domingo, 25 de setembro de 2011

Fernando Lemos


QUANDO MORRE UM AMIGO...


Quando morre um amigo
os telhados descem de nível
para fugirem torres de moscas
e o ar mastigar o nervo da língua

perdem-se as mãos nos bolsos
com vergonha
e o vento arranha o pente dentro dos cabelos moles

os animais engolem ninhos nos museus
e vão romper as estradas de couraças roídas

quando morre um amigo
caem por copos os sobejos da Natureza
os acordeões de barro ficam mesmo roucos
e suspendem-se no quarto com cheiro a farmácia

morre um amigo
e é um fim de espectáculo

rolam as solas de madeira sobre a borracha
vêm os corvos urinar nos crânios dos deuses

estabelece-se uma enorme ventania
desenhando ladrilhos entre ossos
gritam mulheres deitando espelhos ao mar
enquanto as crianças mudam apenas de jardim:
é o ninguém baixar quando rolam as moedas

quando morre um amigo sinto vergonha

as bruxas de custódia em punho
dão horas particulares
e os cais motorizados fortificam-se
quando morre um amigo

ficam as nuvens de fora do alcance do azul
perco a condução
encosto o nariz na vitrina comercial
ocultando com o andaime as feridas
com que a vida me costuma vacinar

olho o céu quando morre um amigo
para criar um abismo entre dois pés
olho as paredes que são sempre quatro
e cabe-me a vida dentro de um copo
sobejos da Natureza

o frio vem tarde nas torneiras distantes
sempre que morre um amigo

sempre que morre um amigo
é um fim de espectáculo

Fernando Lemos
In "Teclado Universal"

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