domingo, 25 de dezembro de 2011

Daniel Filipe


E DE NOVO A CIDADE...


E de novo a cidade ó ritmo esquecido
de estranhas convulsões cheiro de pecado visco
mãos esguias pedimos uma esmola negada
suave deslizar de carros inconcretos

E de novo a terrível sedução da manhã
o jeito da navalha no riso do playboy
a náusea pressentida o tem-de-ser agora
meu amor meu amor ver-nos-emos depois

E de novo a pastora na gravura da sala
o grito da ambulância o conto do vigário
o som da água corrente o choro da criança
tuas mãos distraídas preparando o almoço

E de novo a usura a promessa de emprego
a carta que não chega o anúncio interdito
o rosto seco e ardente frias salas de espera
vá passando por cá talvez tenha mais sorte

E de novo este pão não amassado de lágrimas
mas salgado de pranto mas comido com raiva
com desespero angústia tempero obrigatório
amargo condimento fel e raiz da esperança

Daniel Filipe
(1925-1964)
In "A Invenção do Amor e Outros Poemas"

Sidónio Muralha


NATAL


Hoje é dia de Natal.
O jornal fala dos pobres,
Em letras grandes e pretas,
Traz versos e historietas
E desenhos bonitinhos,
E traz retratos também
Dos bodos, bodos e bodos,
Em casa de gente bem.

Hoje é dia de Natal!

Mas quando será para todos?

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens"(1950)

sábado, 24 de dezembro de 2011

Jorge de Sena


NATAL DE 1971.

Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?

Jorge de Sena
(1919-1978)

Miguel Torga


NATAL

Devia ser neve humana
A que caia no mundo
Nessa noite de amargura
Que se foi fazendo doce...
Um frio que nos pedia
Calor irmão, nem que fosse
De bichos de estrebaria.

Miguel Torga
(1907-1995)

Zeca Afonso ."O Natal dos Simples"

domingo, 18 de dezembro de 2011

Thomas Jefferson


«Acredito que as instituições bancárias são mais perigosas para as nossas liberdades do que o levantamento de exércitos. Se o povo Americano alguma vez permitir que bancos privados controlem a emissão da sua moeda, primeiro pela inflação, e depois pela deflação, os bancos e as empresas que crescerão à roda dos bancos despojarão o povo de toda a propriedade até os seus filhos acordarem sem abrigo no continente que os seus pais conquistaram.»
Thomas Jefferson, 1802

Monsieur William de Jean-Roger Caussimon e Léo Ferré

Fernando Pessoa


NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO.


Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

António Ramos Rosa


UM CAMINHO DE PALAVRAS



Sem dizer o fogo - vou para ele. Sem enunciar as pedras,
Sei que as piso – duramente, são pedras e não são ervas.
O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao
mesmo tempo que a vento. Tudo o que sei já lá está, mas não
estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho,
caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse
intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro
o meu caminho.

Mas entre mim e os meus passo há um intervalo também:
então invento os meus passos e o meu próprio caminho.
E com as palavras de vento e de pedras, invento o vento e
as pedras, caminho um caminho de palavras.


Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim

E porque a noite não tem limites
Alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe

Mas a noite existe
e a palavra sabe-o.

António Ramos Rosa
In "Sobre o Rosto da Terra"(1961)

Guerra Junqueiro


FALAM OS HOSPITAIS:

Tossi, tossi, pulmões desfeitos,
Em vielas lôbregas sem ar!
Nos dormitórios faltam leitos...
Tossi, pulmões, nos largos peitos,
Tossi, que a Morte quer jantar!

Morrei de fome, no abandono,
Mendigos trôpegos, senis...
E invejai, não o rei no trono,
Mas os cães grandes que têm dono
E as feras más que têm covis!...

Loucos, d'olhar torvo d'assombros,
Brandindo em fúrias um bordão,
Farrapos trágicos nos ombros,
Por pinheirais, por entre escombros,
Uivai, uivai na escuridão!...

Lepras e cancros dissolventes,
Apodrecei nos tremedais...
Apodrecei, rangendo os dentes,
Medonhos monstros pestilentes,
Latrinas d'almas imortais!

E que essas almas, negra herança!
Se reproduzam com ardor
Em milhões d'almas de criança,
Rios de morte e de vingança,
Torrentes fúnebres de dor!

Rios de sangue miserando,
Maldito sangue de Caim,
Eternamente blasfemando,
E ao mar de vida derivando
Sempre! sem fim! sem fim! sem fim!...

Guerra Junqueiro
(1850-1923)

Guerra Junqueiro


FALAM POCILGAS DE OPERÁRIOS:


Crianças rotas, sem abrigo...
A enxerga é pobre e a roupa é leve...
Quarto sem luz, mesa sem trigo...
Quem é que bate no meu postigo?
- A Neve!

A usura rouba a luz e o ar
E o negro pão que a gente come...
Inverno vil... Parou o tear...
Quem vez sentar-se no meu lar?
- A Fome!

Lume apagado e o berço em pranto
Na terra húmida, Senhor!
A mãe sem leite... o pai a um canto...
Quem vem além,torva de espanto?
- A Dor!

Álcool! Veneno que conforta,
Monstro satânico e sublime!...
Beber! beber.. e a mágoa é morta!...
Quem é que espreita à nossa porta?
- O Crime!

Doze anos já, e seminua!
A mãe, que é dela?... O pai no ofício...
Corpo em botão d'aurora e lua!...
Quem canta além naquela rua?
- O Vício!

A fome e o frio, a dor e a usura,
O vício e o crime... ignóbil sorte!
Ó vida negra! Ó vida dura!...
Deus! quem consola a Desventura?
- A Morte!

Guerra Junqueiro
(1850-1923)

Alexandre O'Neill


PORTUGAL

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neill
(1924-1986)

Poesias Completas
Alexandre O'Neill
Assírio & Alvim

Vieira da Silva


AMANHÃ SE TU QUISERES.



amanhã
se tu quiseres
vamos fazer desta terra
a nossa pátria sonhada

vamos
rasgar esta névoa
de esperança disfarçada
que não há nada a esperar
se nunca fizermos nada

vamos
quebrar o silêncio
com a força da coragem
e avançar contra o medo
que nos impede a viagem

vamos
antes que o futuro
não seja mais que a saudade
das cantigas que deixámos
pelas ruas da cidade

amanhã
se tu quiseres
vamos fazer um país
com a cor da liberdade

Vieira da Silva.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Octavio Paz


SILÊNCIO


Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.

Octavio Paz
(1914-1998)
In "Liberdade sob Palavra"
Tradução de Luis Pignatelli

domingo, 4 de dezembro de 2011

PROIBIDÃO- Bonde do 1533.

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro


O MEU OLHAR...


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
(1888-1935)
In "O Guardador de Rebanhos" (8-3-1914)

Federico García Lorca


CHAGAS DE AMOR


Esta luz, este fogo que devora.
Esta paisagem gris que me rodeia.
Esta mágoa por uma só ideia.
Esta angústia de céu, de mundo e hora.

Este pranto de sangue que decora
Lira sem pulso já, lúbrica teia.
Este peso do mar que me golpeia.
Este lacrau que no meu peito mora.

São grinalda de amor, cama de ferido,
Onde, sem sono, sonho-te a presença
Entre as ruínas do peito meu sumido;

e embora eu busque o cume de prudência
dá-me teu coração vale estendido
com cicuta e paixão de amarga ciência

Federico García Lorca
(1898-1936)
In "Antologia Poética"
Trd. de José Bento.

Daniel Filipe


EM TEU MACIO OLHAR.


Em teu macio olhar repousa o meu.
E na face polida, assim formada
se reflecte e recria o próprio céu.

Daniel Filipe
(1925-1964)
In "A Invenção do amor e outros poemas"

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Carlos Drummond de Andrade


FRAGA E SOMBRA


A sombra azul da tarde nos confrange.
Baixa, severa, a luz crepuscular.
Um sino toca, e não saber quem tange
é como se este som nascesse do ar.

Música breve, noite longa. O alfanje
que sono e sonho ceifa devagar
mal se desenha, fino, ante a falange
das nuvens esquecidas de passar.

Os dois apenas, entre céu e terra,
sentimos o espetáculo do mundo,
feito de mar ausente e abstrata serra.

E calcamos em nós, sob o profundo
instinto de existir, outra mais pura
vontade de anular a criatura.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)