ALGUMAS PALAVRAS
Algumas palavras são mais que o som.
Soltam-se delas lâmpadas, por vezes gritos.
Palavras que demoram na boca
com o sabor da manhã de Outubro, o claro gosto
da terra húmida, castanha até doer.
E há noites em que se ouve, além das horas,
um chamar por nós, um apelo
comovido. Podemos afirmar: são irmãos,
são mães, são companheiras. Mas é outra a face
revelada. Todo um ruído quente
quase desanimado. Um ténue vento
queimando-se nos vidros. Posso dizer:
em noites assim alguns morrem, muito antes
de saberem o nome e a voz. De quem
esse clamor? Saber que na antiga casa
as portas se abriram, um ou outro quarto
vai iluminar-se e começa o dia!
Há palavras lança-chamas,
Conheço algumas que nos fazem viver,
por não serem simples som
mas estradas incendiadas por dentro,
duplos corações batendo com o calor
da certeza do dia que se segue.
Assim me apoio às palavras,
procuro a tudo dar um nome,
e em noites destas – salientes, defumadas,
com vozes que nos chamam – sou um corpo
novo. Quebrando o meu silêncio,
povoo alguns espaços de alegria.
Rasgo o papel. Irado, desejoso
de saber até onde, quando, como,
o corpo vai. Nas palavras me encontro.
Cansado, quase morto, à espera,
sempre à espera. Nas palavras vivo,
denuncio ou ataco. Há um grande sol
à nossa espera. Quantos somos?
Eduardo Guerra Carneiro
(1942-2004)
In "Algumas Palavras"
(1969)