sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

JÁ NÃO ME IMPORTO.

Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,

Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.

E só me não cansa
O que a brisa me traz
De súbita mudança
No que nada me faz

Fernando PESSOA
(1888-1935)

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

AMOSTRA SEM VALOR.

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível;
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.

António Gedeão
(1906-1997)
UMA VEZ QUE JÁ TUDO SE PERDEU

Que o medo não te tolha a tua mão
Nenhuma ocasião vale o temor
Ergue a cabeça dignamente irmão
falo-te em nome seja de quem for

No princípio de tudo o coração
como o fogo alastrava em redor
Uma nuvem qualquer toldou então
céus de canção promessa e amor

Mas tudo é apenas o que é
levanta-te do chão põe-te de pé
lembro-te apenas o que te esqueceu

Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
uma vez que já tudo se perdeu

Ruy BELO
(1933-1978)

domingo, 26 de janeiro de 2014

UMA HASTE VIBRÁTIL.

Uma haste vibrátil
de junco sensitivo
me lembras, leve e esguia,
com os teus gestos gráceis.

Olhas-me, musical,
e o olhar me alivias,
minha doce, subtil
e incessante alvorada.

À roda, um prado alastra,
em que se abrem lírios,
tu sopras, feita brisa,
e alguns milhafres pairam.

Armindo RODRIGUES
(1904-1993)
 CERTA MEMÓRIA...


Certa memória, memória inquieta
- não do teu corpo, que nunca vi,
não da tua alma, também secreta,
mas que é a tua, mas que é de ti –

faz que esta vida sem horizonte
se justifique tão necessária
que em tudo cante, que em tudo conte
da sua fonte, múltipla e vária.


António Luís Moita
In "Rumor"
 CALO-ME, ESPERO


Calo-me, espero
até que a minha paixão
e a minha poesia e a minha esperança
sejam como aquela que anda pela rua;
até que possa ver com os olhos fechados
a dor que já vejo com os olhos abertos.

Antonio Gamoneda
In "Oração Fria"
Tradução: João Moita
ESTA É A TERRA ONDE O SOFRIMENTO

Esta é a terra onde o sofrimento
é a medida dos homens. Dão
pena os condes com seu fiel faisão
e os cobardes com seu fiel lamento.

A beleza serve-nos de tormento
e a injustiça concede-nos o pão.
Um dia brindareis pelos que tenham
convertido a dor em fundamento.

Nós os que vivemos para dar alcance
a tão imensa luz que hoje não poderia
um deus vê-ja sem ficar cego,

Ainda teremos de esgotar o lance:
arrancar ao silêncio a agonia
como quem tira o coração ao fogo

Antonio Gamoneda
In "Oração Fria"
Trad. de João Moita.
MONÓLOGO DE FAROLEIRO.

Como preencher-te, solidão,
Senão contigo mesma.
Em menino, entre as pobres guaridas da terra,
Quieto num canto escuro,
Procurava em ti, grinalda acesa,
Minhas auroras futuras e furtivos nocturnos,
E em ti os vislumbrava,
Naturais e exactos, também livres e fiéis,
À minha semelhança,
À tua semelhança, eterna solidão.

Depois perdi-me pela terra injusta
Como quem busca amigos ou ignorados amantes;
Diferente do mundo,
Fui luz serena, desenfreado anelo,
E na chuva sombria ou no sol evidente
Queria uma verdade que te atraiçoasse,
Esquecendo em meu anseio
Como as asas fugitivas criam sua própria nuvem.

E ao velar-se a meus olhos
Com nuvens sobre nuvens de outono transbordado
A luz daqueles dias em ti mesma entrevistos,
Neguei-te por bem pouco;
Por amores vulgares, nem certos nem fingidos,
Por calmas amizades de poltrona e aparência,
Por um nome de reduzida cauda num mundo fantasma,
Nauseabundos como os autorizados,
Úteis somente para o elegante salão sussurrado,
Em bocas de mentira e palavras de gelo.

Por ti encontro-me agora o eco da antiga pessoa
Que fui,
Que eu próprio manchei com aquelas traições juvenis;
Por ti encontro-me agora, constelados achados,
Limpos de outro desejo,
O sol, meu deus, a noite rumorosa,
A chuva, a intimidade de sempre,
O bosque e seu hálito pagão,
O mar, o mar, belo como o seu nome;
E sobre todos eles,
Corpo escuro e esbelto,
Encontro-te a ti, ó solidão tão minha,
E dás-me força e debilidade,
Como à ave cansada os braços da pedra.

Debruçado na varanda olho insaciável as ondas,
Oiço suas escuras maldições,
Contemplo seus brancos afagos;
E erguido de um berço vigilante
Sou na noite um diamante que gira a avisar os homens,
Por quem vivo, mesmo quando os não vejo;
E assim, longe deles,
Esquecidos já seus nomes, amo-os em multidões,
Roucas e violentas como o mar, minha morada,
Puras perante a espera de uma revolução ardente
Ou rendidas e dóceis, como o mar sabe ser
Quando chega a hora do repouso que sua força conquista.

Tu, verdade solitária,
Transparente paixão, minha solidão de sempre,
És um imenso abraço;
O sol, o mar,
A escuridão, a estepe,
O homem e seu desejo,
A multidão irada,
- Que são senão tu mesma?
Por ti, minha solidão, procurei-os um dia;
Em ti, minha solidão, amo-os agora.

Luis Cernuda
(1902-1963)
Tradução: José Bento

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

PEDRAS NO CAMINHO

Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá a falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios,incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um 'não'.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.




Pedras no caminho?

Guardo todas, um dia vou construir um castelo..

Fernando PESSOA
(1888-1935)
O FIM

Ao fim são muito poucas as palavras
Que nos doem a sério e muito poucas
As que conseguem alegrar a alma.
São também muito poucas as pessoas
Que tocam nosso coração e menos
Ainda as que o tocam muito tempo.
E ao fim são pouquíssimas as coisas
Que em nossa vida a sério nos importam:
Poder amar alguém, sermos amados
E não morrer depois dos nossos filhos.

Amalia Bautista
Trad. de Joaquim Manuel Magalhães.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

OS MEUS MELHORES DESEJOS

Que a vida te pareça suportável.
Que a culpa não afogue a esperança.
Que não te rendas nunca.
Que o caminho que sigas seja sempre escolhido
entre dois pelo menos.
Que te interesse a vida tanto como tu a ela.
Que não te apanhe o vício
de prolongar as despedidas.
E que o peso da terra seja leve
sobre os teus pobres ossos.
Que a tua recordação ponha lágrimas nos olhos
de quem nunca te disse que te amava.






Amalia Bautista
  In "Estou Ausente"
Trad. de Inês Dias
CHOVE. HÁ SILÊNCIO.

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando PESSOA
(1888-1935)
in "Cancioneiro"
CHOVE!

Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José GOMES FERREIRA
(1900-1985)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

DEPOIS DO ACIDENTE


Quando levantaram aquele ferro amarelo,
viu-se que coisa rebentara: duas;
as duas mãos do homem: a grande mão
esqerda, a grande mão direita.
Esmagadas no óxido. O sangue
engrossou com o ar. Levaram-no.

Se nos encontrarmos, amigo, há que beber à saúde do ferro.
Levarei à tua boca o copo com o  vinho
e, quando sentires que bebes com as minhas mãos,
compreenderás que não estás mutilado no mundo.

Asseguro-te que quando chegar o que virá
ninguém vai chorar pelas suas velhas mãos atadas.
E além do mais já não terei porque
estar triste por ti. Será então
que terás mãos de verdade.

António Gamoneda
In "Oração Fria"
Trad. de João Moita.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

 QUERO SER TEU AMOR AMIGO


Quero ser o teu amor amigo
 Nem demais e nem de menos.
Nem tão longe e nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu puder.
Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,
Da maneira mais discreta que eu souber.
Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.
Sem forçar tua vontade.
Sem falar, quando for hora de calar.
E sem calar, quando for hora de falar.
Nem ausente, nem presente por demais.
Simplesmente, calmamente, ser-te paz.
É bonito ser amor amigo, mas confesso é tão difícil aprender!
E por isso eu te suplico paciência.
Vou encher este teu rosto de lembranças,
Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias...

Fernando Pessoa
(1888-1935)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

ADÁGIO

Tão curta a vida e tão comprido o tempo!...
Feliz quem o não sente.
Quem respira tão fundo
O ar do mundo,
Que vive em cada instante eternamente.

Miguel Torga
(12/8/1907 - 17/1/1995)
(Coimbra,21 de Fevereiro de 1983)
"EM PORTUGAL NÂO HÁ PENA DE MORTE, HÁ PENA DE VIDA."

Esta legenda, figurava ao lado de outras, igualmente amargas, num cortejo académico que atravessou hoje as ruas da cidade, testemunha bem, o desespero a que chegou a juventude.
Até aqui, eram apenas os velhos a gemer, no desalento de quem sabe que não pode ter mais razões de esperança. Agora é também a mocidade que se lamenta, no desalento dobrado de quem sabe que as podia ter e não tem.

MIGUEL TORGA
(1907-1995)
Coimbra, 22 de Novembro de 1961
in "Diário IX"
FALARAM-ME EM HOMENS, EM HUMANIDADE.

Falaram-me em homens em humanidade,
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade.
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si.
Cada um separado do outro por um espaço sem homens.

Alberto Caeiro / Fernando PESSOA
(1888-1935)


AMIZADE.

De mais ninguém,se não de ti,preciso:
Do teu sereno olhar,do teu sorriso,
Da tua mão pousada no meu ombro.
Ouvir-te murmurar:-«Espera e confia!»
E sentir converter-se em harmonia,
O que era,dantes,confusão e assombro.

Carlos Queirós
(1907-1949)
CHUVA

Chuva, caindo tão mansa,
Na paisagem do momento,
Trazes mais esta lembrança
De profundo isolamento.

Chuva, caindo em silêncio
Na tarde, sem claridade...
A meu sonhar d'hoje, vence-o
Uma infinita saudade.

Chuva, caindo tão mansa,
Em branda serenidade.
Hoje minh'alma descansa.
— Que perfeita intimidade!...

Francisco Bugalho
(1905-1949)
in "Paisagem"


RUBOR.

Não quero eterna juventude, queria
a velhice curar como se curam
de inverno as árvores, assim como
o cenho enrugado das montanhas
recobra seu verdor na primavera.

Contar por vidas e esquecer os anos,
sofrer as aparências sarmentosas
com coração feliz, pois sua rega
devolverá o colorido e a tepidez
à infância que à flor da pele nos brote.
Rubor, que não verdor, nas ramarias
e numa fé cega no poder de uma alma
com raízes fundíssimas na terra.

Manuel Altolaguirre
(1905-1959)
Trad. de José Bento