domingo, 19 de dezembro de 2010

Jorge de Sena


A MISÉRIA DAS PALAVRAS


Não: não me falem assim na miséria, nos pobres,
na liberdade.

Se a miséria e a pobreza
fossem o vómito que deviam ser posto em palavras,
a imaginação possuída e vomitada que deviam ser,
viria a liberdade por acréscimo,
sem palavras, sem gestos, sem delíquios.

Assim, apenas se fala do que se não fala,
apenas se vive do que não se vive,
apenas liberdade é uma miséria
sem nome, sem futuro, sem memória.

E a miséria é isso: não imaginar
o nome que transforma a ideia em coisa,
a coisa que transforma o ser em vida,
a vida que transforma a vida em algo mais
que o falar por falar.

Falem. Mas não comigo. E sobretudo
sejam miseráveis, e pobres, sejam escravos,
no silêncio que à linguagem faz
imaginar-se mais que o próprio mundo.

5/8/1962

Jorge se Sena
(1919-1978)
in "Antologia Poética"

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