domingo, 21 de setembro de 2014

QUE DERROTA HÁ MAIOR QUE NÃO QUERER?


Que derrota há maior que não querer?
Que silêncio há maior que não escutar?
Que traição há maior que concordar
por cobardia de contradizer?
Em qualquer parte onde uma luz houver
é porque há um olhar para olhar.
Tanto importa afirmar como negar.
Só não é nada não buscar saber.
É erro hoje o que ontem foi seguro,
como o que ontem foi erro o não é hoje
e talvez torne ainda a ser errado.
Porque não há-de o homem ser tão puro
que a cada novo instante se despoje
de cada erro nele enraizado?


Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "Beleza Prometida"
(1950)

sábado, 20 de setembro de 2014

 O LIMITE


Basta. Não é insistir olhar o longo brilho
de teus olhos. Ali, até ao fim do mundo.
Olhei e consegui. Contemplei, e passava.
A dignidade do homem está na sua morte.
Mas os brilhos temporais dão
cor, verdade. A luz pensada, engana.
Basta. No caudal de luz - teus olhos - pus
minha confiança. Por eles vi, vivera.
Hoje que piso meu fim, beijo estas margens.
Tu, minha limitação, meu sonho. Sejas!

Vicente Aleixandre
(1898-1984)
 Tradução: José Bento


 TENS NOME


Teu nome,
pois tens nome. A minha vida inteira foi isso:
um nome. Porque sei que não existo.
Um nome respirado não é um beijo.
Um nome perseguido sobre uns lábios
não é o mundo, mas o seu sonho às cegas.
Assim sob a terra, respirei a terra.
Sobre o teu corpo respirei a luz.
Dentro de ti nasci: morri por isso.

Vicente Aleixandre
(1898-1984) Tradução: José Bento


 NOITE ABERTA



 Bem-vinda a noite para quem vai seguro
e com os olhos claros olha sereno o campo,
e com a vida limpa olha com paz o céu,
sua cidade e sua casa, sua família e sua obra.

   Mas de quem vacilante anda e vê sombra, vê o duro
cenho do céu e vive o castigo de sua terra
e a malevolência de seus seres queridos,
inimiga é a noite e sua piedade acosso.

   E ainda mais neste páramo da tão alta Rioja,
onde se abre com tal claridade que deslumbra,
tão próxima palpita que muito assombra, e muito
penetra na alma, fundamente a perturba.

   Porque a noite sempre, como o fogo, revela,
melhora, pule o tempo, a oração e o soluço,
dá pureza ao pecado, limpidez à lembrança,
castigando e salvando toda uma vida inteira.

   Bem-vinda a noite com seu belo perigo.

 
Claudio Rodríguez
(1934-1999)
Tradução: José Bento
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
SINA

O dia amanheceu feliz,
Queria subir aos montes,
Queria beber nas fontes,
Queria perder-se nos largos horizontes...
Mas a vida não quis.


Miguel Torga
(1907-1995)
HAVIA NA MINHA RUA
 
 
Havia
na minha rua
uma árvore triste.

Quebrou-a o vento.

Ficou tombada,
dias e dias,
sem um lamento.

(Assim fiquei quando partiste...)
 
 
Saúl Dias
(1902-1983)
In "Poesia de Amor"
(Antologia Portuguesa)
Livraria Tavares Martins
Porto (1945)

sexta-feira, 19 de setembro de 2014



VADIAR A HORAS MORTAS


É na noite acolhedora
cheia de aromas dispersos
que me sinto mais abandonado,
mais só.
E a noite recebe-me, 

acalenta-me.

Quase me sinto feliz da minha solidão.

Noite,
chave da consolação
e da compreensão de tudo.
Vadiar
a horas mortas
nas ruas solitárias
de iluminação fraca.

Ouvir esquecido
o bater das horas na torre
ao longe.

Tempo que passa e que esqueço.


João José Cochofel
(1919-1982)
In "Instantes"
(1937)

quinta-feira, 18 de setembro de 2014


 A VIDA DA MORTE


Ouvir chover não mais, sentir-me vivo;
o universo convertido em bruma
e em cima a consciência como espuma
por onde as compassadas gotas crivo.

Morto em mim tudo quanto seja activo,
enquanto toda a visão a chuva esfuma,
e lá em baixo a abismo em que se suma
da clepsidra a água; e o arquivo

desta memória, de lembranças mudo;
o ânimo saciado em inércia forte;
sem lança e por isso já sem escudo,

todo à mercê dos vendavais da sorte;
este viver, que é o viver desnudo,
- não é acaso já o viver da morte?

Miguel de Unamuno
(1864-1936)
Tradução: José Bento


SEM TRANSACÇÃO



Sem transacção
nem balança,
tão boa a ternura 
  de uma criança!


Puro sol matinal
entre a verdura.
Levo a manhã pela mão,
orvalho sobre a secura.



João José Cochofel
(1919-1982)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

 PASSADO


As lembranças, esta sombra demasiado longa
do nosso breve corpo,
esta estria de morte
que deixamos vivendo,
as lúgubres e duradouras lembranças,
ei-las que aparecem:
melancólicos e mudos
fantasmas agitados por um vento fúnebre.
E não me és mais que uma lembrança.
Estás morta na minha memória.
Agora sim que posso dizer
que me pertences
e qualquer coisa entre nós aconteceu
irremediavelmente.
Tudo acabou tão rápido!
Precipitado e leve
o tempo reúne.
Dos fugitivos instantes se tece uma história
bem acabada e triste.
Devíamos saber que o amor
a vida cresta e faz voar o tempo.

Vincenzo Cardarelli
  (1887-1959)
(tradução: Jorge de Sena)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
GAIVOTAS


Não sei onde as gaivotas fazem ninho,
onde encontram a paz.
Sou como elas,
em perpétuo voo.
Raso a vida
como elas rasam a água
em busca de alimento.
E amo, talvez como elas, o sossego,
o grande sossego marinho,
mas o meu destino é viver
faiscando na tempestade.



Vincenzo Cardarelli
(1887-1959)
Tradução: Albano MARTINS
SE O TEMPO.


Se o tempo
fosse
uma flor, o seu
perfume
seria
esta luz
escorrendo
pelas escarpas
do dia.



Albano MARTINS
(N: 1930)


PALAVRAS FUNDAMENTAIS


Faz com que a tua vida seja
sino que repique
ou sulco onde floresça e frutifique
a árvore luminosa da ideia.
Alça a tua voz sobre a voz sem nome
de todos os demais, e faz com que ao lado
do poeta se veja o homem.

Enche o teu espírito de lume;
procura as eminências do cume
e, se o esteio nodoso do teu báculo
encontrar algum obstáculo ao teu intento,
sacode a asa do atrevimento
perante o atrevimento do obstáculo.


Nicolás Guillén
(1901-1990)
Tradução: Albano MARTINS

terça-feira, 16 de setembro de 2014

 A PAZ


Ter em minhas mãos
Uns jasmins com sol,
Com o primeiro sol;
Saber que amanhece
Em meu coração;
Ouvir de manhã
Uma única voz...

É tudo o que quero.

Regressar sem ódios,
Calmo adormecer,
Sonhar ter nas mãos
Silindras com sol,
Com o último sol;
Dormir escutando
Uma única voz...

É tudo o que quero.

Juan Ramón Jiménez
(1881-1956)
 Tradução: Manuel Bandeira

 REQUIEM PARA UM DEFUNTO VULGAR



 Antoninho morreu. Seu corpo resignado
é como um rio incolor, regressando à nascente
num silêncio de espanto e mistério revelado.
Está ali - estando ausente.

Jaz de corpo inteiro e fato preto.
Ele, da cabeça aos pés,
trivial e completo,
estátua de proa e moço de convés.

Jaz como se dormisse (pelo menos
é o que dizem as velhas carpideiras).
Jaz imóvel, sem gestos, sem acenos.
Jaz morto de todas as maneiras.

Jaz morto de cansaço, de pobreza, de fome
(sobretudo, de fome). Jaz morto sem remédio.
É apenas, sobre um papel azul, um nome.
De ser mais qualquer coisa, a morte impede-o.

Jaz alheio a tudo à sua volta,
à grita dos parentes, companheiros,
como um cavalo à rédea solta
ou no mar largo, os rápidos veleiros.

Jaz inútil, feio, pesado,
a colcha de crochet aconchega-o na cama.
Nunca esteve tão quente e animado.
Nunca foi tão menino de mama.

Os filhos olham-no e fazem contas cuidadosas:
padre, enterro, velório, certidão
de óbito... E discutem, com manhas de raposas,
os parcos bens e a possível divisão.

Entanto, sobre o leito que foi da vida de casado,
Antoninho jaz morto. Definitivamente.
Os parentes e amigos falam dele no passado.
A viúva serve copos de aguardente.

Daniel Filipe 
 (1925-1964)

PAZ AOS MORTOS


Detestei sempre os arquitectos de infinito:
como é feio fugir quando nos espera a vida!
Nunca tive saudades do futuro
e o passado... o passado vivi-o, que fazer?!
- e não gosto que me ordenem venerá-los
se eu todo não basto a encher este presente.

Não tenho remorsos do passado. O que vivi, vivi.
Tenho, talvez, desprezo
por esta débil haste que raramente soube
merecer os dons da vida,
e se ficava hesitante
na hora de passar da imaginação à vida.
As pazadas de terra cobrindo o que já fui
sabem mal, às vezes; noutros dias
deliro quando lanço à vala um desses seres tristonhos
que outrora fui, sem querer.



Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
In " Sempre e Sem Fim"

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

 ESTOU NU DIANTE DA ÁGUA.


Estou nu diante da água imóvel. Deixei a minha roupa
no silêncio dos últimos ramos.

Isto era o destino: 

chegar à margem e ter medo da quietude da água. 

António Gamoneda
  In "Livro do Frio"
Trad. de José Bento


 O DESTINO NÃO É UM LUGAR.



O caminho foi longo e houve névoa.
Porém, houve o espaço. Mas agora
adensou-se a névoa até ao ponto
de ser o espaço o muro que já roço.
Nele me deterei e, ao voltar
os olhos para trás, a mesma névoa
far-me-á tentar de novo o mesmo muro,
e, se eu dirigir o olhar ao céu
para ali me salvar, a negra névoa
irá cegar-me os olhos, e assim será
isso a que chamaste sono eterno.

Francisco Brines
(N: 1932)
Trad. de José Bento
 POR UM INCRUMPRIMENTO DO PRESSÁGIO



Não me envies dor. Já, minha vida,
me despedi há tempo do transtorno
que nos infundes cega. Muitos anos
o desejei supondo que ainda vinha.
Continuo a merecê-lo, mas agora
gostaria de desistir de sua vinda.
Despedir-me do mundo, com a ventura
que suspende os olhos do amante
seria graça maior que ter nascido.
Mas débil ante a dor e conhecendo
a matéria desprezível de que és feita,
não pares ante meus anos os teus passos,
não me ofereças aquilo que arrebatam
de tuas mãos os jovens. Dá-lhes,
a eles, com seu sabor, conhecimento;
se são agradecidos, vão amar-te
para sempre. Eu quero que os corpos
deixem seu belo fogo entre meus braços,
em troca de moedas ou palavras.
Mas o que já vivi, fique vivido;
Estou desabitado; não me tentes
Para ser infeliz tão fora de horas.

Francisco Brines
  (1932)
Tradução: José Bento


OS SINÓNIMOS.


Para lá da luz está a sombra,
e por trás da sombra não haverá luz
nem sombra. Nem silêncio, nem sons.
Chama-lhe eternidade, ou Deus, ou inferno.
Ou não lhe chames nada.
Como se nada tivesse acontecido.


Francisco Brines
(1932)

Trad. de José Bento
SAUDADE DE QUALQUER COISA


Saudade de qualquer coisa
que a memória, só ela,
realiza ainda.
Lembra e dói
apenas porque é finda.



A manhã sem sol nem música
cria-me melancolia.
Porque mastigo eu lágrimas que já não sinto
e me vergo em sobressaltos
já alisados pela tua mão?


A manhã fria
trouxe-me este absurdo desejo de Inverno
em pleno Verão.


João José Cochofel
(1919-1982)
In "Breve"
(Foto "Fel de Cão"
27 de Setembro de 2013 ).

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

DA FOME DAS COISAS


Da fome das coisas
nasceram palavras.
Da dor das palavras
romperam ideias.
Da luz das ideias
alargou-se o mundo.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "Beleza Prometida"

NUM CHÃO DE RAÍZES PERTURBADAS.


Num chão de raízes perturbadas
resoluto me enraízo.
Rasga-me a vida as ideias às facadas.
Por isso o meu anseio é tão preciso.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "Beleza Prometida"

quinta-feira, 11 de setembro de 2014


 ANÚNCIO.

Eu que cheguei em silêncio
falarei do Homem,
falarei dos homens sobre a terra,
do Rio dos homens sobre a terra.
E eu sei que não há dois homens iguais,
por isso eu os conheço todos um por um
e os chamo pelos seus nomes,
e no entanto eu sei que são o mesmo Homem,
espelho de mil faces.
Há alguma coisa mais admirável?
Eu que falo da multidão insolúvel como de um Rio,
falo do Homem cheio
de personalidade.
Eu falo do Homem jamais cativo
mesmo quando o fecharam com grades e paredes
e mordaças,
do Homem que nasceu livre e será livre
apesar de tudo!
e estou vendo a marcha invencível dos homens
e glorificando-a.


Papiniano Carlos
(1918-2012)
In "Estrada Nova"
(1946)
 FAÇAM-SE AS IDEIAS BELEZA.


Façam-se as ideias beleza.
Faça-se a beleza vontade.
Faça-se a vontade caminho.
E seja caminho o homem
e o homem o seu destino.


Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "Beleza Prometida"
(1950)
AS DÚVIDAS QUE TENHO IMPORTAM SÓ.


As dúvidas que tenho importam só
ao pobre coração com que as padeço.
Para os outros sou o homem que pareço.
Apenas para mim sou o que sou.
Lembro-me de que um dia serei pó,
mas nem por isso pelo pó me meço.
O meu fim único e único começo
são cada instante atónito em que estou.
Homem basta-me ser apenas um,
e mesmo esse o hei-de sempre erguer
contra mim próprio, com amargo zelo.
Só, um homem é menos que nenhum.
Mais que o que sou importa-me  saber
se o que
sou vale a pena de querê-lo.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "Beleza Prometida"
(V Volume do Cancioneiro Geral)
(1950)
INTERROGO-ME.


Interrogo-me.
Todo o homem lúcido se interroga
e a interrogar-se se descobre.

Meço-me.
Todo o homem forte se mede
e a medir-se se acha pouco.

Duvido.
Todo o homem que quer saber duvida
e a duvidar se fortalece.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "Beleza Prometida"
(V Volume do Cancioneiro Geral)
(Outubro de 1950)

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

POR RUAS TRISTES ME EMBRENHO.


Por ruas tristes me embrenho,
por ruas tristes me esqueço.
Esta gente que aqui mora
é apenas sombra dela.
Sinto que ter piedade
é ser pouco piedoso.
Mora aqui gente tão triste
que nem de o ser tem desgosto.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "Beleza Prometida"
(Outubro de 1950)

MUITAS VEZES, EM CERTAS HORAS BAÇAS.


Muitas vezes, em certas horas baças,
na minha escuridão sufoco brados,
de dúvidas, de medos, de cuidados,
de vergonhas, de mínimas desgraças.
Meu pensamento, porque pões mordaças?
Porque trazes os outros enganados?
A fome alheia não se joga aos dados.
Podem traí-la as confissões que faças.
Que importa que haja névoas nesta luz
com que ando a iludir-me no que sou,
se dela encho os que comigo vão?
Sirva o que o pensamento me deduz,
e não importe o que é o amargo pó
que a deduzi-lo ergo do meu chão.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "Beleza Prometida"
(Outubro de 1950)
A TEU LADO

A teu lado, amor,
não há muros, silêncio, morte.

Por cada espinho de aço cravado
em nossa carne,
há um rio de sangue e primavera.

Por cada bofetada,
um sorriso de criança.

Por cada insulto,
por cada punhalada,

uma seara, uma estrela, uma cidade.

Papiniano CARLOS
(1918-2012)
In "Caminhemos Serenos"
Edições Vértice
(Coimbra 1957)
MURAL


Não um anjo caído
nem um deus frustrado,
mas o Homem
maior que os anjos
e maior que os deuses,
criador de deuses e anjos,
construtor de si mesmo,
o Homem!
quantas vezes caído,
quantas vezes frustrado
mas, livre e invencível,
perpétuamente renovando
as asas e raízes.

Papiniano Carlos
(1918-2012)
In "Caminhemos Serenos"
Textos Vértice
(1957)

domingo, 7 de setembro de 2014

MAIS VALERA...

Baldadas, as tuas orações fervorosas,
vãs, as tuas vigílias sem cansaço,
inúteis, as tuas rugas que foram lágrimas, Mãe!
E são brancos os teus cabelos por ser negra a minha vida...

Todos os amparos pedidos para os meus passos,
todas as claridades imploradas para os meus caminhos,
todas as fontes solicitadas para as minhas sedes,
todos os vergéis requeridos para as minhas fomes,
todas as pedras com musgo seco rogadas para o meu descanso,
— tudo foi trocado para a felicidade doutra Mãe
que não orou, talvez, fervorosamente,
nem vigiou noites e noites um berço, como estrela,
nem, Mãe, chorou as lágrimas que deixaram no teu rosto essa tristeza.

Para mim veio este destino errante de poeta...
Comigo, a incerteza e frouxidão contínua de passos,
a escuridão em todos os caminhos inevitáveis,
a sede para que só há fontes secas,
a fome que nenhum fruto satisfaz,
as pedras ásperas onde o corpo não pode estender-se...

Mãe, porque não me levaram os ciganos?

Alberto de Serpa
(1906-1992)
In "Antologia Poética"

Prefácio à segunda edição de Novos Contos da Montanha (1944). 
S. Martinho de Anta, Setembro de 1945.
Querido leitor:
Escrevo-te da Montanha, do sítio onde medram as raízes deste livro. Vim ver a sepultura do Alma Grande e percorrer a via sacra da Mariana. Encontrei tudo como deixei o ano passado, quando da primeira edição destas aventuras.. Apenas vi mais fome, mais ignorância e mais desespero. Corre por estes montes um vento desolador de miséria que não deixa florir as urzes nem pastar os rebanhos.
O social juntou-se ao natural, e a lei anda de mãos dadas com o suão a acabar de secar os olhos e as fontes. Crestados e encarquilhados, os rostos dos velhos parecem pergaminhos milenários onde uma pena cruel traçou fundas e trágicas legendas. Na cara lisa dos novos pouca mais esperança há. Ora eu sou escritos, como sabes. Poeta, prosador, é na letra redonda que têm descanso as minhas angústias. Mas nem tudo se imprime. Ao lado do soneto ou do romance que a máquina estampa, fica na alma do artista a sua condição de homem gregário. E foi por isso que fiz aqui uma promessa que te transmito:
Que estava certo de que tu, habitante dos nateiros da planície, terias em breve compreensão e amor pela sorte áspera destes teus irmãos. Que um dia virias ao encontro da aridez e da tristeza contidas nas suas fragas, não como leitor do pitoresco ou do estranho, mas como sensível criatura tocada pela magia da arte e chamada pelos imperativos da vida.
Prometi isso porque me senti humilhado com tanto surro e com tanta lazeira, e envergonhado de representar o ingrato papel de cronista de um mundo que nem me pode ler. Tomei o compromisso em teu nome, o que quer dizer em nome da própria consciência colectiva. Na tua ideia, o que escrevo, como por exemplo estas histórias, é para te regalar, e se possível comover. Mas quero que saibas que ousei partir desse regalo e dessa comoção para te responsabilizar na salvação da casa que, por arder, te deslumbra os sentidos.

Teu
Miguel Torga
(1907-1995)

 
RIQUEZA

Por parques e praças,
Ruas e travessas,
Tu, meu olhar, caças
A vida. E tropeças.

Uma gargalhada
Vem dum par contente.
Guarda-a bem guardada,
Mas caminha em frente.

Surgem-te sorrisos
Dum e de outro lado.
Não faças juízos
Rápidos. Cuidado!

Uma face grave
Nada te revela?
Talvez a dor cave,
Só mais tarde, nela.

Num choro, num grito,
Pressentes a dor?
E quedas, aflito.
Seque, por favor!

Segue, bem aberto
Para cada canto!
Olha o desconcerto
Que parece tanto!

Corre, olhar, em roda!
O que me intimida?
A vida?Só toda
Pode amar-se, a vida.

Alberto de Serpa
In "Rua"
(1906-1992)

sábado, 6 de setembro de 2014

CÉU ESTRELADO

Saímos por aí a assobiar vagabundos
Embora uma bela mulher se veja
O leitor não a verá nem aos mundos
A que ela abre os braços dissoluta

Saímos por aí a assobiar vagabundos
Tomando á letra a lentidão dos vagões
Sucessivamente ensacada em adubos
Sacas brancas e cheiro a amoníaco

Saímos por aí a assobiar vagabundos
A promessa de voltar juntos
Á hora em que não há outro regresso
Os sonâmbulos erguem-se e caminham
(...)
José Falcão Tavares

( Médico, (Prémio Bial em 1991), escritor, poeta....e muito mais..)
( Excerto de "Casa, Casaca")

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

POEMA III

Como tu embriagas!
Vens, ó Poesia!, ou tumultuosa ou mansa,
Cerras o nosso olhar a estes tempos em chagas,
E cantas dentro em nós uma esperança.
És uma irmã que deixa
A fresca mão na nossa testa ardente,
Depois da luta que engrandece a queixa
Que temos sempre contra tanta gente.
És aquela que chega
— Se o tédio em nossas almas se insinua —
Sempre fácil e pronta para a entrega
Mais total e mais nua.
És tu, poesia, quem
— Quando nos prendem boca, mãos e pés —
A coragem raivosa nos mantém,
Ciciando-nos: “Talvez...”
Que bem hajas! Aqui
E em toda a parte, nossos passos guia!
Por cada hora, sejamos mais de ti,
E tu, mais nossa, Poesia!

Alberto de Serpa
(1906-1992)