domingo, 30 de março de 2014

ESPERAS.

Uma cidade ao fundo aguarda um vento.
Nela passas. Quem vê engana-se,
quem não olha conhece.
Olhar muito foi luz: cegos teus olhos.

Cala-te. A sombra avança. É a cidade que dorme ainda em mais sono.
Pó nocturno e olhos,
olhos nessa névoa escura. Em cima, a noite.
Cala-te. A solidão deitada também dorme.
Sozinho, nu,
esperas.

Vicente Aleixandre
(1898-1984)
Tradução: José Bento

sábado, 29 de março de 2014

MOMENTO NUM CAFÉ.

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

Manuel BANDEIRA
(1886-1968)
A SENTENÇA

Num velho livro topei com uma palavra escrita,
Que como um choque me marcou e ilumina toda a minha vida:
E quando me entrego ao prazer embotante,
E à essência prefiro a aparência, a mentira e o falso semblante,
Quando, de ânimo leve, a mim mesmo me engano com pequenos nadas,
Como se fosse clara a escuridão, como se a vida não tivesse mil portas
brutalmente fechadas,
E repito palavras cuja vastidão nunca senti,
Quando, com mãos aveludadas, o sonho bem-vindo me acaricia
E de trabalhos e dias me alivia,
Alienado do mundo, estranho à minha própria consciência,
Então ergue-se em mim essa palavra: Homem, torna à tua essência!

Ernst Stadler
(1835-1914)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
Trad. e João Barrento.
POUCO A POUCO O CAMPO SE ALARGA E SE DOURA.

Pouco a pouco o campo se alarga e se doura.
A manhã extravia-se pelos irregulares da planície.
Sou alheio ao espectáculo que vejo: vejo-o,
É exterior a mim. Nenhum sentimento me liga a ele.
E é esse sentimento que me liga à manhã que aparece.

Alberto Caeiro/Fernando PESSOA
(1888-1835)
QUEM ME MANDOU A MIM QUERER PERCEBER.

Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...
Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?
Quando o Verão me passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...

Alberto Caeiro/Fernando PESSOA
(1888-1935)

sexta-feira, 28 de março de 2014

SCHUMANN POR HOROWITZ.

São herança camponesa, as mãos.
Estas pequenas mãos, de geração
em geração, vêm de muito longe:
amassaram a cal, abriram sulcos
frementes na terra negra, semearam
e colheram, ordenharam cabras,
pegaram em forquilhas para limpar
currais: de sol a sol nenhum
trabalho lhes foi alheio.
Agora são assim: frágeis, delicadas,
nascidas para dar corpo a sons
que, noutras épocas, outras mãos
se obstinaram em escrever como
se escrevessem a própria vida.
Ao vê-las, ninguém diria que
a terra corria no seu sangue.
São mãos envelhecidas, mas no teclado
são capazes do inacreditável: juntar
nos mesmos compassos o rumor
dos bosques em Setembro e os risos
infantis a caminho do mar.

Eugénio de ANDRADE
(1923-2005)
HÁ UM ANCIÃO DIANTE DE UMA SENDA VAZIA.

Há um ancião diante de uma senda vazia. Ninguém
regressa da cidade longínqua; apenas o vento sobre as
últimas pegadas.

Eu sou a senda e o ancião, sou a cidade e o vento.

Antonio Gamoneda
In "Livro do Frio"
Trad. de José Bento.
NÃO TENHO MEDO NEM ESPERANÇA:

Não tenho medo nem esperança. De um hotel fora do
destino, vejo uma praia negra e, longínquas, as grandes
pálpebras de uma cidade cuja dor não me afecta.

Venho do metileno e do amor; tive frio debaixo dos
tubos da morte.

Agora contemplo o mar. Não tenho medo nem esperança.

Antonio Gamoneda
In "Livro do Frio"
Trad. de José Bento.

quarta-feira, 26 de março de 2014

NÃO TE CHAMO PARA TE CONHECER.

Não te chamo para te conhecer
Eu quero abrir os braços e sentir-te
Como a vela de um barco sente o vento

Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser

Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)

terça-feira, 25 de março de 2014

BEETHOVEN


As montanhas e os rios são talhados em silêncio.
O silêncio desceu do céu e tapou-me os ouvidos,
e as montanhas e os rios talhou-os o silêncio.
-Só tenho quatro sentidos.

O riso das crianças é aberto - mas não ri.
O grito dos homens é um rosto amachucado,
e grita, silencioso, no mundo que descobri
Em redor de mim - tudo calado.

Mas dentro do meu corpo - um mar tumultuoso,
Mas sem limites, como o pensamento,
- onde nada é repouso
e tudo é movimento.

As montanhas e os rios são talhados em silêncio.
Mas, dentro de mim, os homens caminham!
- Pisam a terra, as nuvens, o sol e o mar...

E o mar do meu corpo, rasgado e profundo,
relampeja e revela os homens que caminham
- e salta a minha surdez para inundar
e abrir novos sulcos nas praias do mundo.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Orfeu Canta"
(Pequena Antologia de Poesia Portuguesa sobre Música)
Org. de José da Cruz Santos.

segunda-feira, 24 de março de 2014

É ASSIM, A MÚSICA

A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
- sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração – por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas.

Eugénio de ANDRADE
(1923-2005)
MÚSICA

Vaga adolescência
que por mim perpassa.
É um olor de vento?
Um estado de Graça?

Um trecho de Mozart?
(Será de Ravel?)
Vontade de colher
rosas no papel

que abram o sorriso
a arder na luz fria
(o negrume do mar
abria e ardia)

ainda inconsciente,
sem o travo de mágoa
quando os olhos dela
se iluminam de água.

João José Cochofel
(1919-1982)

domingo, 23 de março de 2014

MÚSICA.

Esta música triste desprende-me do mundo.
Há quem possa explicá-la,
E nela apreenda frases
E descrições
E cores
E movimentos de alma.
Para mim, tem o encanto de tudo quanto é triste.
Ouço-a,
Os olhos fechados, a cabeça entre as mãos ...

Pouso nela a minha vida,
E não há mais simples nem mais bela música...

Alberto de Serpa
(1906-1992)
In "Orfeu Canta"
Pequena antologia de poesia portuguesa sobre música organizada por José da Cruz Santos.
DOIS COMPASSOS


Uma nota de guitarra
acordou na minha vida
uma história adormecida
a que a tristeza se agarra.

Um piano que tocou
uma coisa já ouvida
recordou uma hora ida
duma vida que passou.

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
In "Orfeu Canta"
Org. de José da Cruz Santos.
QUALQUER MÚSICA.

Qualquer música, ah, qualquer,
Logo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!

Qualquer música – guitarra,
Viola, harmônio, realejo…
Um canto que se desgarra…
Um sonho em que nada vejo…

Qualquer coisa que não vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida…
Que eu não sinta o coração!

Fernando PESSOA
(1888-1935)
In "Orfeu Canta"
(Pequena antologia de poesia portuguesa sobre música organizada por José da Cruz Santos)
QUARTO.

Que quietas estão as coisas
e que bem se está com elas!
Por toda a parte, suas mãos
com as nossas mãos se encontram.

Quantas discretas carícias,
que respeito pela ideia;
como olham, extasiadas,
o sonho que sonha alguém!

Como gostam do que outrem
gosta; como se esperam,
e, à nossa volta, que doces
nos sorriem, entreabertas!

Coisas – amigas, irmãs,
mulheres –, alegre verdade,
que nos devolveis, zelosas,
as mais fugazes estrelas!

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
Trad. de José BENTO.
CARTA DA INFÂNCIA

Amigo Luar:


Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te oiço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.

Carlos de OLIVEIRA
(1921-1981)
In "Terra de Harmonia"
(1950)
MADRUGADA

Rápidas mãos frias
retiram uma a uma
as vendas da sombra
Abro os olhos
Ainda
estou vivo
No centro
de uma ferida ainda fresca.

Octavio Paz
(México, 1914-1998)
Trad. de José Bento
PEDRA DE TOQUE.

Aparece
Ajuda-me a existir
Ajuda-te a existir
Ó inexistente pela qual existo
Ó pressentida que me pressente
Sonhada que me sonha
Aparecida desvanecida
Vem voa ascende desperta
Rompe diques avança
Moita de brancuras
Maré de armas brancas
Mar sem freio galopando na noite
Estrela erguida
Esplendor que te cravas no peito
(Canta ferida fecha-te boca)
Aparece
Folha em branco tatuada de outono
Formoso astro de ondulados movimentos de tigre
Vagaroso relâmpago
Fincada águia estremecida
Cai pluma flecha engalanada cai
Faz soar a hora do encontro
Relógio de Sangue
Pedra de toque desta vida

Octavio Paz
(1914-1998)
Trad. de Luís Pignatelli.
A GUERRA, QUE AFLIGE COM OS SEUS ESQUADRÕES.

A GUERRA, que aflige com os seus esquadrões o mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.

A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.

Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.

Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.

Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.

A química directa da natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.

A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.

Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa
(1888-1935)
BILHETE POSTAL.

Escrevo-te agasalhando o nosso amor,
que o tempo é este inverno sem disfarce:
Pelos meus olhos fartos de miséria
Mereço bem a luz da tua face.


Mas no meu coração as pobres coisas
choram, a cada lágrima exigida,
a tristeza precisa pra que eu saiba
quanto custa a alegria de uma vida!

Carlos de OLIVEIRA
(1921-1981)

sábado, 22 de março de 2014

SONHOS

Certas noites sigo uma luz amarela
até uma porta azul, onde se lê: Sonho.
A porta não é aberta por minha mão
nem sou convidado por uma mulher
pra comprar sonhos, e mesmo assim
sempre eles foram pagos por mim.
À noite não fiquei nada a dever.

Pierre Kemp
(1886-1967)
Trad. de Fernando Venâncio.

segunda-feira, 17 de março de 2014

EU QUE ME AGUENTE COMIGO.

Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim.

Álvaro de Campos / Fernando PESSOA
(1888-1935)

segunda-feira, 10 de março de 2014

OS DIAS ÍNTIMOS

Mói música um realejo,
poético de convenção.
Mas é hoje o que agrada
ao meu coração.

Com castanhas assadas,
chuva na imaginação,
e luzes molhadas
no asfalto do chão,

Egoísmo de bicho,
simulado ou não,
mas que bem me sabe
esta solidão.

Ó comedida felicidade,
com teu ópio vão
sobre tanta náusea
passa a tua mão.

João José Cochofel
(1919-1982)
PARAÍSO PERDIDO.

Que vens aqui fazer, espírito velho
de tudo o que foi perdido
e nunca mais achei?

Então...
ainda eu olhava o mundo
com meus olhos de manhãs azuis,
e nos lábios
havia ainda a ternura dos beijos moços
como a relva dos prados.

Foi mais tarde...
que a vida me entardeceu.

(Tardes enevoadas e frias,
abandonadas,
ermas
tristes como eu... )
Foi mais tarde...
que a tal desgraça se deu.

João José Cochofel
(1919-1982)

sábado, 8 de março de 2014

MULTIDÃO

Esta gente que vai e vem,
de cá para lá,
de lá para cá,
que se cruza comigo,
que esbarra comigo,
que tem com certeza
os seus dramas iguais aos meus,
as suas esperanças iguais à minhas,
não sabe nada da minha vida,
nem eu sei dos seus segredos.
Cada um segue absorto em si
como se fosse de olhos fechados
e não tivesse as mãos para dar
a outras mãos desamparadas.

Armindo RODRIGUES
(1904-1983)
In "Voz Arremassada ao Caminho"
EX-LIBRIS

Todos bebem o seu vinho,
De qualquer modo, - mesmo os que não bebem:
Porque também é vinho o que concebem
Para esquecer o caminho.
A Poesia, é o meu vinho;
- Que importa o que os outros bebem?!

Carlos Queirós
(1907-1949)

sexta-feira, 7 de março de 2014

EXISTIAM TUAS MÃOS

Um dia o mundo ficou em silêncio;
as árvores, acima, eram profundas e majestosas,
e nós sentimos sob nossa pele
o movimento da terra.

Tuas mãos foram suaves nas minhas
E eu senti a gravidade e a luz
E que vivias em meu coração.

Tudo era verdade sob as árvores,
tudo era verdade. Eu compreendia
todas as coisas como se compreende
um fruto com a boca, uma luz com os olhos.

Antonio Gamoneda
Trad. Thiago Ponces de Moraes.
PROPONHO A MINHA CABEÇA ATORMENTADA.

Proponho a minha cabeça atormentada
pela sede e pela sepultura. Eu queria
expelir um som de alegria;
mas soo a matéria desolada.

Justifico-me na dor. Não há nada;
não encontro nos meus ossos a cobardia.
Em meu canto inverte-se a agonia;
é um caso de luz incorporada.

Proponho a minha cabeça para se houver
necessidade de suportar um raio.
Não falo apenas por mim. Digo, juro

que a beleza é necessária. Morra
o que deve morrer; o que calo.
Não toques, Deus, meu coração impuro.

Antonio Gamoneda
In " Oração Fria"
Trad. de João Moita
TRAUTEANDO NAZIM


Tenho ruídos na nuca, doutor.
Sinto o crânio apertar e ranger,
sobretudo se há lamúrias. Não sei...
Já há sete anos, doutor,
que em vez de pensamento tenho um ruído
e uma massa tristíssima na cabeça

Farei o que me disser;  terei
paciência e confiança. Pode ser.
Tomarei os remédios
para poder pensar nos meus amigos.

Mas se o que acontece, doutor,
é que tenho algum mal que se produz
a expensas do amor
e do pensamento de resistência,
então deixai.o; ele não é
mais que o nosso som natural.
 Viverei
melhor com esse ruído na cabeça.

António Gamoneda
In "Oração Fria"
Trad. de João Moita.







PASSEI TODA A NOITE.
Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela, 
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.  
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala, 
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
  
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela. 
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.  
Quero só Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.
Alberto Caeiro/Fernando Pessoa
(1888-1935)

quarta-feira, 5 de março de 2014

QUISERA ESTAR SÓ NO SUL


Talvez meus lentos olhos não vejam mais o sul
De ligeiras paisagens adormecidas no ar,
Com corpos à sombra de ramos como flores
Ou fugindo num galope de cavalos furiosos.

O sul é um deserto que chora enquanto canta,
E não se extingue essa voz como pássaro morto;
Para o mar encaminha os desejos amargos
Abrindo um eco débil que vive lentamente.

No sul tão distante quero estar confundido.
A chuva ali não é mais que rosa entreaberta.
A própria névoa ri: um riso branco no vento.
Obscuridade ou luz, ali são belezas iguais.


Luis Cernuda
(1902-1963)
Trad. de Eugénio de Andrade.

MONUMENTO




O pelourinho é talhado em cantaria
- Verdadeiro estilo manuelino –
E foi mesmo colocado
Diante da Câmara Municipal.

Antigamente… (ninguém se recorda!)
Serviu para prender os servos
Que levavam chicotadas!

Hoje… (todos se orgulham!)
É monumento nacional
E até já esteve na Exposição de Paris!
 
Amândio César
(1921-1987)
PROTESTO

São como flores fanadas os fúteis alfarrábios,
estagnados e doentios como a água adormecida,
do senhor dom artista que não quis colar os lábios
contra os seios da vida.

O homem que vende livros na velha padiola
expõe o romance da sua vida nessa espécie de montra
e grita contra os romances onde a vida estiola
em maciezas de lontra.

E em todos os cantos e recantos da rua
gritam contra os versos mornos, versos mansos, versos falsos,
as mulheres bem vestidas que ganham a vida nuas
e os garotos descalços

Sidónio Muralha
(1920-1982)
SALMO

A vida
é o bago de uva
macerado
nos lagares do mundo
e aqui se diz
para proveito dos que vivem
que a dor
é vã
e o vinho
breve.

Carlos de OLIVEIRA
(1921-1981)
OUVI OS SÁBIOS TODOS DISCUTIR

Ouvi os sábios todos discutir,
Podia a todos refutar a rir.
Mas preferi, bebendo na ampla sombra,
Indefinidamente só ouvir.

Manda quem manda porque manda, nem
Importa que mal mande ou mande bem.
Todos são grandes quando a hora é sua.
Por baixo cada um é o mesmo alguém.

Não invejo a pompa, e ao poder,
Visto que pode, sem razão nem ser.
Obedece, que a vida dura pouco
Nem há por isso muito que sofrer.

Fernando PESSOA
(1888-1935)

terça-feira, 4 de março de 2014

CALMARIA.

Mar!
o teu cântico verde-azul
insinuou-se-me no sangue,
salgou-me os lábios.
E o corpo inteiro
ressou-me de ecos silenciosos
esmaecidos em bruma;
os sentidos,
temperados de Sol e água,
espreguiçaram-se indolentes de ritmo.
Rara
esta inteireza de espírito,
quando nem o passado deixou resíduos
nem o futuro espreita...

João José Cochofel
(1919-1982)
QUANTAS VEZES CAMINHEI PELA PRAIA.

Quantas vezes caminhei pela praia
à espera que viesses. Luas inteiras.
Praias de cinza invadidas pelo vento.
Quantas estações quantas noites
indormidas. embranqueceram-me
os cabelos. E só hoje
quando exausto me deitei em mim
reparei
que sempre estiveste a meu lado.
Na cal frágil dos meus ossos.
Nas hastes do mar infiltradas
no sangue. Na película
dos meus olhos quase cegos

Casimiro de Brito
CREIO NO MUNDO COMO NUM MALMEQUER:

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Fernando Pessoa
(1888-1935)
In "Poesia de Alberto Caeiro"

segunda-feira, 3 de março de 2014

NOITES SEM NOME.

Noites sem nome, do tempo desligadas,
Solidão mais pura do que o fogo e a água,
Silêncio altíssimo e brilhante.

As imagens vivem e vão cantando libertadas
E no secreto murmurar de cada instante
Colhi a absolvição de toda a mágoa.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)

domingo, 2 de março de 2014

É ASSIM

É assim:
a gente despede-se, vai-se
embora amaldiçoando a terra,
carrega amargura que nem o diabo
aguenta; com o tempo vai
esquecendo injustiças, mágoas,
injúrias, morrendo por regressar
ao cheiro da palha seca, ao calor
animal do estábulo
ao sonho do quintalório
com três alqueires de milho ao sol
e dois pinheiros bravos-
porque não há no mundo
outro lugar onde
enfim dê tanto gosto chafurdar.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)
RETRATO

Um silêncio, um olhar, uma palavra:
Nasceste assim na minha vida,
Inesperada flor de aroma denso,
Tão casual e breve...

Já te visionara no meu sonho,
Imagem de segredo, esparsa ao vento
Da noite rubra, delicada, intacta.
E pressentira teu hálito na sombra
Que minhas mãos desenham, inquietas.

Existias em mim. O teu olhar
Onde cintila, pura, a madrugada,
Guardara-o no meu peito, ó invisível,
Flutuante apelo das raízes
Que teimam em prender-te, minha vida!

Luís AMARO
In "366 Poemas que Falam de Amor"
Uma antologia organizada por Vasco Graça Moura.
RAÍZES

Velhas pedras que pisei
saiam da vossa mudez
venham dizer o que sei
venham falar português
sejam duras como a lei
e puras como a nudez.

Minha lágrima salgada
caíu no lenço da vida
foi lembrança naufragada
e para sempre perdida
foi vaga despedaçada
contra o cais da despedida.

Visitei tantos países
conheci tanto luar
nos olhos dos infelizes
e porque me hei-de gastar?
vou ao fundo das raízes
e hei-de gastar-me a cantar.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
PERFIL

Não. Não tenho limites.
Quero de tudo
Tudo.
O ramo que sacudo
Fica varejado.
Já nascido em pecado,
Todos os meus pecados são mortais.
Todos tão naturais
À minha condição,
Que quando, por exceção,
Os não pratico
É que me mortifico.

Alma perdida
Antes de se perder,
Sou uma fome incontida
De viver.
E o que redime a vida
É ela não caber
Em nenhuma medida.

Miguel TORGA
(1907-1995)
ESTOU LOUCO.

Estou louco, é evidente!
Mas que louco é que estou?
É por ser mais sonhador
que gente que sou louco?
Ou é por ter mais completa
a noção de ser pouco?

Aberto Caeiro / Fernando PESSOA
(1888-1935)
QUEM, COMO EU, SOFRE...

Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol,
como não há-de sofrer no escuro do dia
sempre encoberto da sua vida?

O meu isolamento não é a busca da felicidade,
que não tenho alma para conseguir;
nem de tranquilidade, que ninguém obtém
senão quando nunca a perder,
mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.

As quatro paredes do meu quarto pobre são-me,
ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão.
As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada,
não quero nada, não sonho sequer,
perdido num torpor de mero musgo
que crescesse na superfície da vida.
Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada
ante o sabor da morte e do apagamento.

Fernando PESSOA
(1888-1935)
CASTELOS TOMBADOS


Altos castelos tombados
De sonhos desiludidos
Arquitecturas tamanhas
Tecidas por mãos estranhas
Juncam o chão.

Nasce outro dia
Sobre as ruínas de há pouco.
E no tempo
Essas ruínas tão grandes
De sonhos tão desmedidos
Fazem apenas figura
Dum grão de areia sem peso
Leve ao acaso do vento...

Adolfo Casais MONTEIRO
(1908-1972)
QUE É VOAR?

Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo,os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência

E isso é voar?
Não.

Voar é humano
é transitório, momentâneo...

Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.

Ana Hatherly
HÁ UM ANCIÃO...

Há um ancião diante de uma senda vazia. Ninguém
regressa da cidade longínqua: apenas o vento
sobre as últimas pegadas.

Eu sou a senda e o ancião, sou a cidade e o vento.

António Gamoneda
In "Livro do Frio"
Trad. de José Bento.
É TUDO TÃO PEQUENO ESTA MANHÃ.

É tudo tão pequeno esta manhã.

As aves acordaram surpreendidas,
a voarem nos meus olhos
curvas fatigadas
de Primavera morta…

As mãos caem-me secas
ao longo do corpo
em folhas recortadas
de árvore de solidão…

As raízes sugam-me nas veias
o sangue da terra
das manhãs de sussurro…

Sim. Hoje só eu existo…

Eu com este remorso de gota de água
que se recusa a cair no mar
─ para se sentir maior
longe da cólera comum da Tempestade.

José GOMES FERREIRA
(1900-1985)