domingo, 5 de junho de 2011

Luis de Góngora


ANDE EU BEM QUENTE E RIA ESSA GENTE


Tratem outros do governo
do mundo e das monarquias,
que é governo de meus dias
boa manteiga e pão tenro,
e pelas manhãs de inverno
compota, mel, aguardente,
e ria essa gente.

Coma em dourada baixela
o Príncipe mil cuidados,
como pílulas dourados;
que numa mesa singela
eu prefiro uma morcela
que no assador rebente,
e ria essa gente.

Quando cobrir as montanhas
de branca neve Janeiro,
tenha eu cheio o braseiro
de bolotas e castanhas,
e quem as doces patranhas
do Rei que penou comente,
e ria essa gente.

Busque muito em hora amena
o mercador novos sóis:
eu conchas e caracóis
entre a areia mais serena,
escutando Filomena
sobre o choupo da nascente,
e ria essa gente.

Passe à meia-noite o mar
e arda em amorosa chama
Leandro pra ver sua dama;
que eu prefiro atravessar
do golfo do meu lagar
a branca ou rubra corrente,
e ria essa gente.

Já que o Amor é tão cruel
que de Píramo a sua amada
torna tálamo uma espada
onde se unem ela e ele,
Tisbe me seja um pastel,
a espada seja o meu dente,
e ria essa gente.

Luis de Góngora
(1561-1627)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

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