domingo, 11 de setembro de 2011

João Apolinário


CARTA DE LISBOA



Os filhos morrem todos nas plagas africanas
O leite agora azeda no seio das mulheres
E o pão esse apodrece na corola das searas
Enquanto os desertores saltitam pelas fronteiras

Os sindicatos têm só as portas da rua
As lojas vendem apenas as exclusividades
Os pides andam fardados de generais à paisana
e os paisanos marcham sob toques militares

Os letreiros luminosos vendem-se aos SNIS
As multinacionais fazem acordos secretos
E os guerrilheiros aceitam essas cumplicidades
Enquanto as acções sobem nas Bolsas dos fascistas

Todos os mutilados entram para a História
— de gatas
Os estudantes armados conspiram para amanhã
As prostitutas sonham ser como Lisístratas
e os homosexuais querem licenças camarárias

As noivas e as viúvas já tiram as calcinhas
E o fado está mais sádico e mais reaccionário
Os turistas acham lindas as proibições higiénicas
e não cospem nas ruas mas cospem nos criados

Há ordem no País (como sempre) um luto sóbrio
As pessoas sorriem apenas quando choram
E choram (como sempre) com as cartas censuradas
que recebem às vezes (Além) dos filhos mortos

Ninguém esboça sequer um movimento a mais
Até porque se vive assim com muito menos
O que ainda ajuda são as humilhações francesas
e os consolos latinos das alemãs que abortam

Já quase não colhemos faltam já hortaliças
mas estamos plantando cravos pelos quintais
São os Poetas que dizem que as flores são precisas
Será que alguém sabe o que é preciso mais

Vou acabar desculpa Lembras-te do teu vizinho
aquele rapaz que andou com teu filho na escola
Está fugindo para a França (ainda é um menino)
Vai mandar-te esta carta Saudades meu irmão

João Apolinário
(1924-1988)
In "Antologia da Memória Poética da Gurra Colonial"

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