terça-feira, 28 de outubro de 2014

OS DIAS


Dias como mendigos procurando
por uma terra vã espigas de nada:
que rosas de miséria colheremos?
que esmolas de luar no pó da estrada?


Fechando as mãos não colho mais que a imagem
da tua sombra, meu amor de trigo:
a bruma desses rios que em segredo
nascem em mim para morrer comigo.

Rios de luz concreta, proibida,
de que meus versos são a simples névoa;
ah, pudesse eu cantar; a vida levo-a
sem te ver bem a esta luz perdida.

Ó doce prisioneira do crepúsculo,
quando virá teu rosto de harmonia
como o fulgor de um astro debruçar-se
na terra dos meus pés, áspera e fria?


Carlos de Oliveira

(1921-1981)
In "Terra de Harmonia"

domingo, 26 de outubro de 2014

 PARA QUE TU ME OUÇAS


Para que tu me ouças
as minhas palavras
adelgaçam-se por vezes
como o rasto das gaivotas sobre a praia.


Colar, guizo ébrio
para as tuas mãos suaves como as uvas.

E vejo-as tão longe, as minhas palavras.
Mais que minhas são tuas.
Vão trepando pela minha velha dor como a hera.

Elas trepam assim pelas paredes húmidas.
Tu é que és a culpada deste jogo sangrento.
Elas vão a fugir do meu escuro refúgio.
Tu enches tudo, amada, enches tudo.

Antes de ti povoaram a solidão que ocupas,
e estão habituadas mais que tu à minha tristeza.

Agora quero que digam o que eu quero dizer-te
para que tu ouças como quero que me ouças.

O vento da angústia ainda costuma arrastá-las.
Furacões de sonhos ainda por vezes as derrubam.
Tu escutas outras vozes na minha voz dorida.
Pranto de velhas bocas, sangue de velhas súplicas.
Ama-me, companheira. Não me abandones. Segue-me.
Segue-me, companheira, nessa onda de angústia.

Mas vão-se tingindo com o teu amor as minhas palavras.
Ocupas tudo, amada, ocupas tudo.

Vou fazendo de todas um colar infinito
para as tuas brancas mãos, suaves como as uvas.


Pablo Neruda
(1904-1973)
In "20 Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada"
Tradução: Fernando Assis Pacheco

QUERO DESAPARECER MAS NÃO MORRER.


Quero desaparecer mas não morrer
Quero não ser e perdurar
e saber que perduro
Bato às portas da morte
e retiro-me
Chamo a vida e fujo envergonhado
Quero ser toda a minha alma e não posso
quero ser todo o meu corpo e não o alcanço.



Vicente Huidobro
(1893-1943)
Tradução: Ricardo Marques

sábado, 25 de outubro de 2014

ESTA GENTE.


Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra esvcravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gesto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo


Sophia Mello Breyner Adresen
(1919-2004)
O SUOR.


No mar encontra a água seu paraíso ansiado
e o suor seu horizonte, seu fragor e plumagem.
O suor é um tronco transbordante e salgado,
uma onda selvagem.


Chega a idade do mundo mais remota
para oferecer à terra a fronde sacudida,
a sustentar a sede e o sal gota a gota,
a iluminar a vida.

Filho do movimento, primo do sol, irmão
da lágrima, deixa vagueando pelas eiras,
de abril a outubro, do inverno ao verão,
douradas trepadeiras.

Quando os camponeses vão de madrugada
empurrando o arado e fugindo ao repouso,
vestem uma blusa silenciosa e dourada
de suor silencioso.

Vestimenta de ouro dos trabalhadores,
que tanto adorna as mãos como as pupilas,
pela atmosfera espalha seus fecundos olores
uma chuva de axilas.

O sabor que há na terra melhora-se e madura:
do pranto laborioso e rescendente cai o mosto,
maná dos homens, maná da agricultura,
bebida do meu rosto.

Vós que nunca suastes, e que andais elegantes
num ócio sem braços, sem música, sem poros,
não usareis a coroa dos poros gotejantes
nem o poder dos touros.

Vivereis malcheirosos, morrereis apagados:
a formosura habita nas articulações
dos corpos que movem seus membros adestrados
como constelações.

Entregai ao trabalho, companheiros, a fronte:
que o suor, com sua espada de gostosos cristais,
com seus lentos dilúvios, vos fará transparentes,
venturosos, iguais.

Miguel Hernández
(1910-1942)
Tradução: José Bento
O POETA OPERÁRIO


Gritam ao poeta da revolução:
«Seria bom ver-te a trabalhar num torno.
Versos o que são?
Simples adorno!
Trabalhar não é contigo, se calhar.»
Mas, para nós,
trabalhar
é a ocupação favorita.
Eu também sou uma fábrica
e lá por não ter chaminés,
talvez
seja muito mais difícil.
Bem sei
que não gostas de frases vãs.
Cortar carvalhos, isso sim, é trabalho.
E nós
não seremos também derrubadores de árvores?
As cabeças das pessoas tratamos como carvalhos.
Certamente
pescar é uma coisa respeitável,
lançar a rede
e apanhar esturjões!
Mas o trabalho do poeta é mais respeitável:
não pescamos peixe mas sim gente viva.
Trabalhar na forja é trabalho violento,
o ferro fundido bater e temperar.
Mas quem é
que nos pode acusar de mandriar?
Com a goiva da linguagem polimos as mentes.
Quem vale mais - o poeta
ou o técnico
que conduz as pessoas para os bens materiais?
Ambos.
Os corações são iguais aos motores,
a alma igual a um motor complicado.
Somos iguais,
camaradas na massa trabalhadora,
Proletários do corpo e da alma.
Só juntos
remoçaremos o universo
e com marchas poderemos vencer.
Das tempestades verbais defenderemos o povo.
Ao trabalho!
O trabalho é vivo e novo.


Os oradores fúteis, sem dó
ao moinho!
À fresadora!
Que a água dos discursos dê a volta à mó!

Vladimir Maiakovski
(1893-1930)
(Trad. de Manuel de Seabra)

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A CORTIÇA


É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal
há gente que arrefece que arrefece
de sol a sol
de mal a mal.
É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal.

 
Passando o Tejo para além da ponte
que não nos liga a nada
só se vê horizonte
horizonte
e tristeza queimada.

É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
uma fome tão grande que trespassa
o ventre de quem a leva.
É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
mal finda a noite escurece logo o dia
e uma espessa energia
feita de pus no sangue
de lama na barriga
nasce da terra exangue e inimiga

É o vapor da sede é o calor do medo.
a cama do ganhão
a casca do sobredo.
É o suor com pão que se come em segredo.

É preciso dizer-se o que nos dão
no meu país de boa lavra
aonde um homem morre como um cão
à míngua de palavra:

Por cada tronco desnudado um lado
do nosso orgulho ferido
e por cada sobreiro despojado
um homem esfomeado e mal parido.

Ah não, filhos da mãe!
Ah não, filhos da terra!
Os enjeitados também vão à guerra.

José Carlos Ary dos Santos
(1937-1984)
“Insofrimento in Sofrimento”,
(1969)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

PEQUENOS DEUSES CASEIROS


Pequenos deuses caseiros
que brincais aos temporais,
passam-se os dias, semanas,
os meses e os anos
e vós jogais, jogais
o jogo dos tiranos.


Pequenos deuses caseiros
cantai cantigas macias
tomai vossa morfina,
perdulai vossos dinheiros
derramai a vossa raiva
gozai vossas tiranias,
pequenos deuses caseiros
.
Erguei vossos castelos
elegei vossos senhores
espancai vossos criados,
violai vossas criadas,
e bebei,
o vinho dos traidores
servido em taças roubadas

Dormi em colchões de pena,
dançai dias inteiros,
comprai os que se vendem,
alteai vossas janelas,
e trancai as vossas portas,
pequenos deuses caseiros,
e reforçai, reforçai as sentinelas.


Sidónio Muralha
(1920-1982)
SUBITAMENTE FICAS NA PAISAGEM.


Subitamente ficas na paisagem
E olho os teus olhos quentes e antigos...
Tens sol e sede, tens brincos de cerejas
E a pele cheirosa e fresca como a água.

Subitamente sinto aquela sede
Dos sobreiros gretados, das estevas...
Mas perto, fonte ardente, dás frescura
À paisagem dormente e abrasada!


Cristovam Pavia
(1933-1968)
In "35 Poemas"
(1982)

terça-feira, 21 de outubro de 2014

SONETO PURO.


Fique o amor onde está; seu movimento
nas equações marítimas se inspire
para que, feito o mar, não se retire
de verdes áreas de seu vão lamento.


Seja o amor como a vaga ao vago intento
de ser colhida em mãos; nela se mire
e, fiel ao seu fulcro, não admire
as enganosas rotações do vento.

Como o centro de tudo, não se afaste
da razão de si mesmo, e se contente
em luzir para o lume que o ensolara.

Seja o amor como o tempo - não se gaste
e, se gasto, renasça, noite clara
que acolhe a treva, e é clara novamente.


Lêdo Ivo
(1924-2012)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

 HÁ UMA ROSEIRA DE SOMBRA QUE PERFUMA.


Há uma roseira de sombra que perfuma
somente o sonho, e que jamais é
sonho ela própria, mas sombra realidade.
Não faz sonhar acordado nem sonhar
em sonhos, e seus ramos têm rosas
de condensada sombra em que um orvalho
vesperal acha abrigo e tanta vida
concede ao fundo de seu aroma.
Cobre a roseira, com umbrosos ramos
de sombra, as moradas que constrói
ou habita o sonho, e os jardins
por onde passeia a nostalgia
e o desejo, os montes e os vales
- e é só roseira cujas folhas contasses -
abertos ou fechados ao teu sonho.
E o aroma entre sombra de suas rosas
aroma sempre a sombra dessas pétalas.

Ángel Crespo
(1926-1995)
 Tradução: José Bento




 UM HOMEM ENTRE OS RAMOS.


Um homem subiu a uma árvore para colher um fruto.

O fruto estava em cima, muito em cima, no alto.

O homem não chegava, o homem
não chegou.

                 Desde então,
há um homem na árvore,
um homem entre os ramos.

Ninguém sabe o que busca.

Lorenzo Gomis
 (1924-2005)
Tradução: José Bento
 ESTOU PERDIDO


Profeta de meus fins não duvidava
do mundo que pintou minha fantasia
nos enormes desertos invisíveis.

Reconcentrado e penetrante, só,
mudo, predestinado, esclarecido,
meu profundo isolamento e fundo centro,
meu sonho errante e solidão submersa,
dilatavam-se pelo inexistente,
até que vacilei, até que a dúvida
por dentro escureceu minha cegueira.

Um tacto escuro entre o meu ser e o mundo,
entre as duas trevas, definia
uma ignorada juventude ardente.
Encontra-me na noite. Estou perdido.

Manuel Altolaguirre
(1905-1959) Tradução: José Bento

SEIS POEMAS CONFIADOS À MEMÓRIA DE NORA MITRANI - VI


A que vens, solidão, com teu relógio
de ponteiros de visgo, de bater de feltro?
Ombro nenhum ao meu ombro encostado,
a que vens, ó camarada solidão?


Companheira, amiga, até amante,
até ausente, ó solidão, te amei,
como se ama o frio até o frio dar
a chama que tu dás, ó solidão!

A que vens, enfermeira? Não sabes que estou morto,
que se digo o meu sim ou o meu não
é só para que os outros me julguem mais um outro,
é só para que um morto não tire o sono aos outros?

A que vens, solidão? Vai antes possuir
os que amam sem esperança e sem saber esperam,
dá-lhes o teu conforto, encosta-lhes ao ombro
o teu ombro nenhum, ó solidão!

Alexandre O'Neill
(1924-1986)
In "Poemas com Endereço"
(1962)
O JARDIM NEGRO.


É noite. A imensa
palavra é silêncio...
Há no arvoredo
um grave mistério...
Dormem os rumores,
a cor já morreu.
A fonte está louca,
mudo está o eco,



Recordas-te?... Em vão
quisemos sabê-lo...
Que estranho! Que escuro!
Crispa-me inda os nervos
passando nesta hora
somente a lembrança,
como se me houvesse
roçado um momento
a asa peluda
de horrível morcego!...
Vem, amada! Inclina
tua fronte em meu peito;
cerremos os olhos;
não oiçamos, silêncio...
Como dois meninos
que tremem de medo!


A lua aparece,
as nuvens rompendo...
A lua e a estátua
dão um grande beijo.


Manuel Machado
(1874-1947)
Trad. de José Bento

domingo, 19 de outubro de 2014

HINO DE DEPUTADO.


Chora, meu filho, chora.
Ai, quem não chora não mama,
Quem não mama fica fraco,
Fica sem força pra vida,
A vida é luta renhida,
Não é sopa, é um buraco.
Se eu não tivesse chorado
Nunca teria mamado,
Não estava agora cantando,
Não teria um automóvel,
Estaria caceteado,
Assinando promissória,
Quem sabe vendendo imóvel
A prestação ou sem ela,
Ou esperando algum tigre
Que talvez desse amanhã,
Ou dando um tiro no ouvido,
Ou sem olho, sem ouvido,
Sem perna, braço, nariz.



Chora, meu filho, chora,
Ante-ontem, ontem, hoje,
Depois de amanhã, amanhã.
Não dorme, filho, não dorme,
Se você toca a dormir
Outro passa na tua frente
Carrega com a mamadeira.
Abre o olho bem aberto,
Abre a boca bem aberta,
Chore até não poder mais.


Murilo Mendes
(1901-1975)

 

 SIM, SOU EU, EU MESMO...

 

Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos,
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!...

Álvaro de Campos
(1888-1935)
(6/8/1931)

EIS O QUE ME DISSERAM.


Os campos dão pedras, as vinhas estiolam,
as aldeias dão párias emigrando em porões.


Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje;
não deixes para amanhã o quebrar do silêncio,
meter a foice no trigo sazonado,
carregar no botão, soltar a tempestade.


Quebra a solidão com o sol matinal
que aponta a claridade sobre as frondes.


As cidades dão fumo, queimam a amizade,
esmagam a consciência, distribuem o crepúsculo.


Um pequeno descuido, nova fuga de tempo,
o espelho transforma-te em velhice - perderás a vida,
pálido, encolhido, no fundo das caves.


É mais tarde do que pensas!
É difícil agora deste fruto ácido
conseguir raízes, flores e perfume.


Não deixes para amanhã o grito necessário,
o enforcamento sumário do agente opressor,
o tributo para a máquina de alargar horizontes...


Eis o que me disseram!


Egito Gonçalves
(1920-2001)
AMOR PERFEITO.

Perfeito?
Não existe.


Nem mesmo num canteiro
de jardim.


Porque a flor,
de veludo suave, lindo e triste,
multicor,
não tem cheiro.


Salvo em mim
- perfume que salvei, quando partiste,
e devolvo num verso ao mundo inteiro.


António Luís Moita
(N: 1925)

sábado, 18 de outubro de 2014



AS ESPÉCIES DE MORTOS


Há aqueles que morrem
com muitas espadas
no sangue coalhado

 
Há aqueles na cama
que morrem no corpo
consigo deitado


Há aqueles que morrem
com cavalo e sela
e fato completo


Há aqueles de amor
que morrem de tiro
com o coração


Há aqueles que morrem
por já ter caixão
e ser a idade


Há aqueles de luto
que morrem também
como o defunto


Há aqueles que morrem
com navalha certa
por causa do gume


Há aqueles de armas
que morrem em fila
organizados


Há aqueles que morrem
por não terem cura
e têm parentes


Há aqueles doentes
que morrem no fim
e depois há missa


Há aqueles que morrem
com a mesma morte
e a vida pior


Há aqueles de fome
que por isso morrem
e nem trazem vida


Há aqueles homens
que não têm vida
e morrem pior


Fiama Hasse Pais Brandão
(1938-2007)
In "Barcas Novas)
(1967)
O MEDO


Surgiu
Por detrás
Da nuvem escura
Que tapou a lua.
Escorregou
Sobre a planície,
Negro,
Envolto
Em longas chamas.
Era meu.
Pertencia-me.
Era o medo.



Maria Amélia Neto
(N: 1928)
In "O Vento e a Sombra"
(1960)

 ASCENSÃO



Beijava-te como se sobe uma escadaria:
pedra a pedra, do luminoso para o obscuro,
do mais visível para o mais recôndito
- até que os lábios fossem
não o ardor da sede, nem sequer a magia
da subida,
mas o tremor que é pétala do êxtase,
o lento desprender do sol do corpo
com o feliz quebranto dos meus dedos.



João Rui de Sousa
(N: 1928)
In " Obstinação do Corpo"

ÚLTIMO POEMA DO AMOR AUSENTE.



Todo o corpo lhes dói de acertar os relógios
De momento a momento às vantagens do tempo
Meu amor meu amor tem por vezes o gosto
Do veneno sorvido ao desabar das pontes



A mais frágil aragem os confunde
O espaço aberto enreda-lhes os passos
O convívio da vida esboroa as palavras
A liberdade é um peso enorme nos seus ombros


«Tudo quanto perdi na violência do tempo
Veio hoje até mim como o espinho da flor
Como o operário morto entre o ferro e o cimento
Da construção do amor


Foi um lento e incógnito perfume
Foi um lago sem margens intransposto
Foi uma pedra vermelha de lume
O mais belo sorrir de desgosto»


VASCO COSTA MARQUES
(1928-2006)
In "Poesia dos Dias Úteis)
(1956)

sábado, 11 de outubro de 2014

SOLIDÃO: SOLITÁRIO


A grande solidão que me penhora
os trastes com que enfeito a minha casa.
Por dentro, por fora.
Em mim e no que os meus olhos tocam
até ficar vazio,
senhor de tanto frio
e paredes brancas.

A grande solidão feita de cinzas
de cigarros fumados.
De mortos vivos.
De vivos mortos.
Onde encontrarei quem me refaça
a casa.
Lhe dê a marca
intacta
da minha solidão?
Somente paredes nuas.
Amigos mortos e vivos
na solidão.

Ruy Cinatti
(8/3/1915-12/10/1986)

JUNTO À ÁGUA

Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.



Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às vontades da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.


Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz da infância, que o teu silêncio me chamasse.


E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos


e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.


Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.



Manuel António Pina
(1943-2012)
In "Um Sítio Onde Pousar a Cabeça"
(1991)

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

 AS PALAVRAS INTERDITAS


Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
 
Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

 Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "366 Poemas que Falam de Amor"




 HOJE DEITEI-ME AO LADO DA MINHA SOLIDÃO.



Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha,
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do meu próprio coração.

Moreno, era a forma das pedras e das luas.
Dentro de mim alguma coisa ardia:
a brancura das palavras maduras
ou o medo de perder quem me perdia

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até sentir
o meu sangue jorrar nas próprias fontes.


Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "As Mãos e os Frutos"

domingo, 5 de outubro de 2014




  ENDECHA DOS MAIS NOVOS


Enquanto o nosso coração voraz
bate a descompasso com o da Terra,
não queremos ripostar demais à guerra,
fugimos de apostar demais na paz.

Compêndios de nojo, actas de festa,
são escrita tremida para nós,
mas não se lembrem doutores de erguer a voz
a dizer o que purga e o que molesta.

Só a voz do sangue ouvimos bem
quando ao leme do ventre almareámos;
fomos inocentes, já nos naufragámos,
corpos de delito, almas de refém.

Luiza Neto Jorge
(1930-1989)
SE O OUTONO.


Se o Outono
fosse o cheiro de frutos
na memória

e os frutos
a calma dos sentidos

o nosso rosto com luz
ou neon
pelos cabelos
seria um retrato de mágoa
olhando o chão

António Reis
(1927-1991)
In "Poemas Quotidianos"
(1967)

sábado, 4 de outubro de 2014

Mercê

A todos chamarás amigo, irmão
Menos a quem estenderes a tua mão.

"Terás o mundo todo: terra e mar,
Menos a parte onde quiseres ficar.

Os frutos poderás colher, comer,
Menos aquele que te apetecer.

E haverá sonhos p´ra sonhar, fugir;
Porém nunca ninguém te deixará dormir.

Não terás nem divisas, nem bandeiras,
Mas hão-de rodear-te de fronteiras."

António Manuel Couto Viana
(1923-2010)
In "No Sossego da Hora)
(1949)

 
ENTRONIZAÇÃO


Tenho o braço cansado,
A mão dorida, trôpega...
Mas uma espécie de ânsia sôfrega
Ordena:
Empurrar tudo!
- Não quero, nem passado,
 Nem presente,
Nem futuro!-

O braço faz de muro,
A mão abre  caminho, coerente...

Quero uma estrada cá dentro...lisa, plana,
Para a tua palavra mágica, profética,
Bela e magnética,
Passear livremente,
E demoradamente!...


Leonor de Almeida
(N. 1915)
In " Caminhos Frios"
(1947)

SE HOUVESSE DEGRAUS NA TERRA.


Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

 
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

Herberto Helder

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

FUGA


Numa nuvem de esquecimento
passar a vida,
sem mágoas, sem um lamento,
água correndo, impelida
pelo vento.

Ouvir a música do instante que passa
e recolhê-la no coração,
olhos fechados à dor e à desgraça,
os ouvidos atentos à canção
do instante que passa.
Beber a luz doirada que irradia
dos vastos horizontes,
e ver escoar-se o dia
entre pinhais e montes...
Doce melancolia.
Esquecer todas as agruras
que lá vão
e este negro mar de desventuras
em que voga ao sabor de torvas ondas
meu coração.


Luís AMARO
(N: 1923)
PERCAM PARA SEMPRE AS TUAS MÃOS...


Percam para sempre as tuas mãos o jeito de pedir.
Esqueça para sempre a tua boca
O que disse a rezar.
E os teus olhos nunca mais, nunca mais saibam chorar
Porque é inútil.

Faz como os outros fizeram
Quando chegou o momento
De perder o medo à morte
Por ter muito amor à vida.


Raul de Carvalho
(1920-1984),
In "As Sombras e as Vozes"
(1949)

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

AMANHÃ É CADA INSTANTE.


Amanhã é cada instante.
Amanhã é cada passo.
Amanhã é cada brado.
Amnhã está nos teus braços
e pode ser hoje mesmo.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "Beleza Prometida"
(1950)