relâmpago escrevo vossos nomes.
No amor,na cólera,na fome desta ave escrevo vossos nomes.
No sol que levamos,na verde esperança escrevo vossos nomes.
No riso,nas lágrimas,no coração da pátria escrevo
e semeio
vossos nomes.
No ventre em flor da minha amada semeio,escrevo
e multiplico
vossos nomes.


PAPINIANO CARLOS in "Caminhemos Serenos"

Salvador Allende


Nixon queria Allende fora da presidência do Chile
2010-07-02 Retirado do "JORNAL DE NOTÍCIAS"

Gravações desclassificadas nos Estados Unidos revelaram a intenção do antigo presidente Richard Nixon (1969-1974) de retirar o então presidente chileno Salvador Allende do poder.

Nas gravações, Nixon aparece a dizer que quer "dar um pontapé no rabo" e derrubar "o filho da p..." do Salvador Allende, que veio a morrer no golpe de Estado liderado por Augusto Pinochet, em 1973.

As gravações foram divulgadas nos Estados Unidos, através do sítio nixontapes.org, e resumidas num artigo publicado no Chile pelo Centro de Investigação Jornalística (Ciper, na sigla espanhola), redigido pelo jornalista Peter Kornbluh.

Nestas gravações incluem-se várias conversas de Nixon com o seu conselheiro para a Segurança Nacional e posterior secretário de Estado, Henry Kissinger.

"É um Estado fascista", disse Nixon, na Sala Oval da Casa Branca, ao comentar a vitória da coligação de Allende, a Unidad Popular, nas eleições municipais de abril de 1971.

De acordo com as gravações, todas sobre o Chile, Nixon ficou particularmente irritado com a nacionalização das empresas norte-americanas naquele país da América do Sul, em especial com as ligadas à extracção de cobre, o principal produto chileno.

A 11 de Julho de 1971, Nixon contou a Kissinger que o ministro das Finanças, John Connally, lhe disse que, se Washington não parasse Allende, outros Estados latino-americanos começariam a nacionalizar empresas norte-americanas.

"Tudo o que fizermos com o governo chileno será observado por outros governos e grupos revolucionários na América Latina", acrescentou.

Meses mais tarde, em 5 de Outubro de 1971, Nixon comunicou a Kissinger e Connally a sua decisão: "Decidi derrubar Allende".

No final da reunião, Nixon afirmou a Kissinger: "No Chile, vale tudo. Deem um pontapé nesses rabos, ok?"

"De acordo", disse Kissinger.

Em Junho de 1971, o ex-ministro do Interior, o democrata-cristão Edmundo Pérez Zukovic, foi assassinado pelo grupo de extrema-esquerda Vanguarda Organizada do Povo (VOP), o que fez recordar a morte, nove meses antes, do general René Schneider.

Numa conversa, Kissinger assinala: "Os filhos da p... estão a culpar-nos (...) Estão a culpar a CIA [do crime de Pérez Zukovic]".

"A CIA é muito incompetente para o fazer (...) Quando tentam matar alguém, fazem três tentativas (...) e depois disso ainda vive três semanas (...)", disse Kissinger, em conversa com Nixon.

sábado, 3 de julho de 2010

Manuel da Fonseca



Antes que Seja Tarde

Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos"

Joaquim Namorado


PROMETEU

Abafai meus gritos com mordaças,
maior será a minha ânsia de gritá-los!

Amarrai meus pulsos com grilhões,
maior será minha ânsia de quebrá-los!

Rasgai a minha carne!
Triturai os meus ossos!

O meu sangue será a minha bandeira
e meus ossos o cimento duma outra humanidade.

Que aqui ninguém se entrega
- isto é vencer ou morrer -
é na vida que se perde
que há mais ânsia de viver!


Joaquim Namorado

(«A Guerra e a Paz»)

Carlos de Oliveira



O VIANDANTE


Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
Caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.

Carlos de Oliveira
(1921-1981)

José Gomes Ferreira


(Um morto qualquer, assassinado pela polícia em qualquer parte)

Não insultem este morto com flores

Enterrem-no assim mesmo nu, com peso de raiz,
desamparado de lágrimas e canções,
o corpo rasgado do inferno dos homens
e a boca ainda aberta no último grito
-longo até o riso das caveiras do futuro.

Flores para quê?
Para cobrir de música o roxo do Outro Frio?

Atirem-lhe antes cardos e espinhos,
ásperos desta cólera sagrada
onde a sua alma continuará a arder
até o fim da humanidade dos homens
-no brilho comum
dos nossos olhos de bandeira.

in "Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI."

José Gomes Ferreira


Que ando a esconder de mim



Que ando a esconder de mim
com estes gritos de unhas contra a injustiça do mundo
que só me deixam no coração
tédios de céu afogado?

Que ando a esconder de mim
com esta raiva do amor pelos outros,
a querer arrancar lágrimas de tudo
para as colar nos olhos vazios?

Que ando a esconder de mim
nesta agonia de escurecer a alma
para a confundir com a noite
– bandeira negra de todos os humilhados?

Que ando a esconder de mim
sem coragem de mostrar aos homens
a minha pobre dor,
tão débil e exígua,
que em vão oculto atrás de toda a dor humana
para a tornar maior?



de José Gomes Ferreira
in “Poesia – III”

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Amália Rodrigues nasceu a 1 de Julho de 1920 (Fado Peniche)

Letra de David Mourão Ferreira (dedicada aos presos políticos de Peniche (Abandono)