In Memoriam
Que terra lhe seja pesada.
Que lhe apodreça apodreça o corpo e os olhos fiquem vivos,
Se lhe soltem os dentes e a fome fique intacta
E a alma, se a tiver, que lha fustigue o vento
E arrase com ela a memória gravada
Na lembrança demente dos que o choram.
Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,
Cheio de ossos e uivos
E garfos aguçados
E que reparta o medo com o primeiro intruso
E o vento se insinue pelas portas fechadas
E rasteje no quarto
E suba na cama
E lhe entre no olhar como estiletes de aço,
Lhe penetre os ouvidos como agulhas de som,
Lhe emaranhe os cabelos como um nó de soluços,
Lhe desfigure o rosto como um ácido em chama.
Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,
Que a mulher que foi dele oiça o vento na cama,
Que o nome que era seu persigam os ecos,
O gritem no deserto as gargantas com sede,
O murmurem no escuros os mendigos com frio,
O clamem na cidade as crianças com fome,
O soluce o amante de súbito impotente,
O maldigam no exílio as almas sem descanso.
Que o nome que era seu seja a bandeira negra,
A pálpebra doente,
O vómito de sangue.
Que o gesto que era seu o imitem as mães
Que se torcem de dor quando abortam nas trevas,
O desenhem a lume os braços amputados,
O perpetue o esgar dos jovens mutilados,
O dance o condenado que morre na fogueira.
Que o gesto que era seu seja o punhal do louco,
A arma do ladrão,
A marca do vencido.
Que o sangue que era seu o farejem os cães
Nas veias dos seus filhos.
Que o sangue que era seu se lhes veja nas mãos,
E lhes aperte os pulsos como algemas de lodo,
Lhes carregue o olhar como um sopro de infância,
Lhes assinale a testa como um escarro de fogo,
Lhes atormente os passos como um peso na lama.
Que o sangue que era seu seja o rictus da tara,
A máscara de sal,
A vingança do pobre.
E que o Exterminador, no seu trono de enxofre,
O faça tilintar os guizos da tortura
Até que o mundo o esqueça
E mais ninguém o chore.
Ary dos Santos, 1963
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