segunda-feira, 26 de abril de 2010

Eugénio de Andrade


Olhos postos na terra



Olhos postos na terra, tu virás

no ritmo da própria primavera,

e como as flores e os animais

abrirás nas mãos de quem te espera.

Eugénio de Andrade

domingo, 25 de abril de 2010

Luís Cília / José Gomes Ferreira

Luís Cília / Carlos Oliveira

José Gomes Ferreira


Ó pastor que choras


Ó pastor que choras
o teu rebanho onde está?


-Deita as mágoas fora,
carneiros é o que mais há.


Uns de finos modos,
outros vis por desprazer...
Mas carneiros todos
com carne de obedecer.


Quem te pôs na orelha
essas cerejas, pastor?
São de cor vermelha,
vai pintá-las de outra cor.


Vai pintar os frutos,
as amoras, os rosais...
Vai pintar de luto,
as papoilas dos trigais.

José Gomes Ferreira

Fausto canta José Gomes Ferreira.

José Saramgo


Eugénio de Andrade


Poema


Agora os nomes que martelam o sono,
turvos ou roídos da poeira:
Póvoa, Castelo Novo, Alpedrinha,
Orca, Atalaia, nomes porosos
da sede, onde a semente do homem
é triste mesmo quando brilha.

Eugénio de Andrade,Poesia,Terra de Minha Mãe.

Eugénio de Andrade


Mulheres de Preto


Há muito que são velhas vestidas
de preto até à alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Edith Piaf - La vie en rose

Gilbert Becaud

David Mourão Ferreira


LITANIA DE SOMBRA

Não perguntem nada: nós estamos dentro
Do aro de frio, no frio do muro,
Tão longe, tão longe da feira do Tempo!
Não perguntem nada.
Nós estamos mudos.

Puseram açaimes nas ventas do vento,
Ergueram açudes nas águas do mar...
Não perguntem nada: nós estamos dentro,
Ou fora de tudo.
Não perguntem nada.

Tumulto na estrada? O bicho na concha.
Miséria na casa? O farol na montra.
Não perguntem nada, não perguntem nada:
há sempre gládios
a ríspida sombra.

Não perguntem nada: as razões são longas.
Não perguntem nada: as razões são tristes.
Não perguntem nada: nós estamos contra.
E talvez perdidos.
E talvez perdidos.

David Mourão Ferreira

terça-feira, 20 de abril de 2010

Eugénio de Andrade


CANÇÃO

Hoje venho dizer-te que nevou
no rosto familiar que te esperava.
Não é nada, meu amor, foi um pássaro,
a casca do tempo que caiu,
uma lágrima, um barco, uma palavra.

Foi apenas mais um dia que passou
entre arcos e arcos de solidão;
a curva dos teus olhos que se fechou,
uma gota de orvalho, uma só gota,
secretamente morta na tua mão.

(Eugénio de Andrade)

Egito Gonçalves


CONVITE


Nesta fase em que só o amor me interessa
o amor de quem quer que seja
do que quer que seja
o amor de um pequeno objecto
o amor dos teus olhos
o amor da liberdade

o estar à janela amando o trajecto voado
das pombas na tarde calma

nesta fase em que o amor é a música de rádio
que atravessa os quintais
e a criança que corre para casa
com um pão debaixo do braço

nesta fase em que o amor é não ler os jornais

podes vir podes vir em qualquer caravela
ou numa nuvem ou a pé pelas ruas
- aqui está uma janela acolá voam as pombas -

podes vir e sentar-te a falar com as pálpebras
pôr a mão sob o rosto e encher-te de luz

porque o amor meu amor é este equilíbrio
esta serenidade de coração e árvores


(in 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco Graça Moura, Quetzal Editores)

Joaquim Namorado








CARIDADE



As senhoras da sociedade
deram um baile a rigor
para vestir a pobreza
e a pobreza horas a fio
cortou, coseu, enfeitou
os vestidos deslumbrantes
que a caridade exibiu.


Depois das contas bem feitas
bem tiradas as despesas
arranjou um namorado
a mais nova das Fonsecas;
esteve bem a viscondessa,
veio o nome e o retrato
da comissão nos jornais,
e o Doutor, o Menezes,
o senhor desembargador,
estiveram muito engraçados,
dançaram o tiro-liro
já meio-tombados...


Parece que ainda sobrou
algum dinheiro para chita
para vestir a pobreza
numa festa comovente
com discursos de homenagem
e uma missa...

a que assistiu toda a gente.



Joaquim Namorado

domingo, 18 de abril de 2010

Antero de Quental nasceu a 18 de Abril de 1842


Nirvana

Viver assim: sem ciúmes, sem saudades,
Sem amor, sem anseios, sem carinhos,
Livre de angústias e felicidades,
Deixando pelo chão rosas e espinhos;

Poder viver em todas as idades;
Poder andar por todos os caminhos;
Indiferente ao bem e às falsidades,
Confundindo chacais e passarinhos;

Passear pela terra, e achar tristonho
Tudo que em torno se vê, nela espalhado;
A vida olhar como através de um sonho;

Chegar onde eu cheguei, subir à altura
Onde agora me encontro - é ter chegado
Aos extremos da Paz e da Ventura!

Antero de Quental, in "Sonetos"

sábado, 17 de abril de 2010

Gorecki Symphony Nº 3 "Sorrowful Songs"

Pedro Homem de Mello


SOPRO

Passas como passa
O riso do vento
Mas na tua graça
Não há pensamento.

Porém, sem teu riso,
Que seria a graça
Do meu pensamento?

Pedro Homem de Mello

Ricardo Reis


Quer pouco

Quer pouco, terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.

Ricardo Reis
(1888-1935)

Jorge de Sena


«DEIXEM-SE DE FINGIR»

Deixem -se de fingir de heróis da esquerda,
com bancos e bancas de advogado, redacções,
editoriais, automóveis, bolsas e cátedras,
quintas herdadas, páginas literárias.
Deixem-se de uivar em defesa de ismos
que nenhum vos pertence ou a que pertenceis
a não ser para dançar a dança desnalgada
dos que não têm vergonha do povo português.
O único ismo em consonância com os arrotos
de bem comidos, e os rosnidos de instalados
naquilo que criticam disfarçando-se,
é o relismo - de reles. Nada mais.

Jorge de Sena, de "Conheço o sal", in Antologia 40 Anos de Servidão - Circulo de Poesia, Morais Editores

José Craveirinha


Aforismo


Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos

Estávamos iguais
com duas diferenças:

Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la

Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rasto
mas não podiam
ajoelhar-nos.

José Craveirinha

Glória de Sant' Anna


Poema Agreste

Não sei por que buscas palavras longas
para as coisas breves que nos assombram.

Não sei por que teces teias enormes
para as incertezas que nos envolvem.

Não sei por que insistes.Não sei por que insistes
em prender meus passos nesse limite.

Glória de Sant' Anna (1925-2009)
(Poemas do Tempo Agreste,1964)

Mário Cesariny


Pastelaria


Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny (1923-2006)
(Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano,1952)

Eugénio de Andrade


ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade
(Os Amantes sem Dinheiro,1950)

Guerra Junqueiro


O DINHEIRO DE S.PEDRO


De tal modo imitou o papa a singeleza
Do martir do Calvário,
Que à força de gastar os bens com a pobreza
Tornou-se milionário.

Tu hoje podes ver, ó filho de Maria,
O teu vigário humilde
Conversando na bolsa em fundos da Turquia
Com o Barão Rothschild.

A cruz da redenção, que deu ao mundo a vida
Por te haver dado a morte.
Tem-a no seu bureau o padre santo erguida
Sobre uma caixa forte.

E toda essa riqueza imensa, acumulada
Por tantos financeiros,
O que é a economia, oh Deus! foi começada
Só com trinta dinheiros!

Guerra Junqueiro
(A Velhice do Padre Eterno,1885)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Maria Eugénia Cunhal


REFEIÇÃO

Estendemos a toalha
Trouxeste o pão, o vinho
Eu trouxe a fome, a sede o cansaço
E a mão para colher
A pureza espontânea do teu gesto
Que tem a dimensão do teu braço

Eu recebi
Tu deste
Compartilhámos.
Da refeição ficou o travo doce e bom do mel
E a certeza daquilo que está certo.

Eugénia Cunhal

Maria Eugénia Cunhal


Bastou aquele gesto.

Bastou aquele gesto
Da tua mão tocar tão docemente a minha
Pra nascerem raízes
Que me prendem à terra e me alimentam
Nas horas mais vazias

Bastou aquele olhar
- O teu olhar tão brando, prolongando-se um pouco sobre o meu –
Para iluminar as noites em que a lua se esconde
E a escuridão envolve um mundo sem sentido.

Bastou esse teu jeito de sorrir,
Um sorriso em que vejo despontar a confiança
Na vida não vivida, nas emoções ainda não sentidas,
Nos passos que ressoam noutros passos

Bastaste tu.

Maria Eugénia Cunhal, in Silêncio de Vidro,

terça-feira, 13 de abril de 2010

Mia Couto


Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

Eugénio de Andrade


OS AMIGOS

Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham;
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.

EUGÉNIO DE ANDRADE
(Coração do Dia,1958)

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Paul Éluard - LIBERDADE


Liberdade


Nos meus cadernos de escola
Nesta carteira nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome

Em toda página lida
Em toda página branca
Pedra sangue papel cinza
Escrevo teu nome

Nas imagens redouradas
Na armadura dos guerreiros
E na coroa dos reis
Escrevo teu nome

Nas jungles e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No céu da minha infância
Escrevo teu nome

Nas maravilhas das noites
No pão branco da alvorada
Nas estações enlaçadas
Escrevo teu nome

Nos meus farrapos de azul
No tanque sol que mofou
No lago lua vivendo
Escrevo teu nome

Nas campinas do horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome

Em cada sopro de aurora
Na água do mar nos navios
Na serrania demente
Escrevo teu nome

Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva insípida e espessa
Escrevo teu nome

Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na física verdade
Escrevo teu nome

Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças que regurgitam
Escrevo teu nome

Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome

No fruto partido em dois
de meu espelho e meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo teu nome

Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas fitas
Em sua pata canhestra
Escrevo teu nome

No trampolim desta porta
Nos objectos familiares
Na língua do fogo puro
Escrevo teu nome

Em toda carne possuída
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome

Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome

Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome

Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte
Escrevo teu nome

Na saúde recobrada
No perigo dissipado
Na esperança sem memórias
Escrevo teu nome

E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar

Liberdade

Paul Éluard

PATXI ANDION -Habría que Saberlo

PATXI ANDION -Los Burmanos Hugueses

domingo, 11 de abril de 2010

Todos Unidos

Manuel António Pina


TODAS AS PALAVRAS

As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.


Manuel António Pina
Jornalista e escritor português
(Sabugal, 18 de Novembro de 1943)
(Poesia Reunida)

Ruy Belo


CINCO PALAVRAS CINCO PEDRAS


Antigamente escrevia poemas compridos
Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema
São elas: desalento prostração desolação desânimo
E ainda me esquecia de uma: desistência
Ocorreu-me antes do fecho do poema
e em parte resume o que penso da vida
passado o dia oito em cada mês
e delas vem a música precisa
para continuar.Recapitulo:
desistência desalento prostração desolação desânimo
Antigamente quando os deuses eram grandes
eu sempre dispunha de muitos versos
Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas

Ruy Belo (1933-1978)
(Todos os Poemas)

Carlos de Oliveira


CANTO

I

Cantar
é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras
fique embora mais breve a nossa vida.

Carlos de Oliveira (1921-1981)
(Trabalho Poético)

Franz Kafka


«Apenas uma palavra. Uma súplica apenas. Apenas uma aragem. Apenas uma prova de que ainda estás vivo e à espera. Não, nada de súplicas, apenas um respirar, respirar não, apenas estar pronto, estar pronto não, apenas um pensamento, um pensamento não, apenas o sono tranquilo.»

Franz Kafka (1883-1924)
Parábolas e Fragmentos
(Selecção,tradução e prefácio de João Barrento)

Mário Cesariny


FAZ-ME O FAVOR

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor - muito melhor!-
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny (1923-2006)
( O Virgem Negra )

Federico Garcia Lorca


CACILDA DO PRANTO


Fechei a minha varanda
pois não quero ouvir o pranto
mas por trás dos pardos muros
não se ouve mais que o pranto.

Há poucos anjos que cantem,
muito poucos cães que ladrem,
mil violinos cabem na palma desta mão.
Mas o pranto é um cão imenso,
o pranto é um anjo imenso,
o pranto é um violino imenso,
as lágrimas amordaçam o vento,
e não se ouve nada mais que o pranto.

Federico Garcia Lorca
(5/6/1898-19/8/1936)

José Hierro


CANÇÃO DE EMBALAR PARA ADORMECER UM PRESO


A gaivota sobre o pinhal.
(O mar ressoa.)
Aproxima-se o sono.Dormirás.
sonharás,mesmo sem querer.
A gaivota sobre o pinhal
gotejado de estrelas.

Dorme.Tens em tuas mãos
todo o azul da noite imensa.
Não há mais que sombra.Acima,a lua!
Peter Pan pelas alamedas.
Sobre veados de dorso verde
a menina cega.
Já és homem,já adormeces,
meu amigo,ea...

Amigo,dorme.Revoa um corvo
sobre a lua,que ele degola.
O mar está perto de ti,
morde tuas pernas.
Não é verdade que sejas homem;
és um menino que não sonha.
Não é verdade que sofreste:
são contos tristes que te contam.
Dorme.Que a sombra toda é tua,
meu amigo,ea...

És um menino que está sério.
Perdeu o riso e não o encontra.
Talvez tenha caído ao mar,
e engoliu-o uma baleia.
Amigo,dorme,que te embalem
campainhas e pandeiretas,
flautas de cana de som vago
amanhecidas entre a névoa.

Não é verdade que a alma te pese.
A alma é ar e fumo e seda.
A noite é vasta.Tem espaços
para voar por onde queiras,
para chegar à alva e ver
as águas frias que despertam,
as rochas pardas como o elmo
que levavas para a guerra.
A noite é vasta,dorme,amigo,
meu amigo,ea...

A noite é bela,bela e nua,
não possui grades nem fronteiras.
Não é verdade que sofreste,
são contos tristes que te contam.
És um menino que está triste,
és um menino que não sonha.
E a gaivota está à espera
para chegar quando adormeças.
Dorme,já tens em tuas mãos
todo o azul da noite imensa.
Amigo,dorme...
Já está a dormir
o meu amigo,ea...

José Hierro
(3/4/1922-21/12/2002)

sábado, 10 de abril de 2010

Sopor Aeternus-No-One is there

Rafael Alberti


BALADA PARA OS POETAS ANDALUZES DE HOJE


Que cantam os poetas andaluzes de agora?
Que olham os poetas andaluzes de agora?
Que sentem os poetas andaluzes de agora?

Cantam com voz de homem, - mas onde estão os homens?
Com olhos de homem olham, - mas onde estão os homens?
Com peito de homem sentem, - mas onde estão os homens?

Cantam e quando cantam parece que estão sós.
Olham e quando olham parece que estão sós.
Sentem e quando sentem parece que estão sós.

Será que a Andaluzia está já sem ninguém?
Nos montes andaluzes não haverá ninguém?
Nos mares e campos andaluzes não haverá ninguém?

Não haverá já quem responda à voz do poeta?
Quem olhe o coração sem muros do poeta?
Tantas coisas morreram que não há mais do que o poeta?

Cantai alto. Ouvireis que ouvem mais ouvidos.
Olhai alto. Vereis que olham outros olhos.
Pulsai alto. Sabereis que palpita um outro sangue.

Não é mais fundo o poeta em seu subsolo escuro
encerrado. Seu canto ascende mais profundo
quando, aberto, no ar, é de todos os homens.

Rafael Alberti
(16/12/1902-28/10/1999)

Ruy Belo


(Foto Fel de Cão)
REMATE PARA QUALQUER POEMA


Passeou pelos espelhos dos dias
suas clandestinas alegrias
que mal se reflectiram desertaram

Ruy Belo
(Aquele Grande Rio Eufrates,1961)

Ruy Belo


COMO QUEM ESCREVE COM SENTIMENTOS

Estou sujeito ao tempo sou este momento
perguntam-me quem fui e permaneço mudo
o tempo poisa-me nos ombros em relento
partiu no vento essa mulher e perdi tudo

Já não virá ninguém por muito que vier
em vão esperei a rosa da minha roseira
quando um pássaro sai dos olhos da mulher
é porque ela é de longe e não da nossa beira

Resta-me um sonho desconexo e desconforme
Na haste da camélia que o vento quebrou
jamais a vida branca como ela dorme
Eu era essa camélia e nunca mais o sou

A minha vida é hoje um sítio de silêncio
a própria dor se estreme é dor emudecida
que não me traga cá notícias nenhum núncio
porque o silêncio é o sinónimo da vida

O mundo para além dessa mulher sobrava
tudo vida vulgar tumultuária e cega
o brilho do olhar equilibrava a chuva
nas suas costas hoje toda a luz se apaga

Mulher que um golpe de ar me pôde arrebatar.
enfim não existia ou só ela existia
Asas que ela tivesse deixou-as queimar
e tê-la-á levado estranha ventania

Daqueles traços fisionómicos de pedra
não quero já ouvir a voz que às vezes vem
na calma destacada por um cão que ladra
Não há ninguém perto de mim sinto-me bem

Cada casa que roço é escura como um poço
se sou alguma coisa sou-o sem saber
sossego solitário sem mistério isso
talvez tivesse sido o que sempre quis ser

As flores vinham nela e era primavera
mas tanto a nomeei e tanto repeti
erros numa estratégia imprópria para ela
tamanho amor expus que cedo a consumi

A noite quando ao fim descer decerto há-de
ser certa solução. Foi há muito a infância
Ao tempo o que tu tens tu bem o sabes cede
estendo as mãos talvez te fique a inocência

A vida é uma coisa a que me habituei
adeus susto e absurdo e sobressalto e espanto
A infância é uma insignificância eu sei
e apenas por a ter perdido a amamos tanto

Estou sozinho e então converso com a noite
das palavras que nos subjugam nos submetem
As coisas passam e em vez delas é aceite
o nosso sistema de signos onde as metem

Esta minha existência assim crepuscular
devida àquela que é rastos destroços restos
acusa hoje alguma intriga consular
de quem não tem cabeça a comandar os gestos

Foi uma rosa rubra a autora desta obra
aberta e arrogante grácil flor do instante
que triunfante não há coisa que não abra
para ferir quem a viu e morrer de repente

E noite sou e sonho e dor e desespero
mero ser sórdido e ardido e encardido
mas já não tarda a abrir-se na manhã que espero
um arco com vitrais aos vendavais vedado

E embora a minha fome tenha o nome dela
e da água bebida na face passada
não peço nada à vida que a vida era ela
e que sei eu da vida sei menos que nada

Ruy Belo
(Toda a Terra,1976

Ruy Belo.

Ruy Belo

Morte ao meio dia

No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer

Ruy Belo
(Boca Bilingue,1966)

Louis Aragon


BALADA DOS SUPLÍCIOS


«Pudesse eu recomeçar
e este caminho seguia...»
Uma voz fala das grades
sobre a futura alegria.

Na sua cela, dois homens
por essa noite comprida,
murmuravam-lhe: «Confessa.
Ou estás cansado da vida?

Podes viver como nós,
viver, viver anos vastos...
Uma só palavra, és livre...
e podes viver de rastos...»

- «Pudesse eu recomeçar
e este caminho seguia...»
A voz que sobe das grades
canta a futura alegria.

«Apenas uma palavra,
abre-se a porta e tu sais:
já o carrasco se some,
já acabaram teus ais!

Apenas uma mentira
para mudares o destino...
sonha, sonha, sonha
o claro sol matutino!»

«Disse o que tinha a dizer
como o Rei Henrique falo:
uma missa por Paris...
p'lo meu reino, um cavalo...

Nada a fazer.» E partiram!
Cobre-o já seu sangue quente!
Era o seu único triunfo:
saber morrer inocente!

Pudesse ele recomeçar
ia esta sorte escolher?
Diz a voz que vem das grades:
- «Torná-lo-ia a fazer.

Eu morro e tu, França, ficas,
meu refúgio e minha fé.
Ó meus amigos, se morro,
vós sabeis pelo que é!»

Vieram para o prender,
falavam em alemão.
Disse-lhe um: - «Queres-te render?»
Respondeu com decisão:

- «Pudesse eu recomeçar
queria esta sorte seguir...»
A voz que sobe das grades
fala aos homens do porvir.

- «Pudesse eu recomeçar
queria esta sorte seguir.
Mesmo carregado de ferros,
que cante em mim o porvir!»

E cantava sob as balas:
«... sangrento se levantou...»
Até que nova rajada
veio por fim e o tombou.

Mas outra canção francesa
já dos seus lábios se evade
acabando a Marselhesa
para toda a Humanidade!

Louis Aragon (1897-1982)
(tradução: Carlos de Oliveira)
(Colhido de "Os poemas da minha vida" de Urbano Tavares Rodrigues)

Miguel Torga


(Foto Fel de Cão)

NÃO PASSARÃO

Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!

Miguel Torga

quinta-feira, 8 de abril de 2010

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Foto Fel de Cão


PÁTRIA

Serra!
E qualquer coisa dentro de mim se aclama...
Qualquer coisa profunda e dolorida,
Traída,
Feita de terra
E alma.

Uma paz de falcão na sua altura
A medir as fronteiras:
- sob a garra dos pés a fraga dura,
e o bico a picar estrelas verdadeiras...

Miguel Torga
(Gerês,Pedra Bela,20 de Agosto de 1942)

segunda-feira, 5 de abril de 2010