segunda-feira, 28 de setembro de 2015


OUTONO

O outono vem vindo, chegam melancolias,
cavam fundo no corpo,
instalam-se nas fendas; às vezes
por aí ficam com a chuva
apodrecendo;
ou então deixam marcas, as putas,
difíceis de apagar, de tão negras,
duras.
 
Eugénio de Andrade
(1923-2005)

terça-feira, 22 de setembro de 2015

ALMA DE CÔRNO
Alma de côrno – isto é, dura como isso;
Cara que nem servia para rabo;
Idéas e intenções taes que o diabo
As recusou a ter a seu serviço –
 
Ó lama feita vida! ó trampa em viço!
Se é p’ra ti todo o insulto cheira a gabo
– Ó do Hindustão da sordidez nababo!
Universal e essencial enguiço!
 
De ti se suja a imaginação
Ao querer descrever-te em verso. Tu
Fazes dôr de barriga á inspiração.
 
Quér faças bem ou mal, hyper-sabujo,
Tu fazes sempre mal. És como um cú,
Que ainda que esteja limpo é sempre sujo.
 
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Nota: Soneto atribuído a F.P. e escrito em 1910.

 OBSESSÃO

Quero a Noite completa, desumana.
A Noite anterior. A Noite virgem
de mim. A Noite pura. Quero a Noite,
aonde é impossível encontrar-te.

Que não há rio nem rua nem montanha
nem floresta nem prado nem jardim
nem pensamento algum nem livro algum
em que não me apareças sorridente.

Sebastião da Gama
(1924-1952)
In "Pelo Sonho é que Vamos"

segunda-feira, 21 de setembro de 2015


 OS CAMINHOS DESTA TARDE

Os caminhos desta tarde
fazem-se um, com a noite.
Por ele irei eu a ti,
amor que tanto te escondes.

Por ele irei eu a ti,
como vai a luz dos montes,
como a viração do mar,
como o aroma das flores.

Juan Ramón Jimenez
(1881-1956)
Trad. de José Bento

 ANTES...

Antes que o vento
venha e, hostil, desfaça
o que em mim há de puro ainda
-- gostava de cantar.

Antes que a noite
desça e, subtil, perturbe
mais o meu ser com seu mistério denso
-- gostava de cantar.

Antes que a vida
me arraste, pise e esmague
na torva confusão de ódios e lutas
-- gostava de cantar.

Antes que o mundo
me estreite mais no seu abraço imundo
(tão raras vezes belo)
-- gostava de cantar.

Luís Amaro
( N : 1923 )
AUSÊNCIA

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO


Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)


domingo, 20 de setembro de 2015


 A FLOR E A NÁUSEA


  Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
Ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.



Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

sábado, 19 de setembro de 2015

 
 COMUNHÃO
 
 
Falo do sacramento do silêncio
Da muda eucaristia
Da vida,
Quando no mundo não havia ainda
Palavras
E ninguém profanava
A terra que pisava.

Falo da neve, sem qualquer imagem
A sujar-lhe a brancura.
E relembro a pureza
Do lobo a passeá-la sem ver, 
À procura
da presa
Que há-de comer.

Falo do mar sem ninfas
E sem Camões.
Das estações
Do ano
Conhecidas apenas
Pela fúria do vento,
Pelo cheiro das flores,
Pelo gosto dos frutos
E pelo sono das folhas fatigadas
No alto travesseiro das ramadas.

Falo de tudo que não tinha nome,
E tem nome,
E queixo-me de ti, humana criatura,
Que dizes madrugada
De janela fechada,
E acreditas
Que o som da tua voz enclausurada
Traz o renovo de que necessitas.
 
Miguel Torga
(1907-1995)

 VIESTE TARDE...

Vieste tarde, meu amor! Começa
em mim caindo a neve devagar,
morre o sol, o Outono cai depressa
e o Inverno, finalmente, vai chegar,

E se hoje andamos juntos, na promessa
de caminharmos toda a vida a par,
daqui a pouco, o teu amor tem pressa
e o meu, daqui a pouco, há-de cansar.

Dentro em breve, por trás das velhas portas,
dando um ao outro só palavras mortas,
que rolam mudas pelas nossas vidas,

Ouviremos, nas noites desoladas,
-Tu, a canção das vozes desejadas,
eu, o chorar das vozes esquecidas.

Nunes Claro
(1878-1949)

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

QUISERA ESTAR SÓ NO SUL

Talvez meus lentos olhos não vejam mais o sul
De ligeiras paisagens adormecidas no ar,
Com corpos à sombra de ramos como flores
Ou fugindo num galope de cavalos furiosos.

O sul é um deserto que chora enquanto canta,
E não se extingue essa voz como pássaro morto;
Para o mar encaminha os desejos amargos
Abrindo um eco débil que vive lentamente.

No sul tão distante quero estar confundido.
A chuva ali não é mais que rosa entreaberta.
A própria névoa ri: um riso branco no vento.
Obscuridade ou luz, ali são belezas iguais.

Luis Cernuda
(1902-1963)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

terça-feira, 15 de setembro de 2015


MONTES, E A PAZ QUE HÁ NELES, POIS SÃO LONGE...

Montes, e a paz que há neles, pois são longe...
Paisagens, isto é, ninguém...
Tenho a alma feita para ser de um monge
Mas não me sinto bem.

Se eu fosse outro, fora outro. Assim
Aceito o que me dão,
Como quem espreita para um jardim
Onde os outros estão.

Que outros? Não sei. Há no sossego incerto
Uma paz que não há,
E eu fito sem o ler o livro aberto
Que nunca mo dirá...

Fernando Pessoa
(1888-1935)

SEM AMOR

Viver sem amor
É como não ter para onde ir
Em nenhum lugar
Encontrar casa ou mundo

É contemplar o não-acontecer
O lugar onde tudo já não é
Onde tudo se transforma
No recinto
De onde tudo se mudou

Sem amor andamos errantes
De nós mesmos desconhecidos

Descobrimos que nunca se tem ninguém
Além de nós próprios
E nem isso se tem

Ana Hatherly
(1929-2015)

segunda-feira, 14 de setembro de 2015


 SOLIDÃO...

não creio como eles creem,
não vivo como eles vivem,
não amo como eles amam…
morrerei
como eles morrem.

Marguerit Yourcenar
(1903-1987)
 In "Fogos"
Trad. de Maria da Graça Morais Sarmento.


TRAÇADO URBANÍSTICO

Tal como qualquer cidade
também nós escondemos
turvos itinerários, edifícios arruinados,
escuras vielas de rancor ou desejo,
arrabaldes de medo ou parques para o amor,
cantos em penumbra onde ocultar segredos,
praças que nunca visitamos
e aborrecidos museus onde expor lembranças
que não interessam a ninguém.
A nós
também nos habitam cidadãos terríveis:
funcionários do tédio,
mensageiros de moto levando para muito longe
o pequeno embrulho — primoroso e com laço —
dos remorsos.
Viajantes que passam por nós
com as suas malas a caminho de outros corpos
e sobretudo
transeuntes alheios à nossa própria vontade,
incivis e teimosos;
têm nomes ridículos
tal como os sentimentos amor, rancor ou medo
e especulam — como vulgares comerciantes —
com o preço
por metro quadrado do nosso coração.

Sílvia Ugidos
(N:1972)
Trad. de Joaquim Manuel Magalhães
 In "Poesia Espanhola, Anos 90"



 NÃO OLHES.

Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.

Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida.



Harold Pinter
(1930-2008)
Trad. de Jorge Silva Melo e Francisco Frazão.


AMO-TE SEM SABER COMO.

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou seta de cravos que propagam o fogo:
amo-te como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Amo-te como a planta que não floriu e tem
dentro de si, escondida, a luz das flores,
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo
o denso aroma que subiu da terra.

Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde,
amo-te directamente sem problemas nem orgulho:
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,

a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,
tão perto que a tua mão no meu peito é minha,
tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono.

Pablo Neruda
(1919-1973)
 In "Cem Sonetos de Amor"

 
 PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO
 
 
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento



Sophia de Mello Breyner Andresen 
 (1919-2004) 

 NADA DO QUE SOU ME INTERESSA.


Nada que sou me interessa.
Se existe em meu coração
Qualquer coisa que tem pressa
Terá pressa em vão.

Nada que sou me pertence.
Se existo em quem me conheço
Qualquer coisa que me vence
Depressa a esqueço.

Nada que sou eu serei.
Sonho, e só existe em meu ser,
Um sonho do que terei.
Só que o não hei-de ter.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

SE DESTE OUTONO

Se deste outono uma folha,
apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,
e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria.

 
Eugénio de Andrade
(1923-2005)

sábado, 12 de setembro de 2015

Esta Gente

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)

quinta-feira, 10 de setembro de 2015


 AS COISAS QUE ERREI NA VIDA

As coisas que errei na vida
São as que acharei na morte,
Porque a vida é dividida
Entre quem sou e a sorte.

As coisas que a Sorte deu
Levou-as ela consigo,
Mas as coisas que sou eu
Guardei-as todas comigo.

E por isso os erros meus,
Sendo a má sorte que tive,
Terei que os buscar nos céus
Quando a morte tire os véus
À inconsciência em que estive.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

PRESCRIÇÃO

Deixa passar as horas
Sem as contar.
Alheia a cada instante,
Vive, a viver a vida, a eternidade.
Feliz é quem não sabe
A própria idade
E em nenhum ano pode envelhecer.
Dura encantada na realidade.
Negar o tempo é o modo de o vencer.


Miguel Torga
(1907-1995)

quarta-feira, 9 de setembro de 2015


 QUANDO ESTOU SÓ RECONHEÇO


Quando estou só reconheço
Se por momentos me esqueço
Que existo entre outros que são
Como eu sós, salvo que estão
Alheados desde o começo.

E se sinto quanto estou
Verdadeiramente só,
Sinto-me livre mas triste.
Vou livre para onde vou,
Mas onde vou nada existe.

Creio contudo que a vida
Devidamente entendida
É toda assim, toda assim.
Por isso passo por mim
Como por coisa esquecida.

Fernando Pessoa
(1888-1935)
 SE ESTOU SÓ, QUERO NÃO ESTAR


Se estou só, quero não estar,
Se não estou, quero estar só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.

Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.

A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada


Fernando Pessoa
(1888-1935)
  QUE TRISTEZA TÃO INÚTIL
 
 
Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sequer são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.
Pela noite adiante, com a morte na algibeira,
cada homem procura um rio para dormir,
e com os pés na lua ou num grão de areia
enrola-se no sono que lhe quer fugir.
Cada sonho morre às mãos doutro sonho.
Dez-reis de amor foram gastos a esperar.
O céu que nos promete um anjo bêbado
é um colchão sujo num quinto andar.
 
 
Eugénio de Andrade
(1923-2005)

 DA VEZ PRIMEIRA QUE ME ASSASSINARAM


Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

Hoje, dos meus cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela amarelada...
Como único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca,
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trémula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!



Mário Quintana
(1906-1994)

terça-feira, 8 de setembro de 2015


AO LONGE, AO LUAR

Ao longe, ao luar,
No rio uma vela
Serena a passar,
Que é que me revela?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.

Fernando Pessoa
(1888-1935)
     
    ABDICAÇÃO 
     
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho... eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.


Fernando Pessoa
(1888-1935)


 QUE ANDO A ESCONDER DE MIM



Que ando a esconder de mim
com estes gritos de unhas contra a injustiça do mundo
que só me deixam no coração
tédios de céu afogado?

Que ando a esconder de mim
com esta raiva do amor pelos outros,
a querer arrancar lágrimas de tudo
para as colar nos olhos vazios?

Que ando a esconder de mim
nesta agonia de escurecer a alma
para a confundir com a noite
– bandeira negra de todos os humilhados?

Que ando a esconder de mim
sem coragem de mostrar aos homens
a minha pobre dor,
tão débil e exígua,
que em vão oculto atrás de toda a dor humana
para a tornar maior?




José Gomes Ferreira
(1900-1985)

 VIDA

Do que a vida é capaz!
A força dum alento verdadeiro!
O que um dedal de seiva faz
A rasgar o seu negro cativeiro!

Ser!
Parece uma renúncia que ali vai,
– E é um carvalho a nascer
Da bolota que cai!

Miguel Torga
(1907-1995)

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

 O CEGO E A GUITARRA



O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.

Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.

Depois de eu cessar, o ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.

Cheguei à janela
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.

Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.

Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.

 Fernando Pessoa
(1888-1935)
 O ERRO DE QUERER SER IGUAL A ALGUÉM.


Aqui, neste misérrimo desterro
Onde nem desterrado estou, habito,
Fiel, sem que queira, àquele antigo erro
Pelo qual sou proscrito.
O erro de querer ser igual a alguém
Feliz, em suma — quanto a sorte deu
A cada coração o único bem
De ele poder ser seu.


Ricardo Reis / Fernando Pessoa
(1888-1935)

Sou Eu, EU MESMO, TAL COMO RESULTEI DE TUDO.


 Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio! ...

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa
(1888-1935)


INEVITABILIDADE


O apelo do mar não tem saída,
como na terra o atalho,
o beco mesmo quando, a sobreolho,
a porta se fecha
e uma janela se entreabre
convidativa.

O apelo do mar é como as estrelas
que cintilam a todo o horizonte;
às vezes ecoa num búzio
ou num baixio
denunciado pela crista das ondas
em redemoinho.

O apelo do mar, mesmo rarefeito,
arripia-se nos teus cabelos.
Convida-te a não mais voltar.
Abre-te todos os caminhos
do vasto oceano eleito
vida ameaçada, o seio aberto
pulsando anseio que não se recusa
por muito que o tentes evitar.


Ruy Cinatti
(1915-1986)

domingo, 6 de setembro de 2015

REGRESSO DE PARTE ALGUMA
 
Regresso de parte alguma
Rico mais do que partira,
Pois trago coisa nenhuma
Sem desespero e sem ira.

Agora vivo contente
No meu exílio sereno;
Tomei tamanho de gente
E não me dói ser pequeno.

Pedra parada na calma
Tranquilidade dos charcos,
Deixem dormir minha alma,
Como apodrecem os barcos


Reinaldo Ferreira
(1922-1959)

 CASAS CAIADAS


«Por entre casas caiadas
de luar e de silêncio,
paira no meio da estrada
a poeira de outros tempos...

Por entre casas caiadas,
mas com desgraça por dentro
(ó varandas enfeitadas
com trepadeiras de vento!),

algumas desmanteladas,
de apodrecidas empenas
(todavia nos telhados
antenas e cataventos...),

por entre casas caiadas,
por entre casas (Silêncio,
que ronda o medo na estrada
em automóveis cinzentos!)

há jorros de luz salgada,
há torrentes de veneno...

E dentro daquelas casas
quando foi que morremos?»

David Mourão-Ferreira
(1927-1996)
In "Obra Poética"

sábado, 5 de setembro de 2015

SOU APENAS UM SINAL


Sou apenas um sinal
sou apenas um caminho

(Quantas vezes percorrido
até chegar ao destino?)


Ivette Centeno
(N: 1940)

CANTAR


Tão longo caminho
E todas as portas
Tão longo o caminho
Sua sombra errante
Sob o sol a pino
A água de exílio
Por estradas brancas
Quanto Passo andado
País ocupado
Num quarto fechado


As portas se fecham
Fecham-se janelas
Os gestos se escondem
Ninguém lhe responde
Solidão vindima
E não querem vê-lo
Encontra silêncio
Que em sombra tornados
Naquela cidade


Quanto passo andado
Encontrou fechadas
Como vai sozinho
Desenha as paredes
Sob as luas verdes
É brilhante e fria
Ou por negras ruas
Por amor da terra
Onde o medo impera


Os olhos se fecham
As bocas se calam
Quando ele pergunta
Só insultos colhe
O rosto lhe viram
Seu longo combate
Silêncio daqueles
Em monstros se tornam
Tão poucos os homens


Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)


TU ÉS A ESPERANÇA, A MADRUGADA.



Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de Setembro,
quando a luz é perfeita e mais dourada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundo, como quem bebe a madrugada.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "As Mãos e os Frutos"


sexta-feira, 4 de setembro de 2015


 EU QUERIA MAIS ALTAS AS ESTRELAS


Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida:
- Quanto mais funda e lúgubre a descida,
Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!



Florbela Espanca
(1894-1930)

ALEGREMENTE, NO AUTOCARRO

 

As crianças tristes passam alegres no autocarro,
cantando em altos berros e intrometendo-se com quem passa.
Vão todas ao Posto vacinar-se de graça.
A vacina é triste, as crianças são tristes,
mas passam todas, alegremente, no autocarro.

Os soldados tristes passam alegres no autocarro,
entoando as canções que cantavam nas romarias da sua terra.
Vão para o cais do embarque tomar o paquete que os levará para a guerra.
A guerra é triste, os soldados são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Os operários tristes passam alegremente no autocarro,
cantando e gesticulando com a garrafa de vinho na mão.
Vão todos para a fábrica vigiar as máquinas e carregar num botão.
A fábrica é triste, os operários são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Os camponeses tristes passam alegres no autocarro,
cantando e dando vivas ao longo do percurso.
Vão todos à cidade, de fato novo, aplaudir o discurso.
O discurso é triste, os camponeses são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Alegremente, no autocarro.



António Gedeão
(1906-1997)

 CIDADE


Na cidade, quem olha para o céu?
É preciso que passe o avião...
Quem me dera o silêncio, a solidão,
Onde pudesse, alguma vez, ser eu!

Na cidade nasci; nela nasceu
A minha dispersiva inquietação;
E o meu tumultuoso coração
Tem o pulsar caótico do seu.

Ah! Quem me dera, em vez de gasolina,
O cheiro da terra húmida, a resina,
A flores do campo, a leite, a maresia!

Em vez da fria luz que me alumia,
O luar, sobre o mar, em tremulina...
—Divina mão compondo uma poesia.


Carlos Queirós
(1907-1949)


 IMAGENS QUE PASSAIS PELA RETINA


Imagens que passais pela retina
dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
por uma fonte para nunca mais!....

Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
- Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
- O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
- Estranha sombra e movimentos vãos.


Camilo Pessanha
(1867-1926)

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

CONDIÇÃO


A onda vem, lambe o areal e parte;
A mágoa vem, morde o meu corpo e fica;
A mágoa ateima, ateima, e quer ser arte,
A onda envergonhou-se de ser bica.

E nem a areia seca se revolta,
Nem o meu corpo pode protestar;
A onda anda no mar, à solta,
E a mágoa já tem casa onde morar.

Forças sem coração e sem governo
Jogam no pano que lhes apetece;
Pobre de quem padece
O seu capricho eterno...


Miguel Torga
(1907-1995)
 SAUDADES


Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?...
Se o sonho foi tão alto e forte
Que pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais decididamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais saudade andasse presa a mim!

 Florbela Espanca
(1894-1930)
 A CASA VAZIA


Abre a porta e acende a luz.
____________________É muito tarde
e sabe que ninguém o espera em sua casa.
______________________________Tudo
continua no seu lugar e o silêncio pesa
sobre as coisas mudas que o ignoram.
Vai de cá para lá, pelo corredor, pelos aposentos
vazios, e não sabe o que fazer, porquê esta noite
está tudo tão longe.
______________Pega num livro.
Fica a ler uns momentos.
__________________Depois, ouve
enfadado uma música.
________________Entretanto, a madrugada
avança lentamente.
______________Talvez alguma rosa
dessa jarra que está sobre a mesa
deixe cair suas pétalas murchas.

Eloy Sánchez Rosillo
(N:24/6/1948)
Trad. de José Bento



 HOMENS QUE SÃO COMO LUGARES MAL SITUADOS

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
 
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
 
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
 
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que São sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar 

Daniel Faria
(1971-1999)


 GEÓRGICA


Se gostas de maçãs, colhe maçãs
Do teu próprio pomar.
Guarda republicana há sempre em toda a parte
Onde não temos nada,
E a força é cega por definição.
Ora no teu pomar
Podes serenamente
Gozar o transitório paraíso.
Na pequenina haste
Que um dia tu plantaste
Nasceram frutos túmidos e doces
Que são teus.
Colhe, pois, esses frutos.
Não faças como o Adão e como a Eva, uns brutos
Que comeram maçãs, mas do pomar de Deus.


Miguel Torga
(1907-1995)

terça-feira, 1 de setembro de 2015

 NA NOITE


Terás envelhecido, como eu, tua existência
será igual à minha, mais ou menos: monótonos
dias que vão passando bem lentamente, dias
em que nada acontece e é tudo igual pra nós.

Às vezes, porventura ainda lembres aquela
luz distante de Agosto que partilhamos. Talvez
sobre meu nome tenha crescido o esquecimento
e se apagasse em ti minha imagem para sempre.

Pergunto-me por vezes se em verdade fui jovem
e estive ali contigo, se existiu aquele Verão.
O sonho e a memória não são coisas diferentes:
não sei se te recordo ou se te estou sonhando.

O tempo debotou as certezas que tive.
A evidência de ontem com a idade esfuma-se.
Estou só. É de noite. Penso que minha vida,
minha própria vida, acaso, não aconteceu nunca.


 Eloy Sánchez Rosilo
(N: 1948)
Trad. De José Bento.