terça-feira, 31 de maio de 2011

Mário Cesariny de Vasconcelos


RAIO DE LUZ


Burgueses somos nós todos
ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
desde pequenos.

Burgueses somos nós todos
ó literatos.
Burgueses somos nós todos
ratos e gatos

Burgueses somos nós todos
por nossas mãos.
Burgueses somos nós todos
que horror irmãos.

Burgueses somos nós todos
ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
desde pequenos.

Mário Cesariny de Vasconcelos
(1923-2006)
In "A Poesia Civil"

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Mendes de Carvalho


ALTIFALANTES


Altifalam vozes
nos salões e nas praças
nos ouvidos nos tumultos
martelam esmurram gritam palmejam
comunicam urram.
Conferências discursos aspectos e palavras
lições homenagens notas do dia e da semana
et nunc et semper.
Discursos almicos encomendados traduzidos
decorados divertidos ambaquistas.
Palavras dactilografadas improvisos ponderados
palavras dinâmicas magnéticas.
Altifalam palavras.
Hora de camaleões e altifalantes.

Mendes de Carvalho
(1927-1988)
In "Camaleões & Altifalantes)

Daniel Filipe


DORME MENINO

Dorme Menino dorme
teu sonho quieto lúdico
enquanto longe estoura
a bomba no atol

Que outra coisa Menino
poderemos fazer
ante o inominado
desconhecido crime
que de entre as chamas nasce
no silêncio da noite?

Que palavra inventada
que rubro gládio pode
definir o temor
do começo do mundo?

Que estranho abjecto ritmo
em cogumelo alastra
sobre o teu sono puro
Menino sobre a esperança?

(Um tigre humano vem
a cada esquina oculto
no rumor da manhã
saciar-se de sangue)

Daniel Filipe
(1925-1964)
In "Recado para a amiga distante"(1956)

domingo, 29 de maio de 2011

Papiniano Carlos


CÂNTICO


Belo é ver florir os galhos
das velhas árvores.
E ver chegar as aves
que voltam do Sul.
Belo é o sangue rubro
dum lanho fresco,
e o riso que nasce
das nossas palavras.
Belo é o vir da manhã
sobre os telhados nus
das cidades brancas.
E mais belo ainda
que este sol visível
enflorando, amor,
teus longos cabelos
de guizos dourados:
mais belos que os ventos
cavalgando as nuvens
e dizendo-nos: vinde!,
e que o meu génio abrindo
suas asas nos céus:

Mais belo que o fluir
silente desta célula
fluindo nos cosmos:
Mais belo, amor,
que a tua própria beleza

é este sol inviolável,
rútilo, no fundo de nós.


Papiniano Carlos
In "As Florestas e os Ventos"

Jorge de Sena


PANFLETO



Fere-me esta idolatria mais do que todos os crimes:
Tanto fervor desviado e perdido!
Tanta gente ajoelhando à passagem do tempo
e tão poucos lutando para lhe abrir caminho!

Há uma vida inteira a jogar e gastar
no pano verde imenso das campinas do mundo.
Há desertos cativos de uma ausência dos povos.
Há uma guerra devastando a vida,
enquanto a supuserem redimida!

E em nós a redenção quase perdida!...

Vamos rasgar, ó poetas, esta mentira da alma,
vamos gritar aos homens que os enganam,
que não é a força, que não é a glória,
que não é o sol nem a lua nem as estrelas,
nem os lares nem os filhos, nem os mares floridos,
nem o prazer nem a dor nem a amizade,
nem o indivíduo só compreendendo as causas,
nem os livros nem os poemas, nem as audácias heróicas,
- a redenção sou eu, se formos nós sem forma,
sem liberdade ou corpo, sem programas ou escolas!

Aqui está a redenção. Tomai-a toda.
E se é verdade a fome,
se é verdade o abismo,
se é verdade o pensamento húmido
que pestaneja ansioso nos cortejos públicos,
se são verdade as redenções que mentem:

Matem essa gente para salvar a Vida!
E matem-me com elas para que as queime ainda!

Jorge de Sena
(1919-1978)
In "Coroa da Terra"

Pedro Homem de Melo


VERDADE


Nas tuas mãos autênticas, tamanhas
Que nelas cabe o mundo! ainda acredito
Que sejam altas, firmes, as montanhas
E puras as nascentes de granito.

O mais só nos enterra e só nos mente.
Que importa o azul do céu e o azul das águas?
O que procuro é gente
Que sinta o meu amor e as minhas mágoas!

Pedro Homem de Melo
(1904-1984)
In "Príncipe Perfeito"
(Edições Gama, 1945)

Afonso Duarte


EPIGRAMA


Há só mar no meu País.
Não há terra que dê pão:
Mata-me de fome
A doce ilusão
De frutos como o sol.

Uma onda, outra onda,
O ritmo das ondas me embalou.
Há só mar no meu País:
E é ele quem diz,
É ele que sou.

Afonso Duarte
(1884-1958)
In "Obra poética"
(Guimarães Editores, Março de 1957)

sábado, 28 de maio de 2011

Carlos de Oliveira


VERSOS PARA UMA CANÇÃO DE FERNANDO LOPES GRAÇA


Os anjos cantam? Não cantam.
Canto eu que me apetece:
Quando a voz dum homem canta
A voz do céu emudece.

Cantam as fontes? Talvez,
porque o meu canto as impele:
Quando a voz de um homem canta
a terra canta com ele.

Carlos de Oliveira
(1921-1981)
In "Terra de Harmonia"

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Luis Cernuda


NÃO DIZIA PALAVRAS


Não dizia palavras,
Aproximava apenas um corpo interrogante,
Porque ignorava que o desejo é uma pergunta
Cuja resposta não existe,
Uma folha cujo ramo não existe,
Um mundo cujo céu não existe.


Entre os ossos a angústia abre caminho,
Ergue-se pelas veias
Até abrir na pele
Jorros de sonho
Feitos carne interrogando as nuvens.


Um contacto ao passar,
Um fugidio olhar no meio das sombras,
Bastam para que o corpo se abra em dois,
Ávido de receber em si mesmo
Outro corpo que sonhe;
Metade e metade, sonho e sonho, carne e carne,
Iguais em figura, iguais em amor, iguais em
desejo.


Embora seja só uma esperança,
Porque o desejo é uma pergunta cuja resposta
ninguém sabe.

Luis Cernuda
(1902-1963)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

Manuel Altolaguirre


MINHAS PRISÕES


Sentir-se só alguém no meio da vida
quase é reinar, mas sentir-se só
entre o esquecimento, no obscuro
campo de um coração, é estar preso
sem que sequer uma débil ave trine
para dar-me notícias da alvorada.

E ao estar preso em vários corações,
sem alcançar consciência de qual seja
a prisão verdadeira da minha alma,
ser o centro de vontades que se opõem
se não é morrer, é invejar a morte.

Manuel Altolaguirre
(1905-1959)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Jacques Prévert


BAIRRO LIVRE

Meti o bivaque na gaiola
e saí com um pássaro na cabeça
Então não se faz a continência
perguntou o comandante
Não
não se faz a continência
respondeu o pássaro
Ah bom
desculpe julgava que se fazia a continência
disse o comandante
Ora essa toda a gente se pode enganar
disse o pássaro.

Jacques Prévert
(1900-1977)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
Trad. de Eugénio de Andrade.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Blas de Otero


A PONTO DE CAIR


Nada é tão necessário ao homem como um pouco de mar
e uma orla de esperança para além da morte,
é tudo o que preciso e talvez um par de asas
abertas no capítulo primeiro da carne

Não sei como dizê-lo, com que cara
trocar-me por um anjo dos anteriores à terra
quebraram-se-me os braços de tanto lhes dar corda,
dizei-me o que farei agora, que horas são, se ainda há tempo,
é preciso que suba a mudar-me, que me arrependa sem perder uma lágrima,
uma apenas, uma lágrima orfã,
por favor, dizei-me qual a hora das lágrimas,
sobretudo a das lágrimas sem nada mais que pranto
e pranto ainda e para sempre.

Nada é tão necessário ao homem como um par de lágrimas
prontas a cair no desespero.

Blas de Otero
(1916-1979)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

Bob Dylan nasceu há 70 anos (24/05/1941)

domingo, 22 de maio de 2011

Leonard Cohen / Federico Garcia Lorca

José Agustin Goytisolo


BASTA O PÓ


Daquele trovão, daquela
terrível labareda
que cresceu ante meus olhos,
para sempre ficou,
confundido no ar,
um pó de ódio, uma
cinza tristíssima
que caía e caía
sobre a terra, e ainda
me cai na memória,
em meu peito, nas folhas
do papel em que escrevo.

José Agustín Goytisolo
(1928-1990)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

Jaime Gil Biedma


PELO VISTO


Pelo visto é possível manifestar-se homem.
Pelo visto é possível dizer não.
De uma vez e na rua, de uma vez, por todos
e por todas as vezes em que não podemos.

Importa pelo visto o facto de estar vivo.
Importa pelo visto que até a injustiça força
precise, admita nossas vidas, esses mínimos actos
cada dia na rua realizados por todos.

E será preciso não esquecer a lição:
saber, a cada instante, que no gesto que fazemos
há uma arma escondida, saber que estamos vivos
ainda. E que a vida
é possível ainda, pelo visto.

Jaime Gil Biedma
(1929-1990)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

Carlos Drummond de Andrade


ELEGIA 1938.

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
In "Antologia Poética"

Carlos Drummond de Andrade


CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
In "Antologia Poética"

Octavio Paz


SILÊNCIO


Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.

Octavio Paz
(1914-1998)
Tradução de Luis Pignatelli.

sábado, 21 de maio de 2011

Ángel Crespo


MEDITAÇÃO DO MORTAL


Morrer será como fechar o livro,
mas não será como apagar a luz
ou beber o último
gole.
Será,
para quem vai juntando
tanto mundo disperso,
não descansar, mas sim
deixar que outros reunam
o que juntou com o que não juntei.

Ángel Crespo
(1926-1995)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

Carlos Bousoño


PREÇO DA VERDADE


No antigo sótão da memória poída,
por trás da colher de pau carunchosa,
sob a roupa velha há-de encontrar-se, ou junto ao muro
carcomido, na poeira
de séculos. Há-de encontrar-se talvez para lá do pálido gesto da mão
velha de algum mendigo, ou na ruína da alma
quando tudo cessou.
Pergunto a mim próprio se é preciso o caminho
poeirento da dúvida tenaz, o desalento súbito
na planície estéril, sob o sol da justiça,
a ruína de toda a esperança, o farrapo coçado do medo, a angústia invencível
[a meio do carreiro que conduz ao torreão desmoronado.
Pergunto a mim próprio se é preciso deixar o caminho real
e meter à esquerda pelo atalho e a vereda,
como se nada tivesse ficado para trás na casa deserta.
Pergunto a mim próprio se é preciso ir sem vacilar até ao horror da noite,
penetrar no abismo, na boca do lobo,
caminhar para trás, de costas para a negação,
ou inverter a verdade, no desolado caminho.
Ou se antes é preciso o soluço de pó na confusão de um verão
terrível, ou no transtornado amanhecer do álcool com trombetas de sonho
saber-se de súbito absolutamente desertos, ou melhor,
é talvez necessário ter-se perdido no sórdido pacto do amor,
ter contratado na sombra uma ilusão,
comprado por dinheiro uma reminiscência de luz, um encanto
de amanhecer por trás da colina, junto ao rio.
Admito a possibilidade de ser absolutamente necessário
ter descido, ao menos uma vez, até ao fundo do edifício escuro,
ter descido, tacteando, o perigo da escada a desfazer-se, que ameaça ceder
[a cada um dos nossos passos,
e ter penetrado por fim com valentia na indignidade, na cave escura.
Ter visitado o lugar da sombra,
o território da cinza, onde a vileza repousa
junto à teia de aranha paciente. Ter-se instalado o pó,
tê-lo mastigado com tenacidade em longas horas de sede
ou de sono. Ter correspondido com coragem ou ousadia
ao silêncio
ou à pergunta derradeira e ter-se ali fortalecido e acautelado.
É preciso ter-se entendido com a verdade criminosa
que nos assalta em plena noite, nos tira o sono e rouba
até ao último centavo. Ter mendigado longos dias depois
pelos bairros mais miseráveis de cada um, sem esperança de recuperar
[o perdido,
e por fim, espoliados, ter continuado o caminho sincero e entrado na
[noite absoluta com coragem ainda.

Carlos Bousoño (1923)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

Ruy Cinatti


GRITAM TODOS


Gritam todos: venham!
E os outros: tenham!
Aqueles que estão comigo
Sonham. Não querem, nem partem,
Encantados...

Ruy Cinatti
(1915-1986)
In " Nós Não Somos Deste Mundo"

Ruy Cinatti


NÃO SEI SE DOR


Não sei se dor
Ou muito amor
Eu sinto.

Mas isto é maior do que a morte;
Não posso mais.
Eu minto.

Ruy Cinatti
(1915-1986)
In "Anoitecendo, a Vida Recomeça"

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Mário de Sá Carneiro nasceu a 19 de Maio de 1890.


FIM


Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.

Mário de Sá Carneiro
(19/05/1890-26/04/1916.

domingo, 15 de maio de 2011

Violeta Teixeira


NÃO SEI COMO DIZER-TE...


Não sei como dizer-te
Que a minha voz te procura

Do fundo rubro
Do abismo…

Não sei…
Sem eufemismo…
Sem pudor…
Sem amor…

Talvez...Não sei…
Com cálices,
Nos lábios,
De uma loucura
Lúcida.

Vermelha, como
A rosa - sangue
Que desfolho,
No peito macio
Deste apelo.

Violeta Teixeira

Violeta Teixeira


NÃO SEI


Não sei
se me regresso.

Será, talvez,
Regresso, sem
Retorno.

Um regresso, talvez,
à mesma
Estranheza
De masmorra.

O regresso
À mesma
Ausência.

Violeta Teixeira
In "Lânguidas Fúrias"

É uma bela solução.


(sacado, com a devida vénia, de "O Jumento")

sábado, 14 de maio de 2011

Zeca Afonso - Utopia

Manuel António Pina (Prémio Camões de 2011)


AOS FILHOS


Já nada nos pertence,
nem a nossa miséria.
O que vos deixaremos
a vós o roubaremos.

Toda a vida estivemos
sentados sobre a morte,
sobre a nossa própria morte!
Agora como morreremos?

Estes são tempos de
que não ficará memória,
alguma glória teríamos
fôssemos ao menos infames.

Comprámos e não pagámos,
faltámos a encontros:
nem sequer quando errámos
fizemos grande coisa!

Manuel António Pina
In "Um Sítio onde Pousar a Cabeça"

Herberto Helder


OS CÃES LADRAM ÀS LUAS...


os cães gerais ladram às luas que lavram pelos desertos fora,
mas a gota de água treme e brilha,
não uses as unhas senão nas linhas mais puras,
e a grande Constelação do Cão galga através da noite do mundo cheia de ar e de areia
e de fogo,
e não interrompe ministério nenhum nem nenhum elemento,
e tu guarda para a escrita a estrita gota de água imarcescível
contra a turva sede da matilha,
com tua linha limpa cruzas cactos, escorpiões, árduos buracos negros:
queres apenas
aquela gota viva entre as unhas,
enquanto em torno sob as luas os cães cheiram os cus uns aos outros
à procura do ouro

Herberto Helder
(Poema inédito publicado no jornal "Público" do dia 14 de Maio de 2011)

Mário Dionísio


ARTE POÉTICA

A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.


A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou prague­jando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
— e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.

A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.

Mário Dionísio
(1916-1993)
In "Poesia Incompleta"

Julia Uceda


VOZ SEM ECO


Quando a aranha tece a sua imensa teia,
quando sobre a areia avança a espuma,
onde está o homem.
Onde está o homem que os ventos arrastam
perdido entre suas folhas e suas névoas
e por fim o deixam só em margens mortas.
Onde está o homem.
Onde se sonha.
Sua voz, sem eco, onde ressoa.
Que ergue o lenço quando ele se afasta.
Quem, se está só, chama à sua porta.
E se caminha, aonde chega
e quem o espera.

Só a imensa lua olha suas pegadas.
Quando se deita sobre a terra,
quem o acompanha à outra margem.
E nesse lado, quem então o acorda...

Se ele acorda.

Julia Uceda
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

Catroga o "PENTELHO"


"Sacado" de "O JUMENTO"

sexta-feira, 13 de maio de 2011

José Gomes Ferreira


HOMENS DO FUTURO:

ouvi, ouvi este poeta ignorado
que cá de longe fechado numa gaveta
no suor do século vinte
rodeado de chamas e de trovões,
vai atirar para o mundo
versos duros e sonâmbulos como eu.
Versos afiados como dentes duma serra em mãos de injúria.
Versos agrestes como azorragues de nojo.
Versos rudes como machados de decepar.
Versos de lâmina contra a Paisagem do mundo
— essa prostituta que parece andar às ordens dos ricos
para adormecer os poetas.

Fora, fora do planeta,
tu, mulher lânguida
de braços verdes
e cantos de pássaros no coração!

Fora, fora as árvores inúteis
— ninfas paradas
para o cio dos faunos
escondidos no vento...

Fora, fora o céu
com nuvens onde não há chuva
mas cores para quadros de exposição!

Fora, fora os poentes
com sangue sem cadáveres
a iludiremos de campos de batalha suspensos!

Fora, fora as rosas vermelhas,
flâmulas de revolta para enterros na primavera
dos revolucionários mortos na cama!

Fora, fora as fontes
com água envenenada da solidão
para adormecer o desespero dos homens!

Fora, fora as heras nos muros
a vestirem de luz verde as sombras dos nossos mortos sempre
de pé!

Fora, fora os rios
a esquecerem-nos as lágrimas dos pobres!

Fora, fora as papoilas,
tão contentes de parecerem o rosto de sangue heróico dum
fantasma ferido!

Fora, fora tudo o que amoleça de afrodites
a teima das nossas garras
curvas de futuro!

Fora! Fora! Fora! Fora!

Deixem-nos o planeta descarnado e áspero
para vermos bem os esqueletos de tudo, até das nuvens.
Deixem-nos um planeta sem vales rumorosos de ecos úmidos
nem mulheres de flores nas planícies estendidas.
Uma planeta feito de lágrimas e montes de sucata
com morcegos a trazerem nas asas a penumbra das tocas.
E estrelas que rompem do ferro fundente dos fornos!
E cavalos negros nas nuvens de fumo das fábricas!
E flores de punhos cerrados das multidões em alma!
E barracões, e vielas, e vícios, e escravos
a suarem um simulacro de vida
entre bolor, fome, mãos de súplica e cadáveres,
montes de cadáveres, milhões de cadáveres, silêncios de cadáveres
e pedras!

Deixem-nos um planeta sem árvores de estrelas
a nós os poetas que estrangulamos os pássaros
para ouvirmos mais alto o silêncio dos homens
— terríveis, à espera, na sombra do chão
sujo da nossa morte.

José Gomes Ferreira
(1900-1985)

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Giorgio Caproni


TAREFA CUMPRIDA


O que se cumpriu,
Cumpriu-se. Podemos
Dar repouso às algemas.
Se o desejar (se houver alguém
À sua espera) cada um
Pode partir livre para onde
Com mais força o coração o chamar.
E eu que não tenho casa alguma
A não ser entre vós,
Para quem sou o próprio Deus,
O qual existe, diz-se,
Só no acto da súplica
- de desespero, esse acto, e negação –
Eu que não tenho onde ir, prefiro
Ficar mais um pouco, aquecer
Os meus dedos ao fogo derradeiro da mentira
E expulsar das minhas mãos o tremor,
Depois, reduzido
A cinzas o tição, desaparecer
«Aproveitando as trevas».

Giorgio Caproni
(1912-1990)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro"
Trad. de Ernesto Sampaio.

Virgílio Piñera


TESTAMENTO


Como fui um iconoclasta
Recuso que me façam uma estátua;
Se na vida fui carne,
Na morte não quero ser mármore.

Como sou de um lugar
De demónios e de anjos,
Como anjo e demónio morto
Quero seguir pelas ruas...

Devo encontrar na eternidade
Novos anjos e demónios
E conversarei com eles
Numa linguagem cifrada.

E todos entender-me-ão
Que não choro...
Vivi e fui assim,
Assim sonhei, e atravessei o transe.

Virgílio Piñera
(1912-1979)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro"
Trad. de Jorge Henrique Bastos.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Jorge Manrique


GLOSA SOBRE O MOTE "SEM DEUS, SEM VÓS E SEM MIM"


Sou quem livre me senti,
eu quem pudera olvidar-vos,
eu sou o que por amar-vos
estou, desde que vos vi,
sem Deus, sem vós e sem mim.

Sem Deus porque a vós adoro,
sem vós, pois não me quereis;
sem mim, pois se diz em coro
que me tendes e tereis.
Por isso triste, nasci,
pois poderia olvidar-vos;
eu sou o que por amar-vos
estou, desde que vos vi,
sem Deus, sem vós e sem mim.

Jorge Manrique
(1440-1479)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro"
Trad. de José Bento.

Juan Ramón Jiménez


REQUIEM

QUANDO TODOS OS SÉCULOS REGRESSAM,
ANOITECENDO, À SUA BELEZA,
SOBE AO ÂMBITO UNIVERSAL
A FUNDA UNIDADE TERRENA.

ENTÃO A NOSSA VIDA ALCANÇA
A ALTA RAZÃO DE SUA EXISTÊNCIA:
TODOS SOMOS REIS IGUAIS
NA TERRA, RAINHA COMPLETA.

VEMOS-LHE AS TÊMPORAS INFINDAS,
ESCUTAMOS-LHE A VOZ IMENSA,
SENTIMO-NOS ACUMULADOS
PELAS SUAS MÃOS VERDADEIRAS

SEU MAR TOTAL É NOSSO SANGUE,
A NOSSA CARNE É SUA PEDRA,
RESPIRAMOS O SEU AR UNO,
SEU FOGO ÚNICO INCENDEIA-NOS.

ELA ESTÁ COM TODOS NÓS,
TODOS NÓS ESTAMOS COM ELA;
ELA É BASTANTE PARA DAR-NOS
A TODOS A SUBSTÂNCIA ETERNA.

E TOCAMOS O ZÉNITE ÚLTIMO
COM A LUZ DE NOSSAS CABEÇAS
E DETEMO-NOS TODOS CERTOS
DE ESTAR NO QUE NUNCA SE DEIXA.

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

Glória Fuertes


AUTOBIOGRAFIA



Nací a muy temprana edad.
dejé de ser analfabeta a los tres años,
virgen, a los dieciocho,
mártir, a los cincuenta.


Aprendí a montar en bicicleta,
cuando no me llegaban
los pies a los pedales,
a besar, cuando no me llegaban
los pechos a la boca.
Muy pronto conseguí la madurez.


En el colegio,
la primera en Urbanidad, Historia Sagrada y Declamación.
Ni Álgebra ni la sor Maripili me iban.
Me echaron.
Nací sin una peseta. Ahora,
después de cincuenta años de trabajar,
tengo dos.

Glória Furtes
(1917-1998)

Juan Ramón Jiménez


SOLIDÂO

Estás todo em ti, mar, e, todavia,
como sem ti estás, que solitário,
que distante, sempre, de ti mesmo!

Aberto em mil feridas, cada instante,
qual minha fronte,
tuas ondas, como os meus pensamentos,
vão e vêm, vão e vêm,
beijando-se, afastando-se,
num eterno conhecer-se,
mar, e desconhecer-se.

És tu e não o sabes,
pulsa-te o coração e não o sente...
Que plenitude de solidão, mar solitário!

Juan Ramón Jiménez
(1888-1958)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

Juan Ramón Jiménez


A VIAGEM DEFINITIVA


…E eu partirei. E ficarão os pássaros
cantando;
e ficará meu horto, com sua árvore verde,
e com seu poço branco.

Todas as tardes, o céu será azul e plácido;
e tocarão, como esta tarde estão tocando
os sinos do campanário.

Hão-de morrer aqueles que me amaram;
e a aldeia tornar-se-á nova cada ano;
e naquele recanto do meu horto em flor, caiado,
o meu espírito vagueará, nostálgico…

E eu partirei; e estarei só, sem lar, sem árvore
verde, sem meu poço branco,
sem o céu azul e plácido...
E ficarão os pássaros cantando.

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

José Agustín Goytisolo


O OFÍCIO DO POETA


Contemplar as palavras
sobre o papel escritas,
medi-las, sopesar
seu corpo no conjunto
do poema, e depois,
tal como um artesão,
afastar-se a olhar
como a luz emerge
da textura subtil.

Assim é o velho ofício
do poeta, que começa
na ideia, no sopro
sobre o pó infinito
da memória, sobre
a experiência vivida,
a história, os anseios,
as paixões do homem.

A matéria do canto
ofereceu-no-la o povo
com a sua voz. Devolvamos
as palavras reunidas
ao autêntico dono.

José Agustín Goytisolo
(1928-1999)
In "Antologia da poesia espanhola contemporânea"
Dezembro de 1985
Trad. de José Bento.

José Agustín Goytisolo


NO SIRVES PARA NADA


Cuando yo era pequeño
estaba siempre triste,
y mi padre decía,
mirándome y moviendo
la cabeza: hijo mío,
no sirves para nada.

Después me fui al colegio
con pan y con adioses,
pero me acompañaba
la tristeza. El maestro
graznó: pequeño niño,
no sirves para nada.

Vino, luego, la guerra,
la muerte –yo la vi-
y cuando hubo pasado
y todos la olvidaron,
yo, triste, seguí oyendo:
no sirves para nada.

Y cuando me pusieron
los pantalones largos,
la tristeza en seguida
cambió de pantalones.

Mis amigos dijeron:
no sirves para nada.

En la calle, en las aulas,
odiando y aprendiendo
la injusticia y sus leyes,
me perseguía siempre
la triste cantinela:
no sirves para nada.

De tristeza en tristeza
caí por los peldaños
de la vida. Y un día,
la muchacha que amo
me dijo, y era alegre:
no sirves para nada.

Ahora con ella,
voy limpio y bien peinado.
Tenemos una niña
a la que, a veces, digo,
también con alegría:
no sirves para nada.

José Agustín Goytisolo
(1928-1999)

Paco Ibañez canta José Agustín Goytisolo - No sirves para nada.

Mercedes Sosa - Si se calla el cantor.

domingo, 8 de maio de 2011

Papiniano Carlos


A QUEIMADA


A erva daninha era o escalracho.
NÓS o arrancámos.
Depois botámos fogo à planície.
Nada houve tão necessário
desde o fundo dos tempos.
Cresceram chamas até aos astros
e o clamor da nossa voz
foi um cântico de certeza
na boca do vento.

Agora o nosso olhar possui a planície.
NÓS trazemos as águas,
NÓS trazemos o arado e as sementes
e suamos sangue:

Irmãos, a planície é nossa!

Papiniano Carlos
In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"
Fevereiro de 1973.

António Reis


DEPOIS DAS 7

Depois das 7
as montras são mais íntimas

A vergonha de não comprar
não existe
e a tristeza de não ter
é só nossa

E a luz
torna mais belo
e mais útil
cada objecto

António Reis
(1927-1991)
In "Poemas Quotidianos" (1957)

Luís Veiga Leitão


PRISIONEIRO

O prisioneiro é como um navio
preso ao cais. Amarras de desterro
com ferrugem de noites a fio
e redes de ferro.
Do casco que um vento negro impele
caiu-lhe a pintura, o próprio nome.
Mas o mar está dentro dele
e não há força que o dome.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
in "Longo Caminho Breve"

Luís Veiga Leitão


INCOMUNICABILIDADE

Caneta, lápis, papel
e lâmina de ponta de lua
um autómato do bolso me tirava...
Depois a minha mão ficou nua
da vestimenta que usava.

Mas deram-me uma tinta preta
(nuvem negra dum fogo posto)
e meteram-me no tinteiro...
Na tinta, afogo as mãos, o rosto,
o meu corpo inteiro:

A força, o canto, a voz que encerra,
ninguém, ninguém pode afogar
- como as raízes da terra
e o fundo do mar.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)

Sebastião da Gama


A CADA VERSO NASÇO...


A cada verso nasço...
É cada verso o meu primeiro grito
à vida...

Depois,
se caminho apalpando e aos tombos, e se, aflito,
não atino e me perco até de mim
-é que os raios do Sol cegaram, despiedados,
meus olhos mal abertos, costumados
à escuridão do ventre de onde vim.

Sebastião da Gama
(1924-1952)
in "Serra-Mãe"
Edição de Junho de 1957.

Sebastião da Gama


REMOINHO


Enrodilhei-me no Vento...
Vou e venho,
vou e venho,
e o Vento sempre a rolar-me,
e agora quero agarrar-me,
lanço a mão a procurar-me,
e é só o Vento que apanho...

Sebastião da Gama
(1924-1952)
In "Serra-Mãe"
Edição de Junho de 1957.

José Régio


APONTAMENTO


De canas penduradas,
Roupas de pobres a secar:

Antigas lindas blusas desbotadas,
Calças de trabalho poídas,
Meias esburacadas,
Camisas encardidas,
Que foram a lavar.

Lavadas com esforço, raiva, amor...

Manchas de terra, sangue, esperma, suor,
Manchas de vidas!

De canas penduradas,
Roupas expostas, a secar,
Dum lado e doutro da sinistra artéria...

Bandeiras de miséria
Que o vento faz bailar!

José Régio
(1901-1969)
In "Filho do Homem"
-Cancioneiro de João Bensaúde-
Edição de Maio de 1961.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Vitor Ramil canta Jorge Luís Borges "Milonga de Albornoz"

D. H. Lawrence


DEMOCRACIA


Sou um democrata até ao ponto de amar o sol livre nos homens
e um aristocrata até ao ponto de odiar as pessoas néscias e possessivas.

Amo o sol em qualquer homem
quando o vejo na sua fronte
límpido e sem temor, mesmo que seja pequeno.

Mas quando vejo aqueles homens cinzentos e bem sucedidos
tão hediondos e semelhantes a cadáveres, totalmente sem sol,
como escravos gordos e bem sucedidos, meneando-se mecanicamente,
então sou mais que radical e quero servir-me da guilhotina.

E quando vejo os homens que trabalham
pálidos e miseráveis como insectos, apressados
e vivendo como piolhos, com pouco dinheiro
e sem nunca prosperar,
então desejo, como Tibério, que a multidão tivesse apenas uma cabeça
para que eu a pudesse decepar.

Sinto que as pessoas para quem o sol não existe
não deviam viver.

D.H. Lawrence
(1885-1930)
(tradução de Maria de Lourdes Guimarães)

Fausto "Memoria dos Dias"

Albano Martins


CEDO OU TARDE

Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.


Albano Martins
In "Escrito a Vermelho"

Albano Martins


PEQUENAS COISAS

Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.


Albano Martins
in "Escrito a Vermelho"