domingo, 31 de março de 2013

À TERRA

Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.

Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã.

Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!

Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem.

Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!

E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois.

Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!

A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos.

Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida! 

Miguel Torga
(1907-1995)
 A UTOPIA.


A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

Eduardo Galeano.

domingo, 24 de março de 2013

SONAMBULISMO


Tombam os dias inúteis:
amanhece, é tarde, anoitece.
Mas a nós que nos importa
ser manhã, meio dia ou noite?!...
Sonâmbula a vida decorre
- nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios:
dentro de nós, cada um
apodrece.
Enchem-se de títulos vibrantes os jornais
- mas tudo é tão longe...
Passam homens por homens e não se conhecem:
Boa tarde! Bom dia!
Cada um fechado nas suas fronteiras,
os gestos vazios
a vida sem sentido
- sonambulismo apenas.

Acorda!
Ainda que seja só para o sobressalto,
que as ilusões do sonho se desfaçam
e as esperanças morram todas nessa hora!

Acorda!
ainda que o caminho a percorrer te espante
e o peso da obra a realizar te esmague!

Ainda que acordar seja
morrer depois aos poucos, em cada momento,
dolorosamente.

Joaquim Namorado
(1914-1986)
In "Líricas Portuguesas"
3ª série (Novembro de 1958)


sábado, 23 de março de 2013

 POEMA DA VOZ QUE ESCUTA


Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro - a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.

Políbio Gomes dos Santos
(Ansião, 7/8/1911 - Ansião 3/8/1939)
In " A Voz que Escuta"
 QUANDO EU PARTIR.


Quando eu partir, quando eu partir de novo
A alma e o corpo unidos,
Num último e derradeiro esforço de criação;
Quando eu partir...
Como se um outro ser nascesse
De uma crisália prestes a morrer sobre um muro estéril,
E sem que o milagre se abrisse
As janelas da vida. . .
Então pertencer-me-ei.
Na minha solidão, as minhas lágrimas
Hão de ter o gosto dos horizontes sonhados na adolescência,
E eu serei o senhor da minha própria liberdade.
Nada ficará no lugar que eu ocupei.
O último adeus virá daquelas mãos abertas
Que hão de abençoar um mundo renegado
No silêncio de uma noite em que um navio
Me levará para sempre.
Mas ali
Hei de habitar no coração de certos que me amaram;
Ali hei de ser eu como eles próprios me sonharam;
Irremediavelmente...
Para sempre.

Ruy Cinatti
(1915-1986)
In "Nós Não Somos Deste Mundo"
(1941)

domingo, 17 de março de 2013

 AOS HOMENS NO CAIS


Plantados como árvores no chão
ao alto ergueis os vossos troncos nus
e o fruto que produz a vossa mão
vem do trabalho e transparece à luz

Nenhum passado vale o dia-a-dia
Sonho só o que vós me consentis
Verdade a que de vós só irradia
- Portugal não é pátria mas país

Ruy Belo
(1933-1978)
 POEMA PARA HABITAR


A casa desabitada que nós somos
pede que a venham habitar,
que lhe abram as portas e as janelas
e deixem passear o vento pelos corredores.
Que lhe limpem os vidros da alma
e ponham a flutuar as cortinas do sangue
– até que uma aurora simples nos visite
com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.
Até que uma flor de incêndio rompa
o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.
Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua
sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.

Albano Martins
In "Coração de Bússola"

 PARTIR


Eu vou-me embora para além do Tejo,
não posso mais ficar!

Já sei de cor os passos de cada dia,
na boca as mesmas palavras
batidas nos meus ouvidos...
- Ai as desgraças humanas destas paisagens iguais!...
Abro os olhos e não vejo
já não ando, já não oiço...
Não posso mais...
Grita-me a Vida de longe
e eu vou-me embora para além do Tejo.

Passa a ave no céu bebendo azul e diz: -Vem!
O vento envolve-me numa carícia,
envolve-me e murmura: -Vem!
As ondas estalam nas praias e vão mar fora,
as mãos de espuma a prender-me os sentidos
chamam no fundo dos meus olhos: -Vem!

- Camaradas,eu vou,esperai um pouco...
Ai,mas a vida nunca espera por ninguém...
E a noite chega vingadora;
o vento rasga-me o fato,
as ondas molham-me a carne
e a ave pia misticamente no ar;
abro os olhos e não vejo,
já não ando, já não oiço
- e fico, desgraçado de ficar!..

Manuel da Fonseca
(1911-1993)
In "Poemas Completos"
Edição Forja (1978)
SONETO DA CHUVA


 Quantas vezes chorou no teu regaço
a minha infância, Terra que eu pisei!
( Aqueles versos de água onde os direi,
cansado como vou do teu cansaço? )

Um véu nos ombros húmidos do espaço,
a chuva nas memórias que guardei!
Sabe meu pensamento porque irei
semeador da esperança a passo e passo.
Se a Terra bebe as dores que me são dadas,
desfeito é já no vosso próprio frio
meu coração, visões abandonadas.
Deixem chover as lágrimas que eu crio:
Menos que chuva e lama nas estradas
és tu, poesia, meu amargo rio!

Carlos de Oliveira

(1920-1981)
In "Líricas Portuguesas"
3ª Série Selecção,prefácio e notas de Jorge de Sena
Portugália Editora (Novembro de 1958)

sábado, 16 de março de 2013

SOBRE UM VERSO TOMADO DE EMPRÉSTIMO


É no verão que o fruto amadurece,
claro sinal do tempo definido.
E a cada passo o sol-aranha tece,
em cor, as frágeis malhas do vestido.

É no verão também que somos mais
da terra onde nascemos e esperamos
o barco que nos leve e o próprio arrais:
PELO SONHO É QUE VAMOS.

Bagagem: esta esperança merecida
com sua cor de sangue verdadeira:
E é quanto basta, ó companheira,
para ser nossa, a vida!


Daniel Filipe
(1925-1964)
In "Pátria Lugar de Exílio"
 O RELÓGIO


Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.

Uma vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.

Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade

que continua cantando
se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.


João Cabral Melo Neto
(1920-1999)

sexta-feira, 15 de março de 2013

 ROTEIRO



Meu jeito visionário — meu astrolábio. 
         Meu ser mirabolante — um alcatruz. 
         De variadas coisas fiz a minha esperança
         e sempre em várias coisas vi a minha cruz.

         Aos padrões que em vários pontos encontrei
         na rota íntima de vestes tropicais
         eu dei as mãos, serenas e intactas,
         as minhas dores mais certas e reais.

         Nos vários sítios que — abismos —
         toldaram minha voz por um olhar,
         eu evitei o perigo e os prejuízos
         à voz feita de calma, meu cantar.

         Aos rasgos que, de outrora, evocados
         foram sempre pelo seu valor,
         eu dei a minha tez de dúvida e de espanto,
         o meu silêncio amargo, o meu calor,

         E aos pontos cardeais que em volta, vacilantes,
         desalentavam já meu ser cativo,
         parei o gesto, roubei o pólo sul da esperança
         como lembrança para um dia altivo.

João Rui de Sousa
In "Circulação (1960)

segunda-feira, 11 de março de 2013

SARGACEIRO


É longo e pesado o engaço!
A barca vem cheia
de suor e de sargaço
e fome.
Tanto e nada!
Sargaceiro!
Limpas sargaço
do fundo deste mar
que, para ti, é baço
e não tem aquele aspecto sonhador
que nós lhe damos.
Ele, o mar...
Empresta-me o teu engaço:
há tanto que limpar!
 
Álvaro Feijó
(1916-1941)

domingo, 10 de março de 2013

POEMA

Negue-se o mundo a me dizer; sim!
Negue-se o ar da serra aos meus pulmões!
Fechem-se as janelas porque vim
interromper os solheiros e os pregões!
Neguem-me o passaporte
para o estrangeiro!
Encontre-se sem norte
e sem dinheiro
(e desprevenidamente des-emotiva!)
frente às rodas paralelas
duma qualquer locomotiva,
ou entre elas,
ou melhor: debaixo delas!
- Por tudo encolherei os ombros
que, em suma, dizem crentes e descrentes
a vida é feita de rombos e de tombos,
doença, hostilidade e guinchos de serpentes.

Mas tu - (Homem! Garra!
Sucesso! ou Vento! ou Amarra!
Vício alegre! ou Labirinto!
Bebedeira de absinto
Filhos!
E Deus neles!)
- Não me negues o tom simples
e às vezes reles
da tua voz pura-impura
com que seques
a minha vil e vã desenvoltura.

Fernanda Botelho
(1926-2007)

 NA PRAIA DA AREIA BRANCA


Na praia da Areia Branca,
Os búzios não falam só do mar:
- Falam das pragas, dos clamores,
da fome dos pescadores
e dos lenços tristes a acenar.

Búzios da praia da Areia Branca:

- um dia
havéis de falar
 unicamente do mar.

Sidónio Muralha
(1920-1982)

CANÇÃO DA BEIRA-MAR
 
 
Ó mar Atlântico
à beira donde sofremos,
quando virá a maré-cheia da partida?
Ó mar de vendavais,
quando, quando?

Que triste a nossa vida,
tudo temos:
barcos, remos e tripulação,
só nos falta partir. . .

Ó mar que és um leão
com tua garra,
a vaga
despedaça a amarra
que nos prende à terra.
Queremos partir mesmo sem mestre!
Estamos fartos do marasmo
deste balanço de lago
onde apodrece nossa carne dolorida.

Que ansiedade de mar largo,
ai que desejo de Vida!
Todas as noites a lua nasce
e o mar se aquieta. . .
Faminta na beira do rio
tremendo no frio
que miséria dias e dias renova,
a tripulação inquieta
murmura chorando!
- Será amanhã a nossa lua-nova?
Ó mar, quando partimos, quando?

A noite passa,
o dia volta. . .
e no peito dos homens
sempre o mesmo grito de ansiedade e de desgraça:
- Ó mar de revolta!
montanhas de água,
oceano de vendavais,
Atlântico da partida!
A nossa mágoa, a nossa mágoa. . .
Não podemos mais. . .
Quando nos leva o mar?
Quando começa a Vida?
 
Manuel da Fonseca
(1911-1993)
In "Poemas Completos"
Edição Forja (Dezembro de 1978)
PERMANÊNCIA.


Não peçam aos poetas um caminho. O poeta
não sabe nada de geografia celestial.
Anda aos encontrões da realidade
sem acertar o tempo com o espaço.
Os relógios e as fronteiras não tem
tradução na sua língua. Falta-lhe
o amor da convenção em que nas outras
as palavras fingem de certezas.

O poeta lê apenas os sinais
da terra. Seus passos cobrem
apenas distâncias de amor e
de presença. Sabe
apenas inúteis palavras de consolo
e mágoa pelo inútil. Conhece
apenas do tempo o já perdido; do amor
a câmara escura sem revelações; do espaço
o silêncio de um vôo pairando
em toda a parte.

Cego entre as veredas obscuras é ninguém e nada sabe
- morto redivivo.
Tudo é simples para quem
adia sempre o momento
de olhar de frente a ameaça
de quanto não tem resposta.

Tudo é nada para quem
descreu de si e do mundo
e de olhos cegos vai dizendo:
Não há o que não entendo. 



Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
COMEÇO.

Magoei os pés no chão onde nasci.
Cilícios de raivosa hostilidade
Abriram golpes na fragilidade
De criatura
Que não pude deixar de ser um dia.
Com lágrimas de pasmo e de amargura
Paguei à terra o pão que lhe pedia.

Comprei a consciência de que sou
Homem de trocas com a natureza.
Fera sentada à mesa
Depois de ter escoado o coração
Na incerteza
De comer o suor que semeou,
Varejou,
E, dobrada de lírica tristeza,
Carregou.



Miguel Torga
(1907-1995)

 GOTA DE ÁGUA.


Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.

António Gedeão
(1906-1997)

sábado, 9 de março de 2013

 CHAMO PÁTRIA DE PROFUNDAS VEIAS.


Chamo pátria de profundas veias
a essa relação viva entre os homens se ela houvesse
e não esta condição de anónima indiferença
e de vaga identidade flutuante
sem cúpula e sem os templos brancos
com jardins de um ócio voluptuoso
É por isso que estamos condenados
à solidão de não pertencermos à dilatada força
que constitui um universo e projecta um horizonte
de humanidade viva em floração unânime
Somos apenas cúmplices da nossa inabilidade
e dos ornamentos com que a revestimos
para parecer que somos e ser o que parecemos
Quem escreve procura abrir um espaço numa muralha
tão opaca mas tão vaga e cinzenta
que esse espaço imaginado de branca identidade
não é mais que um aceno à possível liberdade
para além da sua gloria profanada

António Ramos Rosa
In "Antologia Poética"

sábado, 2 de março de 2013

TIREM-ME OS DEUSES.

 Tirem-me os deuses
Em seu arbítrio
Superior e urdido às escondidas
 Amor, glória e riqueza.

Tirem, mas deixem-me,
Deixem-me apenas
A consciência lúcida e solene
Das coisas e dos seres.

Pouco me importa
Amor ou glória,
A riqueza é um metal, a glória é um eco
E o amor uma sombra.

Mas a concisa
Atenção dada
Às formas e às maneiras dos objectos
Tem abrigo seguro.

Seus fundamentos
São todo o mundo,
Seu amor é o plácido Universo,
Sua riqueza a vida.

A sua glória
É a suprema
Certeza da solene e clara posse
Das formas dos objectos.

O resto passa,
E teme a morte.
Só nada teme ou sofre a visão clara
E inútil do Universo.

Essa a si basta,
Nada deseja
Salvo o orgulho de ver sempre claro
Até deixar de ver.

Ricardo Reis, in "Odes"
(Heterónimo de Fernando Pessoa)

(1888-1935)