segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Eugénio de Andrade


NÃO É VERDADE

Cai, como antigamente, das estrelas
um frio que se espalha na cidade.
Não é noite nem dia, é o tempo ardente
da memória das coisas sem idade.

O que sonhei cabe nas tuas mãos
gastas a tecer melancolia:
um país crescendo em liberdade,
entre medas de trigo e alegria.

Porém a morte passeia nos quartos,
ronda as esquinas, entra nos navios,
o seu olhar é verde, o seu vestido branco,
cheiram a cinza os seus dedos frios.

Entre um céu sem cor e montes de carvão
o ardor das estações cai apodrecido;
os mastros e as casas escorrem sombra,
só o sangue brilha endurecido.

Não é verdade tanta loja de perfumes,
não é verdade tanta rosa decepada,
tanta ponte de fumo, tanta roupa escura,
tanto relógio, tanta pomba assassinada.

Não quero para mim tanto veneno,
tanta madrugada varrida pelo gelo,
nem olhos pintados onde morre o dia,
nem beijos de lágrimas no meu cabelo.

Amanhece.
Um galo risca o silêncio
desenhando o teu rosto nos telhados.
Eu falo do jardim onde começa
um dia claro de amantes enlaçados.

Eugénio de Andrade.

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