sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

EPITÁFIO DIANTE DE UM ESPELHO


Dura há-de ser para ti a vida
que tuas crenças sacrificaste a uma estranha honradez,
para ti cuja única certeza é tua lembrança
e, por isso, teu sepulcro mais aziago.
Dura há-de ser a vida, quando os anos passarem
e por fim destruírem a pátria sonhadora da tua adolescência,
quando vires, como hoje, este fantasma
que anteriormente te consolou com sua formosura.
Quando o amor, como um vestido roto,
não possa proteger tua tristeza
e um motivo de zombaria, piedade ou assombro,
para os olhos mais puros seja apenas.
Duro há-de ser para o teu corpo ver morrer o desejo,
a juventude, tudo o que foste,
e procurar sem paixão o teu repouso
na surda ternura do que é débil,
na grísea destruição que alguma vez amaste.
«É a lei da vida», dizem velhos estéreis,
«e nada senão Deus pode mudá-lo» repetem,
sob a luz da noite, lentas sombras inúteis.
Dura há-de ser a vida, tu que amaste o mundo
que com um olhar ou uma suave carícia sonhaste possuí-lo,
quando a absurda farsa que tão bem conheces
não estiver já enfeitada com o efémero e belo.
Dura há-de ser a vida até àquele instante
em que veles tua memória neste espelho:
teus frios lábios não terão já refúgio
e em tuas mãos vazias abraçarás a morte.



Juan Luis Panero
(1942-2013)
Tradução: José Bento

sábado, 13 de dezembro de 2014

CERCO

O corpo começa a consentir,
ceder, abrir fendas
com as chuvas altas,
a mostrar, quase exibir
velhas raízes,rugas, mágoas,
a secura próxima dos galhos;
corpo, sim,ele que foi afável
e crédulo e solar - tão
indiferente agora às matinais
e despenteadas vozes:
distante e tão cercado
de apagadas águas.


Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "Rente ao Dizer"
AO VENTO DE OUTONO


Vento de outono, vento solitário,
vento da noite,
força obscura que se desprende
do infinito e volta ao infinito,
rodopia dentro de mim, conjura
contra meu coração tua força,
arranca de um vez a casca
do fruto que não madura.



Joan Vinyoli
(1914-1984)
Tradução de João Cabral de Melo Neto.

sábado, 6 de dezembro de 2014

PRESCRIÇÃO.


Deixa passar as horas
Sem as contar.
Alheia a cada instante,
Vive, a viver a vida, a eternidade.
Feliz e quem nao sabe
A propria idade
E em nenhum ano pode envelhecer.
Dura encantada na realidade.
Negar o tempo e o modo de o vencer.



Miguel Torga
(1907-1995)
OUTONO


O outono vem vindo, chegam melancolias,
cavam fundo no corpo,
instalam-se nas fendas; às vezes
por aí ficam com a chuva
apodrecendo;
ou então deixam marcas, as putas,
difíceis de apagar, de tão negras,
duras.



Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "Cumplicidades do Verão"

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

GAIVOTAS

Não sei onde as gaivotas fazem ninho,
onde encontram a paz.
Sou como elas,
em perpétuo voo.
Raso a vida
como elas rasam a água
em busca de alimento.
E amo, talvez como elas, o sossego,
o grande sossego marinho,
mas o meu destino é viver
faiscando na tempestade.



Vincenzo Cardarelli
(1887-1959)
Tradução: Albano Martins

quinta-feira, 20 de novembro de 2014



NESTE MUNDO EM QUE ESQUECEMOS.


Neste mundo em que esquecemos
Somos sombras de quem somos,
E os gestos reais que temos
No outro em que, almas, vivemos,
São aqui esgares e assomos.


Tudo é nocturno e confuso
No que entre nós aqui há.
Projecções, fumo difuso
Do lume que brilha ocluso
Ao olhar que a vida dá.

Mas um ou outro, um momento,
Olhando bem, pode ver
Na sombra e seu movimento
Qual no outro mundo é o intento
Do gesto que o faz viver.

E então encontra o sentido
Do que aqui está a esgarar,
E volve ao seu corpo ido,
Imaginado e entendido,
A intuição de um olhar.

Sombra do corpo saudosa,
Mentira que sente o laço
Que a liga à maravilhosa
Verdade, que a lança ansiosa,
No chão do tempo e do espaço.


Fernando Pessoa
(1888-1935)

POEMA DA VOZ QUE ESCUTA.


Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro - a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.



Políbio Gomes dos Santos
(1911-1939)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

DO CAMINHO...


Oh diz-me, noite amiga, amada velha,
que me trazes o retábulo de meus sonhos
sempre deserto e desolado, e só
com meu fantasma dentro,
minha pobre sombra triste
sobre a estepe e sob o sol de fogo,
ou sonhando amarguras
nas vozes de todos os mistérios,
diz-me, se sabes, velha amada, diz-me
se são minhas as lágrimas que verto.
E respondeu-me a noite:
Nunca me revelaste teu segredo.
Não soube nunca, amado,
se eras tu esse fantasma do teu sonho
nem descobri se era sua voz a tua
ou era a voz de um histrião grotesco.
Disse eu à noite: Amada mentirosa,
tu sabes meu segredo;
tu viste a funda gruta
onde fabrica seu cristal meu sonho,
e sabes que minhas lágrimas são minhas,
e sabes minha dor, minha dor velha.
Oh! Eu não sei, amado, disse a noite,
eu não sei teu segredo,
ainda que tenha visto vaguear esse que chamas
desolado fantasma, por teu sonho.
Debruço-me sobre as almas, quando choram
e escuto a sua reza,
humilde e solitária,
a que chamas um salmo verdadeiro;
mas nas profundas abóbadas da alma
não sei se o pranto é uma voz ou um eco.
Para escutar a queixa de teus lábios
busquei-te no teu sonho,
e vi-te ali a vaguear num conturbado
labirinto de espelhos.



António Machado
(1875-1939)
Tradução: José Bento

domingo, 16 de novembro de 2014

O DURO PÃO.


A insónia beber-me até à gota última.
Debandar pelos campos, de par em par os braços.
Conhecer de que angústia me chegam meus poemas.
Arrancar-me o vestido com mágoa mas sem lágrimas.
Morder o duro pão do egoísmo alheio.
Afogar-me no tumulto que por dentro me invade.
Evadir-me do teatro que me dão dia a dia.
O desdém prender em mim com um colar de geada.
Cravar agulhas rombas na minha pregadeira.
Esgarçar os instantes em que a fronte me pesa.
Lentamente afundar-me com este peso imposto.

Aguardar o momento em que rebente o fel.

María Victoria Atencia
(N: 1931)
(Trad. de José Bento)


PONTO DE ORVALHO


Nem se chega a saber como
um inusitado sorriso,
um volver de olhos doentes,
um caminhar indeciso
e cego por entre as gentes,
chamam a si, aglutinam,
essa dor que anda suspensa
(e é dor de toda a maneira)
como o vapor se condensa
sobre núcleos de poeira.
É essa angústia latente
boiando no ar parado
como um trovão iminente,
que em muda voz se pressente
num simples olhar trocado.
Essa angústia universal,
esse humano desespero,
revela-se num sinal,
numa ferida natural
que rói com lento exagero.
Não deita sangue nem pus,
não se mede nem se pesa,
não diz, não chora, não reza,
não se explica nem traduz.
A gente chega, respira,
olha, sorri, cumprimenta,
fala do frio que apoquenta
ou do suor que transpira,
e pronto, sem saber como,
inútil, seco, vazio,
cai na penumbra do rio,
emerge, bóia, soçobra,
fácil e desinteressado
como um papel que se dobra
por onde já foi dobrado.



António Gedeão
(1906-1997)

sábado, 15 de novembro de 2014

NÃO FIZ NADA, BEM SEI, NEM O FAREI


Não fiz nada, bem sei, nem o farei,
Mas de não fazer nada isto tirei,
Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo,
Quem sou é o espectro do que não serei.


Vivemos aos encontros do abandono
Sem verdade, sem dúvida nem dono.
Boa é a vida, mas melhor é o vinho.
O amor é bom, mas é melhor o sono.


Fernando Pessoa
(1888.1935)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

CÂNTICO.


Mundo à
nossa medida
Redondo como os olhos,
E como eles, também,
A receber de fora
A luz e a sombra, consoante a hora


Mundo apenas pretexto
Doutros mundos.
Base de onde levanta
A inquietação,
Cansada da uniforme rotação
Do dia a dia.
Mundo que a fantasia
Desfigura
A vê-lo cada vez de mais altura.

Mundo do mesmo barro
De que somos feitos.
Carne da nossa carne
Apodrecida.
Mundo que o tempo gasta e arrefece,
Mas o único jardim que se conhece
Onde floresce a vida.


Miguel TORGA
(1907-1995)
ESTOU PERDIDO


Profeta de meus fins não duvidava
do mundo que pintou minha fantasia
nos enormes desertos invisíveis.

Reconcentrado e penetrante, só,
mudo, predestinado, esclarecido,
meu profundo isolamento e fundo centro,
meu sonho errante e solidão submersa,
dilatavam-se pelo inexistente,
até que vacilei, até que a dúvida
por dentro escureceu minha cegueira.

Um tacto escuro entre o meu ser e o mundo,
entre as duas trevas, definia
uma ignorada juventude ardente.
Encontra-me na noite. Estou perdido.


Manuel Altolaguirre
(1905-1959)
Tradução: José BENTO

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

VELHO TEMA, A SAUDADE


Quem não a canta? Quem? Quem não a canta e sente?
-Chama que já passou mas que assim mesmo é chama…
A Saudade, eu a sinto infinda, confidente.
Que de longe me acena e me fascina e chama…


Mágoa de todo o mundo e que tem toda gente:
Uns sorrisos de mãe… uns sorrisos de dama…
Um segredo de amor que se desfaz e mente…
Quem não os teve? Quem? Quem não os teve e os ama?

Olhos postos ao léu, altívagos, à toa,
Quantas vezes tu mesmo, a cismar, de repente
Te ficaste gozando uma saudade boa?

Se vês que em teu passado uma saudade adeja,
-Faze que uma saudade a ti seja o presente!
-Faze que tua morte uma saudade seja!

Jorge de LIMA
(1895-1953)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

QUANDO FICAS SOZINHO.


Quando ficas sozinho, és espelho
do que foste:
uma manhã
contemplada da janela encostada
da varanda; alguns passos
harmoniosos que não seguiste
para não derramar teu gozo;
umas quantas palavras
que te modificaram mais que o tempo;
um olhar que se afogou
como luz em tuas veias;
uma viagem que não querias
terminar nunca; tua alma ausente
do que te esperava
ao ficares tão sozinho.

Ángel Crespo


(1926-1995)
Tradução: José Bento

segunda-feira, 10 de novembro de 2014


    POEMA DE AMOR.


    Os segredos do amor têm profundezas difíceis de alcançar,
    tal como a chuva que hoje cai e nos molha na calçada a face,
    nós olhando triste uma saudade imensa
    num corpo de mulher metamorfoseada.


    Sou demasiado são para me esquecer
    do tempo apaixonado que vivi nos teus braços
    e bebo no teu um coração meu
    adormecido no mar do meu cansaço
    ou no rio das minhas secas lágrimas.

    Tardará muito, se é que as horas contam,
    ver-te, de novo, perto de mim, longe,
    mas eu espero, sou paciente e, no meu canhenho, aponto,
    um dia a menos, o da tua chegada.
    E assim me fico, rente ao horizonte,
    abrigado da chuva numa cabine telefónica,
    e ligo para ti - que número? - ninguém responde
    do oceano que avança e retrai colinas,
    o vulto de um navio, tu na amurada
    acenando um lenço, ó minha pomba branca!...

    Como se tempestade houvesse e um naufrágio de chuva
    - as vidraças escorrem, as árvores liquefazem-se... -
    escurecendo os teus cabelos,
    ou, se preferes, a minha boca neles
    carregada de ilhas, de nocturnos perfumes
    que ateiam lumes, ó minha idolatrada,
    na minh'alma inquieta um outro bater d'asas
    ou num jardim um leito de flores!...

    Ruy Cinatti
    (1915-1986)

sábado, 8 de novembro de 2014

CONVITE

Nesta fase em que só o amor me interessa
o amor de quem quer que seja
do que quer que seja
o amor de um pequeno objecto
o amor dos teus olhos
o amor da liberdade


o estar à janela amando o trajecto voado
das pombas na tarde calma

nesta fase em que o amor é a música de rádio
que atravessa os quintais
e a criança que corre para casa
com um pão debaixo do braço

nesta fase em que o amor é não ler os jornais

podes vir podes vir em qualquer caravela
ou numa nuvem ou a pé pelas ruas
- aqui está uma janela acolá voam pombas -

podes vir e sentar-te e falar com as pálpebras
pôr a mão sob o rosto e encher-te de luz

porque o amor meu amor é este equilíbrio
esta serenidade de coração e árvores


Egito GONÇALVES
(1920-2001)
CORPO DE ESPERANÇA.


Neste curto espaço entre nós e a morte
tão mal gastamos nossa longa despedida!

Tu, amor de quem não sei o nome
de onde não sei a sorte,
vais passar além deste poema que era teu
e assim, de morte construída,
teus passos vão enchendo a minha vida.

Outro nome será flor sobre os teus lábios,
e outros dedos tocarão a límpida frescura
dos teus ombros quase d'água
e saberão de cor o horizonte branco do teu corpo...

E assim iremos de olhos futuros,
tu, envelhecendo da minha ausência,
eu, a erguer-te na curva da esperança,
e outra mão desmanchar a tua trança
e hei-de beijar teu rosto onde não eras
e serão só o que há antes das horas mais tristes
e será tarde até saber que não existes.

Neste curto espaço entre nós e a morte,
onde me vais perdendo,
onde te vou buscando,
nosso amor se vai embora alimentando
de despedida;

não porque morra o tempo em teus braços,
mas a vida.

Vítor Matos e Sá
(1926-1975)
In "Horizonte dos Dias"
(1952)
TRISTEZA BRANDA.


Num dia destes de tristeza mansa
cansado já de tanto experimentar
eu que só ainda me não matei
talvez gostasse de me matar
Mas se porventura me desse mal
que ao menos fosse lícito voltar
Ver os amigos e os inimigos
e pelas ruas outra vez passear
Mas agora que cantei da tristeza
não observo já os mais leves traços
e a minha maneira de me matar
é deixar cair ambos os braços.



Ruy Belo
(1933-1978)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

DÁVIDA


Lá muito ao fundo
daquela estrada
uma luz cintila.
Será a vida?
A meio da noite
escura que existe
dentro de nós mesmos,
uma luz cintila.
Densa névoa envolve
minha sombra indecisa:
mas, pura, lá surge
a luz que cintila.
Tudo a vida nega
à sede antiga e ardente.
Só não se apaga nunca
a pequenina estrela.



Luís AMARO

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

MAS QUE SEI EU.


Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?


Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha

qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha


Ruy BELO
(1933-1978)
EXAUSTO


Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.


 Adélia Prado

terça-feira, 4 de novembro de 2014

NOITE ABERTA


Bem-vinda a noite para quem vai seguro
e com os olhos claros olha sereno o campo,
e com a vida limpa olha com paz o céu,
sua cidade e sua casa, sua família e sua obra.


Mas de quem vacilante anda e vê sombra, vê o duro
cenho do céu e vive o castigo de sua terra
e a malevolência de seus seres queridos,
inimiga é a noite e sua piedade acosso.

E ainda mais neste páramo da tão alta Rioja,
onde se abre com tal claridade que deslumbra,
tão próxima palpita que muito assombra, e muito
penetra na alma, fundamente a perturba.

Porque a noite sempre, como o fogo, revela,
melhora, pule o tempo, a oração e o soluço,
dá pureza ao pecado, limpidez à lembrança,
castigando e salvando toda uma vida inteira.

Bem-vinda a noite com seu belo perigo.


Claudio Rodríguez

(1934-1999)
Tradução: José Bento
ESPERA SEMPRE.


Entre os anos, a morte espera sempre,
qual uma árvore secreta que sombreia,
de súbito, a brancura de um carreiro,
e vamos caminhando e surpreende-nos.


Então, na orla da sua sombra,
um tremor misterioso nos detém:
olhamos para o alto, e nossos olhos
rebrilham, como a lua, estranhamente.

Como a lua, na noite penetramos,
sem saber onde vamos, e a morte
em nós vai crescendo, sem remédio,
com um doce terror de fria neve.

A carne decompõe-se na tristeza
de terra sem claridade que a sustém.
Ficam somente os olhos que interrogam
entre a noite total e nunca morrem.


José Luis Hidalgo
(1919-1947)
Tradução: José Bento

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

REGRESSO.


Quanto mais longe vou, mais perto fico
De ti, berço infeliz onde nasci.
Tudo o que tenho, o tenho aqui
Plantado.
O coração e os pés, e as horas que vivi,
Ainda não sei se livre ou condenado.

Miguel Torga
(1907-1995)
 SONETO


Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento...

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica e demora-se um momento.

Pára e fica na doida correria...
Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora...
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.

Ângelo de Lima

 (1872-1921)
O DESEJO ERA UM PONTO IMÓVEL


Os corpos ficavam do lado solitário do amor
como se um ao outro se negassem sem negar o desejo
e nessa negação um nó mais forte que eles mesmos
os unisse indefinidamente.

Que sabiam os olhos e as mãos,
que sabia a pele, que retinha um corpo
da respiração do outro, quem fazia nascer
aquela lenta luz imóvel
como única forma do desejo?

José Ángel Valente
(1929-2000)
Trad. de José Bento.



  CONSINTO

Devo morrer. E, contudo, nada
morre, porque nada
tem fé suficiente
para poder morrer.

Não morre o dia,
passa;
nem uma rosa,
apaga-se;
resvala o sol,
não morre.

Somente eu, que toquei
o sol, a rosa, o dia,
e acreditei,
sou capaz de morrer.

José Ángel Valente
(1929-2000)
Trad. de José Bento)
"O mal de quem apaga as estrelas é não se lembrar de que não é com candeias que se ilumina a vida."
 Miguel Torga.
(1907-1995)
   Diário (1948)

domingo, 2 de novembro de 2014

A FAMA É UMA ABELHA.


A fama é uma abelha.
Tem uma canção -
Tem um ferrão -
Ah, tem asa, também.

Emily Dickinson
(1830-1886)
In "Cem Poemas"
Trad. de Ana Luísa Amaral.

DEVE HAVER UM LUGAR...


Deve haver um lugar onde um braço
e outro braço sejam mais que dois braços,
um ardor de folhas mordidas pela chuva,
a manhã perto nem que seja de rastos.


Eugénio de Andrade
(1923-2005)
DEVE CHAMAR-SE TRISTEZA


Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa,
Saudade que não deseja.


Sim, tristeza — mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
De entre as mãos ricas de pó.


Fernando PESSOA
(1888-1935)
PRESERVAÇÃO.


Chama-se liberdade o bem que sentes,
Águia que pairas sobre as serranias;
Chamam-se tiranias
Os acenos que o mundo
Cá de baixo te faz;
Não desças do teu céu de solidão,
Pomba da verdadeira paz,
Imagem de nenhuma servidão!



Miguel Torga
(1907-1995)

terça-feira, 28 de outubro de 2014

OS DIAS


Dias como mendigos procurando
por uma terra vã espigas de nada:
que rosas de miséria colheremos?
que esmolas de luar no pó da estrada?


Fechando as mãos não colho mais que a imagem
da tua sombra, meu amor de trigo:
a bruma desses rios que em segredo
nascem em mim para morrer comigo.

Rios de luz concreta, proibida,
de que meus versos são a simples névoa;
ah, pudesse eu cantar; a vida levo-a
sem te ver bem a esta luz perdida.

Ó doce prisioneira do crepúsculo,
quando virá teu rosto de harmonia
como o fulgor de um astro debruçar-se
na terra dos meus pés, áspera e fria?


Carlos de Oliveira

(1921-1981)
In "Terra de Harmonia"

domingo, 26 de outubro de 2014

 PARA QUE TU ME OUÇAS


Para que tu me ouças
as minhas palavras
adelgaçam-se por vezes
como o rasto das gaivotas sobre a praia.


Colar, guizo ébrio
para as tuas mãos suaves como as uvas.

E vejo-as tão longe, as minhas palavras.
Mais que minhas são tuas.
Vão trepando pela minha velha dor como a hera.

Elas trepam assim pelas paredes húmidas.
Tu é que és a culpada deste jogo sangrento.
Elas vão a fugir do meu escuro refúgio.
Tu enches tudo, amada, enches tudo.

Antes de ti povoaram a solidão que ocupas,
e estão habituadas mais que tu à minha tristeza.

Agora quero que digam o que eu quero dizer-te
para que tu ouças como quero que me ouças.

O vento da angústia ainda costuma arrastá-las.
Furacões de sonhos ainda por vezes as derrubam.
Tu escutas outras vozes na minha voz dorida.
Pranto de velhas bocas, sangue de velhas súplicas.
Ama-me, companheira. Não me abandones. Segue-me.
Segue-me, companheira, nessa onda de angústia.

Mas vão-se tingindo com o teu amor as minhas palavras.
Ocupas tudo, amada, ocupas tudo.

Vou fazendo de todas um colar infinito
para as tuas brancas mãos, suaves como as uvas.


Pablo Neruda
(1904-1973)
In "20 Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada"
Tradução: Fernando Assis Pacheco

QUERO DESAPARECER MAS NÃO MORRER.


Quero desaparecer mas não morrer
Quero não ser e perdurar
e saber que perduro
Bato às portas da morte
e retiro-me
Chamo a vida e fujo envergonhado
Quero ser toda a minha alma e não posso
quero ser todo o meu corpo e não o alcanço.



Vicente Huidobro
(1893-1943)
Tradução: Ricardo Marques

sábado, 25 de outubro de 2014

ESTA GENTE.


Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra esvcravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gesto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo


Sophia Mello Breyner Adresen
(1919-2004)
O SUOR.


No mar encontra a água seu paraíso ansiado
e o suor seu horizonte, seu fragor e plumagem.
O suor é um tronco transbordante e salgado,
uma onda selvagem.


Chega a idade do mundo mais remota
para oferecer à terra a fronde sacudida,
a sustentar a sede e o sal gota a gota,
a iluminar a vida.

Filho do movimento, primo do sol, irmão
da lágrima, deixa vagueando pelas eiras,
de abril a outubro, do inverno ao verão,
douradas trepadeiras.

Quando os camponeses vão de madrugada
empurrando o arado e fugindo ao repouso,
vestem uma blusa silenciosa e dourada
de suor silencioso.

Vestimenta de ouro dos trabalhadores,
que tanto adorna as mãos como as pupilas,
pela atmosfera espalha seus fecundos olores
uma chuva de axilas.

O sabor que há na terra melhora-se e madura:
do pranto laborioso e rescendente cai o mosto,
maná dos homens, maná da agricultura,
bebida do meu rosto.

Vós que nunca suastes, e que andais elegantes
num ócio sem braços, sem música, sem poros,
não usareis a coroa dos poros gotejantes
nem o poder dos touros.

Vivereis malcheirosos, morrereis apagados:
a formosura habita nas articulações
dos corpos que movem seus membros adestrados
como constelações.

Entregai ao trabalho, companheiros, a fronte:
que o suor, com sua espada de gostosos cristais,
com seus lentos dilúvios, vos fará transparentes,
venturosos, iguais.

Miguel Hernández
(1910-1942)
Tradução: José Bento
O POETA OPERÁRIO


Gritam ao poeta da revolução:
«Seria bom ver-te a trabalhar num torno.
Versos o que são?
Simples adorno!
Trabalhar não é contigo, se calhar.»
Mas, para nós,
trabalhar
é a ocupação favorita.
Eu também sou uma fábrica
e lá por não ter chaminés,
talvez
seja muito mais difícil.
Bem sei
que não gostas de frases vãs.
Cortar carvalhos, isso sim, é trabalho.
E nós
não seremos também derrubadores de árvores?
As cabeças das pessoas tratamos como carvalhos.
Certamente
pescar é uma coisa respeitável,
lançar a rede
e apanhar esturjões!
Mas o trabalho do poeta é mais respeitável:
não pescamos peixe mas sim gente viva.
Trabalhar na forja é trabalho violento,
o ferro fundido bater e temperar.
Mas quem é
que nos pode acusar de mandriar?
Com a goiva da linguagem polimos as mentes.
Quem vale mais - o poeta
ou o técnico
que conduz as pessoas para os bens materiais?
Ambos.
Os corações são iguais aos motores,
a alma igual a um motor complicado.
Somos iguais,
camaradas na massa trabalhadora,
Proletários do corpo e da alma.
Só juntos
remoçaremos o universo
e com marchas poderemos vencer.
Das tempestades verbais defenderemos o povo.
Ao trabalho!
O trabalho é vivo e novo.


Os oradores fúteis, sem dó
ao moinho!
À fresadora!
Que a água dos discursos dê a volta à mó!

Vladimir Maiakovski
(1893-1930)
(Trad. de Manuel de Seabra)

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A CORTIÇA


É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal
há gente que arrefece que arrefece
de sol a sol
de mal a mal.
É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal.

 
Passando o Tejo para além da ponte
que não nos liga a nada
só se vê horizonte
horizonte
e tristeza queimada.

É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
uma fome tão grande que trespassa
o ventre de quem a leva.
É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
mal finda a noite escurece logo o dia
e uma espessa energia
feita de pus no sangue
de lama na barriga
nasce da terra exangue e inimiga

É o vapor da sede é o calor do medo.
a cama do ganhão
a casca do sobredo.
É o suor com pão que se come em segredo.

É preciso dizer-se o que nos dão
no meu país de boa lavra
aonde um homem morre como um cão
à míngua de palavra:

Por cada tronco desnudado um lado
do nosso orgulho ferido
e por cada sobreiro despojado
um homem esfomeado e mal parido.

Ah não, filhos da mãe!
Ah não, filhos da terra!
Os enjeitados também vão à guerra.

José Carlos Ary dos Santos
(1937-1984)
“Insofrimento in Sofrimento”,
(1969)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

PEQUENOS DEUSES CASEIROS


Pequenos deuses caseiros
que brincais aos temporais,
passam-se os dias, semanas,
os meses e os anos
e vós jogais, jogais
o jogo dos tiranos.


Pequenos deuses caseiros
cantai cantigas macias
tomai vossa morfina,
perdulai vossos dinheiros
derramai a vossa raiva
gozai vossas tiranias,
pequenos deuses caseiros
.
Erguei vossos castelos
elegei vossos senhores
espancai vossos criados,
violai vossas criadas,
e bebei,
o vinho dos traidores
servido em taças roubadas

Dormi em colchões de pena,
dançai dias inteiros,
comprai os que se vendem,
alteai vossas janelas,
e trancai as vossas portas,
pequenos deuses caseiros,
e reforçai, reforçai as sentinelas.


Sidónio Muralha
(1920-1982)
SUBITAMENTE FICAS NA PAISAGEM.


Subitamente ficas na paisagem
E olho os teus olhos quentes e antigos...
Tens sol e sede, tens brincos de cerejas
E a pele cheirosa e fresca como a água.

Subitamente sinto aquela sede
Dos sobreiros gretados, das estevas...
Mas perto, fonte ardente, dás frescura
À paisagem dormente e abrasada!


Cristovam Pavia
(1933-1968)
In "35 Poemas"
(1982)

terça-feira, 21 de outubro de 2014

SONETO PURO.


Fique o amor onde está; seu movimento
nas equações marítimas se inspire
para que, feito o mar, não se retire
de verdes áreas de seu vão lamento.


Seja o amor como a vaga ao vago intento
de ser colhida em mãos; nela se mire
e, fiel ao seu fulcro, não admire
as enganosas rotações do vento.

Como o centro de tudo, não se afaste
da razão de si mesmo, e se contente
em luzir para o lume que o ensolara.

Seja o amor como o tempo - não se gaste
e, se gasto, renasça, noite clara
que acolhe a treva, e é clara novamente.


Lêdo Ivo
(1924-2012)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

 HÁ UMA ROSEIRA DE SOMBRA QUE PERFUMA.


Há uma roseira de sombra que perfuma
somente o sonho, e que jamais é
sonho ela própria, mas sombra realidade.
Não faz sonhar acordado nem sonhar
em sonhos, e seus ramos têm rosas
de condensada sombra em que um orvalho
vesperal acha abrigo e tanta vida
concede ao fundo de seu aroma.
Cobre a roseira, com umbrosos ramos
de sombra, as moradas que constrói
ou habita o sonho, e os jardins
por onde passeia a nostalgia
e o desejo, os montes e os vales
- e é só roseira cujas folhas contasses -
abertos ou fechados ao teu sonho.
E o aroma entre sombra de suas rosas
aroma sempre a sombra dessas pétalas.

Ángel Crespo
(1926-1995)
 Tradução: José Bento




 UM HOMEM ENTRE OS RAMOS.


Um homem subiu a uma árvore para colher um fruto.

O fruto estava em cima, muito em cima, no alto.

O homem não chegava, o homem
não chegou.

                 Desde então,
há um homem na árvore,
um homem entre os ramos.

Ninguém sabe o que busca.

Lorenzo Gomis
 (1924-2005)
Tradução: José Bento
 ESTOU PERDIDO


Profeta de meus fins não duvidava
do mundo que pintou minha fantasia
nos enormes desertos invisíveis.

Reconcentrado e penetrante, só,
mudo, predestinado, esclarecido,
meu profundo isolamento e fundo centro,
meu sonho errante e solidão submersa,
dilatavam-se pelo inexistente,
até que vacilei, até que a dúvida
por dentro escureceu minha cegueira.

Um tacto escuro entre o meu ser e o mundo,
entre as duas trevas, definia
uma ignorada juventude ardente.
Encontra-me na noite. Estou perdido.

Manuel Altolaguirre
(1905-1959) Tradução: José Bento

SEIS POEMAS CONFIADOS À MEMÓRIA DE NORA MITRANI - VI


A que vens, solidão, com teu relógio
de ponteiros de visgo, de bater de feltro?
Ombro nenhum ao meu ombro encostado,
a que vens, ó camarada solidão?


Companheira, amiga, até amante,
até ausente, ó solidão, te amei,
como se ama o frio até o frio dar
a chama que tu dás, ó solidão!

A que vens, enfermeira? Não sabes que estou morto,
que se digo o meu sim ou o meu não
é só para que os outros me julguem mais um outro,
é só para que um morto não tire o sono aos outros?

A que vens, solidão? Vai antes possuir
os que amam sem esperança e sem saber esperam,
dá-lhes o teu conforto, encosta-lhes ao ombro
o teu ombro nenhum, ó solidão!

Alexandre O'Neill
(1924-1986)
In "Poemas com Endereço"
(1962)
O JARDIM NEGRO.


É noite. A imensa
palavra é silêncio...
Há no arvoredo
um grave mistério...
Dormem os rumores,
a cor já morreu.
A fonte está louca,
mudo está o eco,



Recordas-te?... Em vão
quisemos sabê-lo...
Que estranho! Que escuro!
Crispa-me inda os nervos
passando nesta hora
somente a lembrança,
como se me houvesse
roçado um momento
a asa peluda
de horrível morcego!...
Vem, amada! Inclina
tua fronte em meu peito;
cerremos os olhos;
não oiçamos, silêncio...
Como dois meninos
que tremem de medo!


A lua aparece,
as nuvens rompendo...
A lua e a estátua
dão um grande beijo.


Manuel Machado
(1874-1947)
Trad. de José Bento

domingo, 19 de outubro de 2014

HINO DE DEPUTADO.


Chora, meu filho, chora.
Ai, quem não chora não mama,
Quem não mama fica fraco,
Fica sem força pra vida,
A vida é luta renhida,
Não é sopa, é um buraco.
Se eu não tivesse chorado
Nunca teria mamado,
Não estava agora cantando,
Não teria um automóvel,
Estaria caceteado,
Assinando promissória,
Quem sabe vendendo imóvel
A prestação ou sem ela,
Ou esperando algum tigre
Que talvez desse amanhã,
Ou dando um tiro no ouvido,
Ou sem olho, sem ouvido,
Sem perna, braço, nariz.



Chora, meu filho, chora,
Ante-ontem, ontem, hoje,
Depois de amanhã, amanhã.
Não dorme, filho, não dorme,
Se você toca a dormir
Outro passa na tua frente
Carrega com a mamadeira.
Abre o olho bem aberto,
Abre a boca bem aberta,
Chore até não poder mais.


Murilo Mendes
(1901-1975)