DESENCANTO
Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto
Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.
E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca
Eu faço versos como quem morre.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
terça-feira, 28 de julho de 2015
UM DIA DESTES.
Um dia destes tenho o dia inteiro para morrer,
espero que não me doa,
um dia destes em todas as partes do corpo,
onde por enquanto ninguém sabe de que maneira,
um dia inteiro para morrer completamente,
quando a fruta com seus muitos vagares amadura,
o dom – que é um toque fundo na ferida da inteligência:
oh será que um poema entre todos pode ser absoluto?
:escrevê-lo, e ele ser a nossa morte na perfeição de poucas
linhas
Herberto Helder
(1930-2015)
In "Servidões"
Um dia destes tenho o dia inteiro para morrer,
espero que não me doa,
um dia destes em todas as partes do corpo,
onde por enquanto ninguém sabe de que maneira,
um dia inteiro para morrer completamente,
quando a fruta com seus muitos vagares amadura,
o dom – que é um toque fundo na ferida da inteligência:
oh será que um poema entre todos pode ser absoluto?
:escrevê-lo, e ele ser a nossa morte na perfeição de poucas
linhas
Herberto Helder
(1930-2015)
In "Servidões"
TUDO O QUE FAÇO OU MEDITO
Tudo o que faço ou medito
Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço ---
Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de alem...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Tudo o que faço ou medito
Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço ---
Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de alem...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
segunda-feira, 27 de julho de 2015
A CRIANÇA QUE FUI CHORA NA ESTRADA.
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
quinta-feira, 23 de julho de 2015
UMA PAIXÃO FRIA ENDURECE AS MINHAS LÁGRIMAS
Uma paixão fria endurece as minhas lágrimas.
Pesam as pedras nos meus olhos: alguém
me destroi ou me ama.
POUSEI AS MINHAS MÃOS NUM ROSTO
Pousei as minhas mãos num rosto e retirei-as feridas pelo amor.
Agora,
o esquecimento acaricia as minhas mãos.
ATRÁS DA OBSCURIDADE ESTÃO OS ROSTOS QUE ME ABANDONARAM
Atrás da obscuridade estão os rostos que me abandonaram.
Eu vi a sua pele trabalhada por relâmpagos. Agora
já só vejo, no instante amarelo,
o esplendor das suas longínquas pálpebras.
Antonio Gamoneda
In"Ardem As Perdas", ,(p.19, 23, 49)
Trad. de Jorge Melícias
TALVEZ ME SUCEDA EM MIM MESMO
Talvez me suceda em mim mesmo. Não sei quem mas alguém matou
em mim. Também ontem pressentia a desaparição e estava ameaçado pela luz, mas hoje é outra a faca diante dos meus olhos.
Não quero ser o meu próprio estranho, estou entorpecido pelas visões. É difícil
por todos os dias luz nas veias e trabalhar na retracção de rostos desconhecidos até que se convertam em rostos amados e depois chorar porque vou abandoná-los ou porque eles me vão abandonar.
Que
estupidez ter medo à beira da falsidade, que cansaço
abandonar a inexistência e
morrer depois todos os dias.
Antonio Gamoneda
In "Ardem as Perdas" quasi (2004)
Trad. de Jorge Melícias
Talvez me suceda em mim mesmo. Não sei quem mas alguém matou
em mim. Também ontem pressentia a desaparição e estava ameaçado pela luz, mas hoje é outra a faca diante dos meus olhos.
Não quero ser o meu próprio estranho, estou entorpecido pelas visões. É difícil
por todos os dias luz nas veias e trabalhar na retracção de rostos desconhecidos até que se convertam em rostos amados e depois chorar porque vou abandoná-los ou porque eles me vão abandonar.
Que
estupidez ter medo à beira da falsidade, que cansaço
abandonar a inexistência e
morrer depois todos os dias.
Antonio Gamoneda
In "Ardem as Perdas" quasi (2004)
Trad. de Jorge Melícias
quarta-feira, 22 de julho de 2015
segunda-feira, 20 de julho de 2015
O TERRORISTA OLHA
A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
São neste momento treze e dezasseis.
Alguns conseguem ainda entrar,
alguns sair.
O terrorista passou já para o outro lado da rua.
A esta distância ficará livre de perigo
e, quanto a vista, é como no cinema:
Uma mulher de casaco amarelo… entra.
Um homem de óculos escuros… sai.
Rapazes de jeans… conversam.
Treze horas, dezassete minutos e quatro segundos.
Aquele baixinho tem sorte e senta-se na vespa,
mais um tipo alto que entra.
Treze horas, dezassete minutos e quarenta segundos.
Passa uma moça de fita verde nos cabelos.
Só que o autocarro oculta-a.
Treze e dezoito.
A rapariga desapareceu.
Se foi bastante estúpida para entrar ou não,
isso se saberá pelas notícias.
Treze e dezanove.
Parece que ninguém entra.
Há porém um careca gordo que sai.
Mas olha, parece que procura algo nos bolsos,
faltam treze segundos para as treze e vinte,
e ele volta a entrar em busca das luvas que perdeu.
São treze e vinte.
Como o tempo voa.
Deve ser agora.
Ainda não.
Sim, é agora.
A bomba… explode.
Wislawa Szymborska
(1923-2012)
Trad. de Júlio Sousa Gomes
OS AMIGOS
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
─ Temos um talento
doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão.
Herberto Helder
(1930-2015)
domingo, 19 de julho de 2015
VI APENAS UMA VEZ
Vi apenas uma vez
um sol tão ensanguentado.
E nunca mais
Descia funesto sobre o horizonte
e parecia
que alguém havia escancarado as portas do inferno.
Perguntei pelo observatório astronómico
e hoje sei o porquê.
O inferno, conhecemos: está em toda parte
e caminha sobre duas pernas.
E o paraíso?
Talvez o paraíso nada mais seja
além de um sorriso
por muito tempo esperado
e lábios
que murmuram o nosso nome.
E aquele frágil instante fabuloso
quando depressa podemos esquecer-nos
do inferno.
Jaroslav Seifert
(1901-1986)
Trad. de Aleksandar Jovanovic.
Vi apenas uma vez
um sol tão ensanguentado.
E nunca mais
Descia funesto sobre o horizonte
e parecia
que alguém havia escancarado as portas do inferno.
Perguntei pelo observatório astronómico
e hoje sei o porquê.
O inferno, conhecemos: está em toda parte
e caminha sobre duas pernas.
E o paraíso?
Talvez o paraíso nada mais seja
além de um sorriso
por muito tempo esperado
e lábios
que murmuram o nosso nome.
E aquele frágil instante fabuloso
quando depressa podemos esquecer-nos
do inferno.
Jaroslav Seifert
(1901-1986)
Trad. de Aleksandar Jovanovic.
NOCTURNO
Por onde quer que minha almanavegue, ou ande, ou voe, tudo, tudo
é seu. Que tranquila
em toda a parte, sempre;
agora na alta proa
que em duas pratas abre o azul profundo,
descendo ao fundo ou subindo ao céu!
Oh, que serena a alma
quando se apoderou,
como rainha solitária e pura,
do seu império infindo!
Juan Ramón Jiménez
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento
HERANÇA
Que rosa vermelha entre loureiros
há ressuscitado?
A pé, companheiros
que os mortos estão de pé ao nosso lado.
Roxos de fome, angústia, sede e morte
na solidão
Nada nos importe
senão a aurora que levamos no coração.
Que nos arranquem língua, veias, olhos, nervos
A pele que reste
Não é dos servos
o relâmpago espantoso que nos veste.
Papiniano Carlos
(1918-2012)
In "Caminhemos Serenos"
FINGIA UM ROSTO NO AR
Fingia um rosto no ar (fome e marfim dos hospitais
andaluzes); na extremidade do silêncio, ele ouvia a
campainha dos agonizantes. Olhava-nos e nós sentía-
mos a nudez da existência. Velozmente, abria todas
as portas e derramava o vinho sobre o gelo de ama-
nhecer. Depois, a soluçar, mostrava-nos as garrafas
vazias.
Antonio Gamoneda
In "Livro do Frio"
Trad. de José Bento
NA SUA CANÇÃO
Na sua canção havia cordas sem esperança: um som
longínquo de mulheres cegas (mães descalças no pre-
sídio transparente do sal).
Soava a morte e a orvalho; depois, tangia canas
negras: era o cantor das feridas. Sua memória ardia
no país do vento, na brancura dos sanatórios aban-
donados.
Antonio Gamoneda
In "Livro do Frio"
Trad. de José Bento
É UM HOMEM. VAI SÓ PELO CAMPO.
É um homem. Vai só pelo campo.
Escuta o seu coração, como bate,
e, de repente, o homem detém-se
e põe-se a chorar sobre a terra.
Juventude da dor. Cresce a seiva
verde e amarga da primavera.
Para o ocaso vai. Um pássaro
triste canta entre os ramos negros.
Já o homem apenas chora. Intriga-se
com o sabor a morto da sua língua.
Antonio Gamoneda
In " Oração Fria"
Trad. de João Moita.
É um homem. Vai só pelo campo.
Escuta o seu coração, como bate,
e, de repente, o homem detém-se
e põe-se a chorar sobre a terra.
Juventude da dor. Cresce a seiva
verde e amarga da primavera.
Para o ocaso vai. Um pássaro
triste canta entre os ramos negros.
Já o homem apenas chora. Intriga-se
com o sabor a morto da sua língua.
Antonio Gamoneda
In " Oração Fria"
Trad. de João Moita.
PROMETEU NA FRONTEIRA
I
Talvez passemos pelo mesmo tormento.
Um deus caído na dor vale tanto
quando a dor se esta supera o pranto
e se levanta contra o firmamento.
Um deus imóvel é um deus sedento
e a mim cobrem-me com o mesmo manto.
Eu tenho sede e o que levanto
é a impotência de levantamento.
Oh que dura, feroz é a fronteira
da beleza e da dor; nem um Deus
pode cruzá-la com seu corpo puro.
Ambos estamos de igual maneira
a ferro e sede da solidão; os dois
acorrentados contra o mesmo muro.
II
E este dom de morrer, esta potência
degoladora da dor, de onde
nos vem? Em que deus se esconde
esta forma sinistra de clemência?
Uma única divina descendência
a esta zona de sombra corresponde.
Se falas a um deus, quando responde,
vem a morte por correspondência.
Se não fosse cobarde, se, mais forte,
num raio pudesse pela boca
expulsar este medo da morte,
como este imortal acorrentado
seria puro na dor. Oh, rocha,
meu mundo de sede, mundo olvidado
Antonio Gamoneda
In "Oração Fria"
Trad. de João Moita.
I
Talvez passemos pelo mesmo tormento.
Um deus caído na dor vale tanto
quando a dor se esta supera o pranto
e se levanta contra o firmamento.
Um deus imóvel é um deus sedento
e a mim cobrem-me com o mesmo manto.
Eu tenho sede e o que levanto
é a impotência de levantamento.
Oh que dura, feroz é a fronteira
da beleza e da dor; nem um Deus
pode cruzá-la com seu corpo puro.
Ambos estamos de igual maneira
a ferro e sede da solidão; os dois
acorrentados contra o mesmo muro.
II
E este dom de morrer, esta potência
degoladora da dor, de onde
nos vem? Em que deus se esconde
esta forma sinistra de clemência?
Uma única divina descendência
a esta zona de sombra corresponde.
Se falas a um deus, quando responde,
vem a morte por correspondência.
Se não fosse cobarde, se, mais forte,
num raio pudesse pela boca
expulsar este medo da morte,
como este imortal acorrentado
seria puro na dor. Oh, rocha,
meu mundo de sede, mundo olvidado
Antonio Gamoneda
In "Oração Fria"
Trad. de João Moita.
sábado, 18 de julho de 2015
EXISTIAM TUAS MÃOS
Um dia o
mundo ficou em silêncio;
as árvores,
acima, eram profundas e majestosas,
e nós
sentimos sob nossa pele
o movimento
da terra.
Tuas mãos
foram suaves nas minhas
E eu senti a
gravidade e a luz
E que vivias
em meu coração.
Tudo era
verdade sob as árvores,
tudo era
verdade. Eu compreendia
todas as
coisas como se compreende
um fruto com
a boca, uma luz com os olhos.Antonio Gamoneda
Trad. de Thiago Ponces de Moraes.
quarta-feira, 15 de julho de 2015
HÁ CIDADES ACESAS.
Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.
Há cidades cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.
E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.
Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
A CADA VERSO NASÇO...
A cada verso nasço...
É cada verso o meu primeiro grito
à vida...
Depois,
se caminho apalpando e aos tombos, e se, aflito,
não atino e me perco até de mim
-é que os raios do Sol cegaram, despiedados,
meus olhos mal abertos, costumados
à escuridão do ventre de onde vim.
Sebastião da Gama
(1924-1952)
in "Serra-Mãe"
Edição de Junho de 1957.
A cada verso nasço...
É cada verso o meu primeiro grito
à vida...
Depois,
se caminho apalpando e aos tombos, e se, aflito,
não atino e me perco até de mim
-é que os raios do Sol cegaram, despiedados,
meus olhos mal abertos, costumados
à escuridão do ventre de onde vim.
Sebastião da Gama
(1924-1952)
in "Serra-Mãe"
Edição de Junho de 1957.
terça-feira, 14 de julho de 2015
CANSAÇO.
Não quero amar nem ser amado…
Quero ficar estúpido e cansado
A este canto, e só.
Batido pelo vento,
Sem conforto, sem pão, sem alegria.
E se eu chamar não venhas.
(Que eu não hei-de chamar-te…)
No entanto, Amor, não saias para longe.
É que eu posso, apesar de tudo quanto digo,
Chamar por ti.
E era tão bom saber que me escutavas!...
E era tão bom sentir que perdoavas!...
Sebastião da Gama
(1924-1952)
Não quero amar nem ser amado…
Quero ficar estúpido e cansado
A este canto, e só.
Batido pelo vento,
Sem conforto, sem pão, sem alegria.
E se eu chamar não venhas.
(Que eu não hei-de chamar-te…)
No entanto, Amor, não saias para longe.
É que eu posso, apesar de tudo quanto digo,
Chamar por ti.
E era tão bom saber que me escutavas!...
E era tão bom sentir que perdoavas!...
Sebastião da Gama
(1924-1952)
POÉTICA CONTRADITÓRIA.
Não digas o que sabes nos teus versos,
Deixa para trás a ciência e a consciência;
Tudo aquilo que em ti não for ausência
São ideais perdidos, ou submersos.
Abandona-te às vozes que não ouves,
E liberta os teus deuses nos teus dedos;
Não busques os sorrisos, mas os medos,
E o que não for ignoto e só, não louves.
Ser misterioso e triste, é ser poeta:
Mesmo a luz que palpita nos teus cantos.
É uma imagem heróica dos teus prantos.
Percorre o teu caminho até ao fundo,
E com os versos que achaste, aumenta o mundo.
Não sejas um escritor, mas um profeta.
António Quadros
(1923-1993)
in, "Viagem Desconhecida"
Não digas o que sabes nos teus versos,
Deixa para trás a ciência e a consciência;
Tudo aquilo que em ti não for ausência
São ideais perdidos, ou submersos.
Abandona-te às vozes que não ouves,
E liberta os teus deuses nos teus dedos;
Não busques os sorrisos, mas os medos,
E o que não for ignoto e só, não louves.
Ser misterioso e triste, é ser poeta:
Mesmo a luz que palpita nos teus cantos.
É uma imagem heróica dos teus prantos.
Percorre o teu caminho até ao fundo,
E com os versos que achaste, aumenta o mundo.
Não sejas um escritor, mas um profeta.
António Quadros
(1923-1993)
in, "Viagem Desconhecida"
ELEGIA PARA UMA GAIVOTA
Morreu no Mar a gaivota mais esbelta
A que morava mais alto e trespassava
De claridade as nuvens mais escuras com os olhos
Flutuam quietas, sobre as águas, suas asas
Água salgada, benta de tantas mortes angustiosas, aspergiu-a
E três pás de ar pesado para sempre as viagens lhe vedaram.
Eis que deixou de ser sonho apenas sonhado.
-: É finalmente sonho puro,
Sonho que sonha finalmente, asa que dorme voos
Cantos dos pescadores, embalai-a!
Versos dos poetas, embalai-a!
Brisas, peixes, marés, rumor de velas, embalai-a!
Há na manhã um gosto vago e doce de elegia,
Tão misteriosamente, tão insistentemente,
Sua presença morta em tudo se anuncia.
Ela vai, sereninha e muito branca.
E a sua morte simples e suavíssima
É a ordem-do-dia na praia e no mar alto.
Sebastião da Gama
(1924-1952)
segunda-feira, 13 de julho de 2015
APONTAMENTO
É tão bom
Sentir a ventania lá por fora
e a calma cá por dentro!...
Ou o contrário disto:
vento e raiva cá por dentro e, lá por fora, uma calma
que mais parece um gesto ou um olhar
de Cristo...
Ou, então,
chegar a esta confusão
de não saber se o vento é lá por fora
se é cá por dentro...
Sebastião da Gama
(1924-1952)
MISTÉRIO LONGÍNQUO
Há dentro de mim um vazio que cresce,
como o crepúsculo comendo a pouco e pouco a terra.
Não sei o que se desmorona cada vez mais depressa
dentro de mim.
Não sei que ondas vão e vêm varrendo este mundo que fui,
alargando cada vez mais o espaço interior para outra coisa,
que não é nada aquela plenitude sonhada
dentro de mim.
De repente estou longe de tudo,
esquecido do sabor das coisas mais amadas,
com náuseas do que mais outrora amei
dentro de mim.
Dentro de mim... Este estribilho canta qualquer oculta praia
de oculto mundo. Qualquer sinal há nele, que não sei entender.
Dentro de mim, Senhor, dentro de mim quem terá morrido?
Vem nestas três palavras um dobre a finados
- dentro de mim, dentro de mim -
sobre alguém que ainda não sei que deixei de ser,
sobre aquele que finjo existir, talvez por piedade
- por mim? por quem?
-Mas o outro,
esse que já sou mesmo sem minha licença,
o outro que a vida pôs dentro de mim sem eu ter dado conta,
o outro, Senhor! - que fará ele de tudo o que não sei abandonar
dentro de mim?
Ao outro - quem o fará vencer
dentro de mim?
Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
In "Poesias Completas"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
Há dentro de mim um vazio que cresce,
como o crepúsculo comendo a pouco e pouco a terra.
Não sei o que se desmorona cada vez mais depressa
dentro de mim.
Não sei que ondas vão e vêm varrendo este mundo que fui,
alargando cada vez mais o espaço interior para outra coisa,
que não é nada aquela plenitude sonhada
dentro de mim.
De repente estou longe de tudo,
esquecido do sabor das coisas mais amadas,
com náuseas do que mais outrora amei
dentro de mim.
Dentro de mim... Este estribilho canta qualquer oculta praia
de oculto mundo. Qualquer sinal há nele, que não sei entender.
Dentro de mim, Senhor, dentro de mim quem terá morrido?
Vem nestas três palavras um dobre a finados
- dentro de mim, dentro de mim -
sobre alguém que ainda não sei que deixei de ser,
sobre aquele que finjo existir, talvez por piedade
- por mim? por quem?
-Mas o outro,
esse que já sou mesmo sem minha licença,
o outro que a vida pôs dentro de mim sem eu ter dado conta,
o outro, Senhor! - que fará ele de tudo o que não sei abandonar
dentro de mim?
Ao outro - quem o fará vencer
dentro de mim?
Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
In "Poesias Completas"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
IDENTIDADE
Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que ha' no sofrimento.
Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Da' beleza e sentido a cada grito.
Mas como as inscrições nas penedias
Tem maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que ha' no sofrimento.
Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Da' beleza e sentido a cada grito.
Mas como as inscrições nas penedias
Tem maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.
Miguel Torga
(1907-1995)
quinta-feira, 9 de julho de 2015
MINHA ALMA É UMA ORQUESTRA
Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tange e
range, cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim. Só me
conheço como sinfonia.
Todo o esforço é um crime porque todo o gesto é um sonho inerte.
As tuas mãos são rolas presas.
Os teus lábios são rolas mudas.
(que aos meus olhos vêm arrulhar)
Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente.
E toda ranger de asas, como dos (...), a lagoa de eu te ver. Tu és toda alada, toda (...)
Chove, chove, chove...
Chove constantemente, gemedoramente (...)
Meu corpo treme-me a alma de frio... Não um frio que há no espaço, mas um frio que há em vir a chuva...
Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz.
Bernardo Soares / Fernando Pessoa
(1888-1935)
Todo o esforço é um crime porque todo o gesto é um sonho inerte.
As tuas mãos são rolas presas.
Os teus lábios são rolas mudas.
(que aos meus olhos vêm arrulhar)
Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente.
E toda ranger de asas, como dos (...), a lagoa de eu te ver. Tu és toda alada, toda (...)
Chove, chove, chove...
Chove constantemente, gemedoramente (...)
Meu corpo treme-me a alma de frio... Não um frio que há no espaço, mas um frio que há em vir a chuva...
Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz.
Bernardo Soares / Fernando Pessoa
(1888-1935)
quarta-feira, 8 de julho de 2015
EPOPEIA
Não
mais a África
da vida livre
e dos gritos agudos de azagaia!
Não mais a África
de rios tumultuosos
- veias entumecidas dum corpo de sangue!
da vida livre
e dos gritos agudos de azagaia!
Não mais a África
de rios tumultuosos
- veias entumecidas dum corpo de sangue!
Os
brancos abriram clareiras
a tiros de carabina.
Nas clareiras fogos
roxeando a noite tropical
a tiros de carabina.
Nas clareiras fogos
roxeando a noite tropical
Fogos!
Milhões de fogos
num terreno em brasa!
Milhões de fogos
num terreno em brasa!
Noite
de grande lua
e um cântico subindo
do porão do navio.
O som das grilhetas
marcando o compasso!
e um cântico subindo
do porão do navio.
O som das grilhetas
marcando o compasso!
Noite
de grande lua
e destino ignorado!...
Foste o homem perdido
Em terras estranhas!...
e destino ignorado!...
Foste o homem perdido
Em terras estranhas!...
No
Brasil
ganhaste calo nas costas
nas vastas plantações do café!
No norte
foste o homem enrodilhado
nas vastas plantações de fumo!
ganhaste calo nas costas
nas vastas plantações do café!
No norte
foste o homem enrodilhado
nas vastas plantações de fumo!
Na
calma do descanso nocturno
só saudade da terra
que ficou do outro lado...
- só canções bem soluçadas -
dum ritmo estranho!
só saudade da terra
que ficou do outro lado...
- só canções bem soluçadas -
dum ritmo estranho!
Os
homens do norte
ficaram rasgando
ventres e cavalos
aos homens do sul!
ficaram rasgando
ventres e cavalos
aos homens do sul!
Os
homens do norte
estavam cheios
dos ideais maiores
tão grandes
que tudo foi despropósito!...
estavam cheios
dos ideais maiores
tão grandes
que tudo foi despropósito!...
Os
homens do norte
os mais lúcidos e cheios de ideais
deram-te do que era teu
um pedaço para viveres...
Libéria! Libéria!
os mais lúcidos e cheios de ideais
deram-te do que era teu
um pedaço para viveres...
Libéria! Libéria!
Ah!
Os homens nas ruas da Libéria
são dollars americanos
ritmicamente deslizando...
Os homens nas ruas da Libéria
são dollars americanos
ritmicamente deslizando...
Quando
cartas nos cabarés
Fazendo brilhar o marfim da tua boca
É a África que está chegando!
Fazendo brilhar o marfim da tua boca
É a África que está chegando!
Quando
nas Olimpíadas
Corres veloz
É a África que está chegando!
Corres veloz
É a África que está chegando!
Segue
em frente
irmão!
Que a tua música
seja o de uma conquista!
irmão!
Que a tua música
seja o de uma conquista!
E
que o teu ritmo
seja a cadência de uma via nova!
seja a cadência de uma via nova!
para
que a tua gargalhada
de novo venha estralhaçar os ares
como gritos agudos e azagaia!
de novo venha estralhaçar os ares
como gritos agudos e azagaia!
Francisco José Tenreiro
(1921-1963)
PROMETEU
Abafai meus gritos com mordaças,
maior será a minha ânsia de gritá-los!
Amarrai meus pulsos com grilhões,
maior será minha ânsia de quebrá-los!
Rasgai a minha carne!
Triturai os meus ossos!
O meu sangue será a minha bandeira
e meus ossos o cimento duma outra humanidade.
Que aqui ninguém se entrega
- isto é vencer ou morrer -
é na vida que se perde
que há mais ânsia de viver!
Joaquim Namorado
(1914-1986)
Abafai meus gritos com mordaças,
maior será a minha ânsia de gritá-los!
Amarrai meus pulsos com grilhões,
maior será minha ânsia de quebrá-los!
Rasgai a minha carne!
Triturai os meus ossos!
O meu sangue será a minha bandeira
e meus ossos o cimento duma outra humanidade.
Que aqui ninguém se entrega
- isto é vencer ou morrer -
é na vida que se perde
que há mais ânsia de viver!
Joaquim Namorado
(1914-1986)
NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO
O altar as vagas,
O dossel a espuma!
Missas rezadas pelo vento,
ora pelos fiéis defuntos que se foram
noutras vagas,
ora pelas barcaças que, uma a uma,
buscaram as sereias na distância
e se foram com elas.
Sobre o altar, entre círios, que não são
Os círios murchos das igrejas velhas
Mas os lumes das estrelas,
ELA,
Nossa Senhora da Apresentação.
aquela
que não tem mantos da cor do céu,
nem fios de oiro nos cabelos,
nem anéis nos dedos;
aquela
que não traz um menino nos seus braços
porque os seios mirraram
e já não têm pão para lhe dar;
aquela
que tem o corpo negro e sujo
e os ossos a saltar
da pele
e dos rasgões da saia e do corpete;
Nossa Senhora da Apresentação
da Beira-Mar,
que tem capelas
em cada peito de marinheiro,
que morre e, num instante,
se renova
e que anda
quer nos engaços do sargaceiro
ou nas gamelas do pilado
e palhabotes da Terra Nova.
Aquela
a quem todos adoram.
Dos meninos
feitos no intervalo das campanhas
aos bichanos que limpam de cabeças,
e tripas de pescado
as muralhas do cais.
O dossel a espuma.
O altar as vagas
─ e que altar enorme! ─
Entre círios de estrelas,
Nossa Senhora da Apresentação
e Justificação
─ a Fome!
Álvaro Feijó
(1916-1941)
domingo, 5 de julho de 2015
NAVEGA
Navega, descobre tesouros,
mas não os tires do fundo do mar,
o lugar deles é lá.
Navega, descobre tesouros,
mas não os tires do fundo do mar,
o lugar deles é lá.
Admira a Lua,
sonha com ela,
mas não queiras trazê-la para Terra.
Goza a luz do Sol,
deixa-te acariciar por ele.
O calor é para todos.
Sonha com as estrelas,
apenas sonha,
elas só podem brilhar no céu.
Não tentes deter o vento,
ele precisa correr por toda a parte,
ele tem pressa de chegar sabe-se lá onde.
As lágrimas?
Não as seques,
elas precisam correr na minha, na tua, em todas as faces.
O sorriso!
Esse deves segurar,
não o deixes ir embora, agarra-o!
Quem amas?
Guarda dentro de um porta jóias, tranca, perde a chave!
Quem amas é a maior jóia que possuis, a mais valiosa.
Não importa se a estação do ano muda,
se o século vira, conserva a vontade de viver,
não se chega a parte alguma sem ela.
Abre todas as janelas que encontrares e as portas também.
Persegue o sonho, mas não o deixes viver sozinho.
Alimenta a tua alma com amor, cura as tuas feridas com carinho.
Descobre-te todos os dias,
deixa-te levar pelas tuas vontades,
mas não enlouqueças por elas.
Procura!
Procura sempre o fim de uma história,
seja ela qual for.
Dá um sorriso àqueles que esqueceram como se faz isso.
Olha para o lado, há alguém que precisa de ti.
Abastece o teu coração de fé, não a percas nunca.
Mergulha de cabeça nos teus desejos e satisfá-los.
Agoniza de dor por um amigo,
só sairás dessa agonia se conseguires tirá-lo também.
Procura os teus caminhos, mas não magoes ninguém nessa procura.
Arrepende-te, volta atrás,
pede perdão!
Não te acostumes com o que não te faz feliz,
revolta-te quando julgares necessário.
Enche o teu coração de esperança, mas não deixes que ele se afogue nela.
Se achares que precisas de voltar atrás, volta!
Se perceberes que precisas seguir, segue!
Se estiver tudo errado, começa novamente.
Se estiver tudo certo, continua.
Se sentires saudades, mata-as.
Se perderes um amor, não te percas!
Se o achares, segura-o!
Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala.
"O mais é nada".
Fernando Pessoa
(1888-1935)
sonha com ela,
mas não queiras trazê-la para Terra.
Goza a luz do Sol,
deixa-te acariciar por ele.
O calor é para todos.
Sonha com as estrelas,
apenas sonha,
elas só podem brilhar no céu.
Não tentes deter o vento,
ele precisa correr por toda a parte,
ele tem pressa de chegar sabe-se lá onde.
As lágrimas?
Não as seques,
elas precisam correr na minha, na tua, em todas as faces.
O sorriso!
Esse deves segurar,
não o deixes ir embora, agarra-o!
Quem amas?
Guarda dentro de um porta jóias, tranca, perde a chave!
Quem amas é a maior jóia que possuis, a mais valiosa.
Não importa se a estação do ano muda,
se o século vira, conserva a vontade de viver,
não se chega a parte alguma sem ela.
Abre todas as janelas que encontrares e as portas também.
Persegue o sonho, mas não o deixes viver sozinho.
Alimenta a tua alma com amor, cura as tuas feridas com carinho.
Descobre-te todos os dias,
deixa-te levar pelas tuas vontades,
mas não enlouqueças por elas.
Procura!
Procura sempre o fim de uma história,
seja ela qual for.
Dá um sorriso àqueles que esqueceram como se faz isso.
Olha para o lado, há alguém que precisa de ti.
Abastece o teu coração de fé, não a percas nunca.
Mergulha de cabeça nos teus desejos e satisfá-los.
Agoniza de dor por um amigo,
só sairás dessa agonia se conseguires tirá-lo também.
Procura os teus caminhos, mas não magoes ninguém nessa procura.
Arrepende-te, volta atrás,
pede perdão!
Não te acostumes com o que não te faz feliz,
revolta-te quando julgares necessário.
Enche o teu coração de esperança, mas não deixes que ele se afogue nela.
Se achares que precisas de voltar atrás, volta!
Se perceberes que precisas seguir, segue!
Se estiver tudo errado, começa novamente.
Se estiver tudo certo, continua.
Se sentires saudades, mata-as.
Se perderes um amor, não te percas!
Se o achares, segura-o!
Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala.
"O mais é nada".
Fernando Pessoa
(1888-1935)
sábado, 4 de julho de 2015
UMA GENTE
Uma gente em fuga de outra gente,
num país debaixo do sol
e de algumas nuvens.
Deixam para trás um tal seu tudo,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos, justamente nos quais o fogo se mira.
Levam às costas os cântaros e as trouxas,
quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.
É em silêncio que alguém desfalece,
é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém
e alguém sacode o filho morto.
Nunca é pela estrada que têm à frente,
nem é esta ponte
sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos,
no alto, um avião errante rodopia.
Oportuna seria a invisibilidade,
uma parda rochosidade,
ou melhor a inexistência
durante um pouquinho ou por mais tempo.
Mais ainda está por acontecer, apenas onde eo quê.
Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quando e quem-
de que forma e com que intenções.
Se puder escolher,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
Wislawa Szymborska
(1923-2012)
In "Instante"
(Trad. Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves)
Uma gente em fuga de outra gente,
num país debaixo do sol
e de algumas nuvens.
Deixam para trás um tal seu tudo,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos, justamente nos quais o fogo se mira.
Levam às costas os cântaros e as trouxas,
quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.
É em silêncio que alguém desfalece,
é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém
e alguém sacode o filho morto.
Nunca é pela estrada que têm à frente,
nem é esta ponte
sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos,
no alto, um avião errante rodopia.
Oportuna seria a invisibilidade,
uma parda rochosidade,
ou melhor a inexistência
durante um pouquinho ou por mais tempo.
Mais ainda está por acontecer, apenas onde eo quê.
Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quando e quem-
de que forma e com que intenções.
Se puder escolher,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
Wislawa Szymborska
(1923-2012)
In "Instante"
(Trad. Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves)
PERFILADOS DE MEDO
Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.
Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.
Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.
Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...
Alexandre O'Neill
(1924-1986)
Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.
Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.
Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.
Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...
Alexandre O'Neill
(1924-1986)
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