quarta-feira, 2 de março de 2011

Carlos de Oliveira


CANÇÃO


Já escuro e denso o rio da memória
flui e me entristece,
se acaso lembro que chorei
o que nem lágrimas merece.

Se acaso o sono poupa o coração
e o coração vive,
já desalento
meu pensamento é tudo o que eu não tive.

Génio do longe, que voltaste a minha casa
quando menos cuidava!
Nem eu sei com que versos me perdi
de tudo e que era bom e me cantava.

Foge, inimiga sombra, volve
à sombra antiga que vens rumorejando...
E lá, pátria do esquecimento,
seja olvidado o que me fores lembrando.

Se em mim chorando me cansei de mim,
que eu não esqueça nunca
os que a meu lado vão, cantando,
sobre um chão que de lágrimas se junca.

Que eu não veja extinguir-se esse áspero lume
que, em sua voz dorida,
aquece já na sua própria desventura
o começo da vida.

Carlos de Oliveira
(1921-1981)
In "Colheita Perdida"

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