quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Luis Veiga Leitão


ESTROFES PARA O NOSSO CANTO


Nosso canto é o mapa do engenheiro
rasgando a carne pelas montanhas
riscando uma recta sem desvios
- uma aventura para os demais
Nosso canto é de túneis pontes rios
que não acabam mais

Nosso canto é o grito da planície
bocas duras na terra seca
a raiva nos olhos enxutos
- um acidente para os demais
Nosso canto é de campos canais frutos
que não acabam mais

Nosso canto é a voz de pescador
arpoando naufrágios no mar
fome pescando ao rés dos charcos
- uma tragédia para os demais
Nosso canto é de redes peixes barcos
que não acabam mais

Nosso canto é o uivo das fábricas
um corpo esmagado marcando
o ritmo da morte a compasso
- uma notícia para os demais
Nosso canto é de braços troncos de aço
que não acabam mais

Nosso canto é o rosto das crianças
corpos à vela pelas vielas
praga verde dos vendedores
- uma perdição para os demais
Nosso canto é de parques lagos flores
que não acabam mais

Nosso canto é o cume dos andaimes
homens suspensos das alturas
homens camaradas das estrelas
- Clowns de circo para os demais
Nosso canto é de bairros luz janelas
que não acabam mais

Nosso canto é o grito no medo
um gelo bloqueando as mãos
o fundo e a voz das criaturas
- Mercado negro para os demais
Nosso canto é de vozes livres puras
que não acabam mais

Nosso canto é o sonho dos domingos
viajando em barcos parados:
Tokio Pekin Paris Ankara
- Vilegiatura para os demais
Nosso canto é de estrada aberta clara
que não acaba mais

Luís Veiga Leitão (1912-1987), "Ciclo de Pedras", 1964

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