sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

EPITÁFIO DIANTE DE UM ESPELHO


Dura há-de ser para ti a vida
que tuas crenças sacrificaste a uma estranha honradez,
para ti cuja única certeza é tua lembrança
e, por isso, teu sepulcro mais aziago.
Dura há-de ser a vida, quando os anos passarem
e por fim destruírem a pátria sonhadora da tua adolescência,
quando vires, como hoje, este fantasma
que anteriormente te consolou com sua formosura.
Quando o amor, como um vestido roto,
não possa proteger tua tristeza
e um motivo de zombaria, piedade ou assombro,
para os olhos mais puros seja apenas.
Duro há-de ser para o teu corpo ver morrer o desejo,
a juventude, tudo o que foste,
e procurar sem paixão o teu repouso
na surda ternura do que é débil,
na grísea destruição que alguma vez amaste.
«É a lei da vida», dizem velhos estéreis,
«e nada senão Deus pode mudá-lo» repetem,
sob a luz da noite, lentas sombras inúteis.
Dura há-de ser a vida, tu que amaste o mundo
que com um olhar ou uma suave carícia sonhaste possuí-lo,
quando a absurda farsa que tão bem conheces
não estiver já enfeitada com o efémero e belo.
Dura há-de ser a vida até àquele instante
em que veles tua memória neste espelho:
teus frios lábios não terão já refúgio
e em tuas mãos vazias abraçarás a morte.



Juan Luis Panero
(1942-2013)
Tradução: José Bento

sábado, 13 de dezembro de 2014

CERCO

O corpo começa a consentir,
ceder, abrir fendas
com as chuvas altas,
a mostrar, quase exibir
velhas raízes,rugas, mágoas,
a secura próxima dos galhos;
corpo, sim,ele que foi afável
e crédulo e solar - tão
indiferente agora às matinais
e despenteadas vozes:
distante e tão cercado
de apagadas águas.


Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "Rente ao Dizer"
AO VENTO DE OUTONO


Vento de outono, vento solitário,
vento da noite,
força obscura que se desprende
do infinito e volta ao infinito,
rodopia dentro de mim, conjura
contra meu coração tua força,
arranca de um vez a casca
do fruto que não madura.



Joan Vinyoli
(1914-1984)
Tradução de João Cabral de Melo Neto.

sábado, 6 de dezembro de 2014

PRESCRIÇÃO.


Deixa passar as horas
Sem as contar.
Alheia a cada instante,
Vive, a viver a vida, a eternidade.
Feliz e quem nao sabe
A propria idade
E em nenhum ano pode envelhecer.
Dura encantada na realidade.
Negar o tempo e o modo de o vencer.



Miguel Torga
(1907-1995)
OUTONO


O outono vem vindo, chegam melancolias,
cavam fundo no corpo,
instalam-se nas fendas; às vezes
por aí ficam com a chuva
apodrecendo;
ou então deixam marcas, as putas,
difíceis de apagar, de tão negras,
duras.



Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "Cumplicidades do Verão"