sábado, 31 de março de 2012

David Mourão Ferreira


NEM TODO O CORPO É CARNE...


Nem todo o corpo é carne… Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco…?

E o ventre, inconscientemente como o lodo?…
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor… Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo…

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

Vulto da Primavera em pleno Outono…
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

David Mourão Ferreira
(1927-1996)

Octavio Paz nasceu a 31 de Março de 1914.


TEUS OLHOS


Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremece,
paisagem solitária.

Octavio Paz
(1914-1998)
in "Liberdade sob Palavra"
Tradução de Luis Pignatelli

domingo, 25 de março de 2012

António Jacinto


CANTO INTERIOR DE UMA NOITE FANTÁSTICA.


Sereno, mas resoluto
aqui estou – eu mesmo! – gritando desvairado
que há um fim por que luto
e me impede de passar ao outro lado

Ante esta passagem de nível
nada de fáceis transposições
Do lado de cá – pareça embora incrível
é que me meço: princípio e fim das multidões

Não quero tudo quanto me prometam aliciantes
Nada quero, se para mim nada peço,
o meu desejar é outro – o meu desejo é antes
o desejo dos muitos com que me pareço

Quem quiser que venha comigo
nesta jornada terrena, humana e sincera
E se for só – ainda assim prossigo
num mar de tumulto impelido os remos sem galera

Que venham glaucas ondas em voragem
que ardam fogos infernais
que até os répteis soltem seus instintos
e me envolvam traiçoeiras e viscosos

Que me derrubem e arremessem ao chão
que espezinhem meu corpo já cansado
à tortura e ao chicote ainda responderei não
e a cada queda – de novo serei alevantado

E não transporei a linha divisória
entre o meu e o outro caminho
Mesmo que a minha luta não tenha glória
é no campo de combate que alinho

Assim continuarei a lutar, ai a lutar!
num perigoso mar de paixões e escolhos
e – companheiros – se neste sofrer me virdes chorar
não acrediteis em vossos olhos!

António Jacinto
(1924-1991)

Rui Mingas canta António Jacinto.

António Jacinto


MONANGAMBA


Naquela roça que não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações;

Naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.

O café vai ser torrado,
pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado!

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:

Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?
Quem trás pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de déndén?
Quem capina e em paga recebe desdém
fubá podre, peixe podre,
panos ruins, cinqüenta angolares
porrada se refilares?

Quem?

Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer
— Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar
máquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
ter a barriga grande — ter dinheiro?
— Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
— Monangambéée...

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras
— Monangambéée...


António Jacinto
(1924-1991)

Adolfo Casais Monteiro


AURORA


A poesia não é voz - é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro.

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)

Manuel da Fonseca


ENTONTECIDO



Entontecido
como asa que se abre para o azul
abarco a Vida toda
e parto
para os longes mais longes das distâncias mais longas
sei lá de que destinos ignorados!
Como pirata à hora da abordagem
grito e estremeço
liberto!
Grito e estremeço
perdido o sentido das pátrias
e a cor das raças,
livre para todos os caminhos dos homens!
Inebriado de posse
vou contigo, Vida,
como se fosses a minha namorada
e eu te levasse inteira nos meus braços!

Manuel da Fonseca
(1911-1993)

Carlos de Oliveira


VENTO


As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão:
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras.

Carlos de Oliveira
(1921-1881)
In "A Leve Têmpera do Vento"

Luís Veiga Leitão


TESTAMENTO


Abre os olhos - o sol é teu.
Mergulha as mãos - a água é tua.
Deixo-te o sol, o mar o céu
que poisa no beiral da nossa rua.
E os trigais do dia que desponta
e as flores da terra que me cobre.
Toda a riqueza milenar, sem conta,
de mais um poeta pobre.

Deixo-te as palavras que não gritaram
estranguladas pelo nó do medo;
e as outras, fuziladas, que tombaram
nos pátios do degredo.
E os sonhos por abrir; hoje, no sono
dos séculos que chamaram eterno.
Toda a Primavera, todo o Outono,
das minhas árvores de Inverno.
E a luta que fundiu meu coração
num canto que sangrou certeza:
depois de mim virás, ó meu irmão!,
mais claro e mais limpo de tristeza.


Luís Veiga Leitão
(1912-1987)

sexta-feira, 23 de março de 2012

Egito Gonçalves


O INIMIGO


Grandes olhos frios espiam esta calma
fictícia em que vives. Olhos de inimigo
que chove sobre ti a sua areia,
migalha-te o futuro, cobiça-te os joelhos,
oferece longas jornas de fome, salários
feitos de medo e asco.

Sobre os campos, as fábricas, o inimigo
sopra no teu querer uma paralisia.
Inventa sombras, disfarça a sua imagem;
a linha que o define, fugidia,
em vão a pensarás, em vão teu lápis
tentará aprisionar o seu contorno.

Mas se avanças um passo logo o vês
nesses olhos que tentam fascinar-te.


Egito Gonçalves
(1920-2001)
In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"

quarta-feira, 21 de março de 2012

Fernando Pessoa



VÃO BREVES PASSANDO

Vão breves passando
Os dias que tenho.
Depois de passarem
Já não os apanho.

De aqui a tão pouco
Ainda acabou.
Vou ser um cadáver
Por quem se rezou.

E entre hoje e esse dia
Farei o que fiz:
Ser qual quero eu ser,
Feliz ou infeliz.

28/03/1931
Fernando Pessoa
(1888-1935)

terça-feira, 20 de março de 2012

Armindo Rodrigues


CANTA UM GALO.


Canta um galo empoleirado
numa nuvem de algodão.
De olhos de charneca rasa
e voz de cravo encarnado,
o Sol vai pelos caminhos
e leva o chapéu ao lado.
Vai com modos de navalha
pelos caminhos do céu.
É-lhe uma fogueira o sangue
e leva ao lado o chapéu.
Numa cruz de sete ventos
onde a esperança se perde
está uma cigana verde
com sete rosas na mão.
Vem o Sol, dá-lhe um braço.
Caem-lhe as rosas no chão.
À sombra de uma oliveira
soa uma flauta de cana.
Caem-lhe no chão as rosas.
Rangem-lhe os folhos da saia.
No desmaio da cigana
a voz da flauta desmaia.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)

segunda-feira, 19 de março de 2012

Mário Viegas diz Álvaro Feijó

Álvaro Feijó


NATAL


Foi numa cama de folhelho,
entre lençóis de estopa suja
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroas de baionetas
postas até ao fundo do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

Álvaro Feijó
(1916-1941)

Pablo Neruda


O PAI


Terra de semente inculta e bravia,
terra onde não há esteiros ou caminhos,
sob o sol minha vida se alonga e estremece.

Pai, nada podem teus olhos doces,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as faces.

Escureceu-me a vista o mal de amor
e na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflecte.

Depois... Pergunta a Deus porque me deram
o que me deram e porque depois
conheci a solidão do céu e da terra.

Olha, minha juventude foi um puro
botão que ficou por rebentar e perde
a sua doçura de seiva e de sangue.

O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de a beijar... E o outono.
Pai, nada podem teus olhos doces.

Escutarei de noite as tuas palavras:
... menino, meu menino...

E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei.

Pablo Neruda
(1904-1973)
in "Crepusculário"
Tradução de Rui Lage.

domingo, 18 de março de 2012

Robert Louis Stevenson


AMOR


AMOR — O que é o amor? Um grande coração que dói
E nervosas mãos; e silêncio; e longo desespero.
Vida — o que é a vida? Um pântano deserto
Onde chega o amor e de onde parte o amor.

Robert Louis Stevenson
(1850-1894)

Sebastião da Gama


CANÇÃO DA GUERRA



Aos fracos e aos covardes
não lhes darei lugar
dentro dos meus poemas.
Covarde já eu sou.
Fraco, já o sou demais,
e se entre fracos for
me perderei também.

Quero é gente animosa
que olhe de frente a Vida,
que faça medo à Morte.
Com esses quero ir,
a ver se me convenço
de que também sou forte.
Quero vencer os medos...
Vencer-me — que sou poço
de estúpidos terrores,
de feminis fraquezas.
Rir-me das sombras,
rir-me das velhas ondas
bravas, rir-me do meu temor
do que há-de acontecer.

Venham comigo os fortes...
Façam-me ter vergonha
das minhas covardias.
E de seus actos façam
(seus actos destemidos)
chicotes p’rós meus nervos.
Ganhe o meu sangue a cor
das tardes das batalhas.
E eu vá — rasgue as cortinas
que velam o Porvir.
Vá — jovem, confiado,
cumprindo o meu destino
de não ficar parado.

26/5/1946
Sebastião da Gama
(1924-1952)

Daniel Filipe


SOMOS A ALEGRIA O CORPO O SAL DA TERRA

Somos a alegria o corpo o sal da terra
o sol das manhãs férteis a música do outono
a própria essência do amor a força das marés
somos o tempo em marcha


Esta é a única verdade
sabemos que vos é difícil aceitá-la
envoltos como estais em suborno e usura
bancos alta finança empréstimos externos
E no entanto esta manhã um pássaro
pousou à vossa beira embora
inutilmente
A pequena dactilógrafa matou-se
nós sabemos porquê

Um carpinteiro desempregado rasgou a roupa
e saiu cantando para a rua
nós sabemos porquê

Uma noite
a jovem costureira não voltou para casa
nós sabemos porquê

Um poeta
roeu as unhas enquanto foi possível
mas faltou-lhe a coragem no momento derradeiro
nós sabemos porquê


Nós sabemos porquê

NÓS SABEMOS PORQUÊ


E no entanto é doce dizer pátria
sonhar a terra livre e insubmissa
inteiramente nossa
Sonhá-la como se pedra a pedra construíssemos
Como se nada houvesse antes de nós
e desde as fundações a erguêssemos completa
pura alegre acolhedora virgem
de medos mortos insepultos

Regresso pelo tempo ao dia de hoje
primeiro de Maio de 1962
hora segunda da meditação

Daniel Filipe
(1925-1964)