segunda-feira, 1 de junho de 2009

"Sobre as Minhas Mortes"

À medida que ia alinhando estas ideias,fui-me dando conta de que,para além da palavra morte,uma outra saltava como contraponto impertinente no cenário um pouco sombrio que ia esboçando:a palavra esperança.A dignidade do homem projecta-se no porvir e é por isso alimentada por esse sentimento inefável que os doutores da Igreja elevaram à categoria de virtude teologal.
Sempre gostei de pensar a doença como uma viagem,por vezes longa,atribulada,imprevisível na sua rota,mas sempre assoprada pela esperança.O papel do médico é fazer o que a deusa Atena fez a Ulisses,ou seja, assegurar que quem cuidamos chegue a casa são e salvo.a morte é o naufrágio, a derrota que nos custa,por vezes cegos de orgulho,a aceitar.Tantas vezes me vem à cabeça uma das lendas da nossa história que mais me impressionaram em menino,no tempo em que a história nos era ensinada como uma gesta gloriosa salpicada por um punhado de percalços. Refiro-me ao episódio de Duarte de Almeida na batalha de Toro,o bravo porta-estandarte que,decepados ambos os braços,segurou a bandeira com a boca até à cutilada final.
E a esperança não é apenas uma virtuosa pulsão do doente que tratamos;é muitas vezes um sentimento colectivo e solidário, uma espécie de incenso que perfuma as situações mais insólitas. Se a esperança é de facto a última a morrer, não podemos aceitar que seja assassinada pelo médico.Recordo aqui um tio, que me era particularmente querido,que acompanhei a fazer uma radiografia ao tórax por uma tosse e uma dor persistentes.A imagem revelou uma neoplasia do pulmão inoperável.Ele olhou para mim e perguntou-me em pânico:«-Estou condenado, não estou?»Eu respondi-lhe, porque não fui capaz de me esquivar:«-Provavelmente está,mas vamos dar luta!...»
Para mim, um dos aspectos mais negligenciados da bioética contemporânea é o problema da esperança, pois o modo como se cuida da esperança é uma das tarefas mais sensíveis no tempo de morrer,um equilíbrio de acrobata entre a verdade e a mentira,por vezes piedosa ,por vezes cobarde.É bom recordar que a medicina, ou melhor ainda, o cuidar de alguém,exige, além de saber e sensibilidade ,uma virtude surpreendentemente esquecida que é a coragem moral.

(Do livro "Sobre a Mão e Outros Ensaios" de João Lobo Antunes Professor Catedrático de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa).

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