domingo, 30 de setembro de 2012
Tenho quarenta janelas nas paredes do meu quarto. Sem vidros nem bambinelas posso ver através delas o mundo em que me reparto. Por uma entra a luz do Sol, por outra a luz do luar, por outra a luz das estrelas que andam no céu a rolar. Por esta entra a Via Láctea como um vapor de algodão, por aquela a luz dos homens, pela outra a escuridão. Pela maior entra o espanto, pela menor a certeza, pela da frente a beleza que inunda de canto a canto. Pela quadrada entra a esperança de quatro lados iguais, quatro arestas, quatro vértices, quatro pontos cardeais. Pela redonda entra o sonho, que as vigias são redondas, e o sonho afaga e embala à semelhança das ondas. Por além entra a tristeza, por aquela entra a saudade, e o desejo, e a humildade, e o silêncio, e a surpresa, e o amor dos homens, e o tédio, e o medo, e a melancolia, e essa fome sem remédio a que se chama poesia, e a inocência, e a bondade, e a dor própria, e a dor alheia, e a paixão que se incendeia, e a viuvez, e a piedade, e o grande pássaro branco, e o grande pássaro negro que se olham obliquamente, arrepiados de medo, todos os risos e choros, todas as fomes e sedes, tudo alonga a sua sombra nas minhas quatro paredes. Oh janelas do meu quarto, quem vos pudesse rasgar! Com tanta janela aberta falta-me a luz e o ar. António Gedeão (1906-1997) |
domingo, 16 de setembro de 2012
COMUNHÃO
Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo eu no centro.
Nenhum tinha rosto.
Eram reconhecíveis pela expressão corporal e pelo que diziam no silêncio de suas roupas além da moda e de tecidos;
roupas não anunciadas nem vendidas.
Nenhum tinha rosto.
O que diziam escusava resposta, ficava, parado, suspenso no salão, objecto denso, tranquilo.
Notei um lugar vazio na roda.
Lentamente fui ocupá-lo.
Surgiram todos os rostos, iluminados.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Extrai Todos os Dias
Extrai do todos-os-dias
O hoje de todo-o-sempre
Até ao fim do mundo
Quando o sol gelar
A última eternidade.
Embala amanhã nos braços dos outros
A criança esquecida
Que foi agora atropelada
Por mil automóveis
Em todas as ruas do mundo.
Procura nas lágrimas recentes
Os olhos de hão-de chorá-las
Daqui a dez mil anos.
E se queres a glória
De ser ignorado
Pelo egoísmo do futuro
Ouve, poeta do desdém novo:
Canta os mortos das barricadas
E a volúpia das dores do tempo.
(Mas pede às rosas
que continuem a repetir-se
até o fim das pedras…
(1900-1985)
CANÇÃO
À janela da casa,
Ave só na lembrança,
Já nem levanta a asa
Que a mãe lhe deu de herança.
A sua dor é clara:
Bate-lhe o sol em cheio;
Um sol branco, que vara
Tudo de meio a meio.
Não é sede nem fome
(Água tem ela à mão,
E comida, que não come),
Doença má também não.
Só essa dor lhe dói.
Mas só por ela há-de
Não ser o ser que foi.
Miguel Torga
(1907-1995)
Lisboa, Cadeia do Aljube, 30 de Dezembro de 1939
In "Diário I" (1941)
VOZ SEM ECO
Chamo para dentro de mim,
a ver se encontro o caminho,
a ver se sei o que sou.
Mas nenhum eco me responde,
nenhuma chama se acende,
nenhum fantasma desperta.
E vou dar com a minha sombra
a tirar estrelas de um poço.
Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "A Esperança Desesperada"
Edição de 1948 ( Dedicada "Ao Carlos de Oliveira e ao Joaquim Namorado")
sábado, 15 de setembro de 2012
TODA ESSA ANGÚSTIA...
Toda essa angústia que te esmaga os ombros
Esse morder de lábios impotentes
As próprias mãos nervosas e hiantes
São a linha da fúria - fúria aos tombos
nos teus olhos encovados e ardentes
atónitos retratando os cambiantes
da vida que te pesa nos sentidos
e em que todas as bocas estão fechadas
e todos os braços estão caídos
e todas as cabeças estão vergadas
Eu te conheço como aos dedos hirtos
duma criança morta de desprêso
eu via-a eu chorei-a eu senti
a dor da mãe sem caldo e sem remédios
(louca de fúria pobre louca aos gritos
arrepelando a morte no seu seio)
enquanto os dedos flácidos e nédios
guinam o carro desse homem cheio
na esquina escura deste bairro escuro
e o pão é ensopado no vinagre
(os farois iluminam num cartaz
qualquer marca de leite condensado)
Vinagre sim que as lágrimas e o sangue
são o fel deste povo condenado
Entretanto os jornais falam de paz
e os pobres adormecem sem telhado.
João Apolinário
(1924-1988)
In "O Guardador de Automóveis"
Edição de 29 de Dezembro de 1956
-500 exemplares impressos por conta e risco do autor-
(Poema escrito conforme o original)
ACRE E DURA CARNE
vê-la tão seca na matriz
Acre e dura carne (austera)
no coração do meu país
vem da névoa cega e fria
Rastros de carro do sol
carregando o corpo do dia
da voz: Morda aguente e fique!
E os pinhais –cascos de barcos
que navegaram a pique
Na pedra mais pedra mais secreta
abre-se e rasga-se uma boca
onde um pássaro canta e dejecta
naturais de alma e corpo ao léu
trazem nos ventres o demo
e à flor dos cornos o céu
Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Ciclo de Pedras"
Edição de Maio 1964.
CARTA DE CHAMADA
Latitude Norte 1 de Janeiro
Meu irmão: porque não vieste?
Ando no mar Sou marinheiro
Mal sabes o bem que tu perdeste
Vogamos de porto em porto
Como as aves de ramo em ramo
Por isso quando te chamo
ao romper do novo ano
Sou mais livre e mais humano
E tu irmão absorto?
E tu irmão absorto
de fronte caída
nos mapas onde o mar é morto
e morta a vida?
Deixa os teus horizontes pequenos
e vem meu irmão e meu amigo
vem ver ao menos
o mar que trago comigo.
Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Ciclo de Pedras"
Edição de Maio de 1964.
quarta-feira, 12 de setembro de 2012
CORREDOR
Cem metros à sombra – temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
Neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.
Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de pez.
E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.
E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha de railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes nos cais
E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança
Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
ITINERÁRIO
Os milhares de anos que passaram viram
a nossa escravidão.
NÓS carregámos as pedras das pirâmides,
o chicote estalou,
abriu rios de sangue no nosso dorso.
NÓS empunhámos nas galés dos césares
os abomináveis remos
e o chicote estalou de novo na nossa pele.
A terra que há milhares de anos arroteámos
não é nossa,
e só NÓS a fecundamos!
E quem abriu as artérias? quem rasgou os pés?
quem sofreu as guerras? quem apodreceu ao abandono?
E quem cerrou os dentes, quem cerrou os dentes
e esperou?
Spartacus voltará: milhões de Spartacus!
Os anos que aí vêm hão-de ver
a nossa libertação.
Papiniano Carlos
terça-feira, 11 de setembro de 2012
MORNA
É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.
os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.
(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta!)
E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
- subtil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.
Daniel Filipe
(1925-1964)
In "A Ilha e a Solidão"
SONETO DA METAMORFOSE
Mãos, simples mãos, moldaram os meus versos
e pés humanos pisam o que escrevo.
Aos outros que conquistem universos
e a mim que pague ao povo o que lhe devo.
Mesmo que os dias sejam adversos,
é um trevo a missão a que me atrevo,
dia e noite seus gestos são diversos
- detesta o escuro, de dia abre-se o trevo.
Abre-se como o pranto, como as fontes
que irrompem das montanhas e dos montes,
descem aos vales, vão até às casas...
Um soneto estremece a manhã cálida
e o povo, num silêncio de crisálida,
forja, no sofrimento, as suas asas.
Sidónio Muralha
(1920-1982)
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
OS CICLISTAS
Com um surdo rumor de escavadora
ressoa no subsolo a tua voz.
Muitos tapam os ouvidos delicados.
Outros escondem-se para a não ouvir.
E outros estremecem de pavor.
Mas, rápidos, os ciclistas pedalam
na bruma dos subúrbios ao teu encontro.
Rosto baixo, mãos no guiador, pés
bem firmes nos pedais, geram
o movimento, o ritmo alado
das máquinas frágeis que cavalgam
ao amanhecer. Perpassam como espectros
sob a bruma e juntam-se, confluem,
avançam como um rio poderoso
sobre a cidade adormecida.
Os ciclistas. Os que erguem os andaimes
E fazem girar os fusos dos teares.
Os que movem as gruas. Os que transportam
O dinamite nas mãos calosas.
Os que não sabem envelhecer de tédio
à mesa do café nem vivem de mercadejar
preservativos, palavras, casas pré-fabricadas.
Os que não sonham morrer em glória
como jovens deuses trespassados na batalha.
Os que não hão-de apodrecer, como muitos de nós,
roídos de lepra e desespero.
Esses merecem bem a tua voz, Orfeu.
Papiniano Carlos
In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"
Fevereiro de 1973.
SOBRE O LUGAR DO CANTO
A mentira e seus rebentos
O ódio
espesso e a sua constelação sombria
A cólera terrível da terra
que não sustenta a raiz do espaço
e se deita na terra de boca para baixo.
A palavra que nasce sem destino.
O sangue que não semeia mais que sangue.
O pão usurpado da habitação do homem.
A caridade opaca do usurário sórdido.
A simonia da inteligência.
O medo e os seus profetas.
Um fruto triste separa-se e cede
mais débil que a sua própria podridão.
Esta é a hora, este é o tempo
- sou filho desta história-
este é o lugar que um dia
foi chão prodigioso de uma casa mais vasta.
José Ángel Valente
(1929-2000)
IN "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.
domingo, 9 de setembro de 2012
PRIMEIRO CANTAR SOBRE A ÍNDIA
Lisboa morre de fome
debaixo dos seus alpendres
a mesma fome
dos campos
o rei não paga
o que pede
de juros exorbitantes.
Quem se atreve a afirmar
que a nação se arruína?
vêm cheias de brilhantes
as naus que tornam
da Índia.
Os fidalgos trazem
escravos
e sapatos de pelica.
O pão não canta
no campo
nem os homens nas ruínas.
Que faz o rei
pelos campos donde os homens
se afugentam?
Lisboa constrói
a fome
e os fidalgos
opulentos.
A cânfora e a cambraia
não alimentam o povo
que faz o rei
da fazenda
e das rendas do tesouro?
Saem os homens
sedentos
das naus que vão para a Índia.
Lisboa constrói
a fome
E os campos sem homens
quem será que os afirma?
Maria Teresa Horta
In "Cancioneiro da Esperança"
Seara Nova 1971
A CADA UM CHEGA UM POUCO...
A cada um chega um pouco
do que para todos chega.
Quem o quer diz-se que é louco.
Mas por que é que se lho nega?
É porque a verdade assusta
que a mentira persuade.
A unidade mais justa
nasce da variedade.
Querer só não é querer.
Não há querer sem acção.
O próprio pão, para o ser,
primeiro rebenta o chão.
Armindo Rodrigues
(1904-1993)