sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A CORTIÇA


É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal
há gente que arrefece que arrefece
de sol a sol
de mal a mal.
É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal.

 
Passando o Tejo para além da ponte
que não nos liga a nada
só se vê horizonte
horizonte
e tristeza queimada.

É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
uma fome tão grande que trespassa
o ventre de quem a leva.
É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
mal finda a noite escurece logo o dia
e uma espessa energia
feita de pus no sangue
de lama na barriga
nasce da terra exangue e inimiga

É o vapor da sede é o calor do medo.
a cama do ganhão
a casca do sobredo.
É o suor com pão que se come em segredo.

É preciso dizer-se o que nos dão
no meu país de boa lavra
aonde um homem morre como um cão
à míngua de palavra:

Por cada tronco desnudado um lado
do nosso orgulho ferido
e por cada sobreiro despojado
um homem esfomeado e mal parido.

Ah não, filhos da mãe!
Ah não, filhos da terra!
Os enjeitados também vão à guerra.

José Carlos Ary dos Santos
(1937-1984)
“Insofrimento in Sofrimento”,
(1969)

1 comentário:

  1. O retrato do Portugal de hoje não é muito diferente...
    Bom fim de semana!

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