domingo, 30 de setembro de 2012

ALDEIA

Sobre o monte nu
um calvário.
Água clara
e olivais centenários.
Pelas vielas
homens embuçados
e nas torres
cataventos girando.
Eternamente
girando.
Oh, aldeia perdida,
na Andaluzia do pranto!

Federico García Lorca
(1898-1936)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.
NÃO ROUBES


Não roubes
à tua pura solidão
teu ser calado e firme.
Evita o necessário
explicar-te a ti mesmo
contra quase toda gente.
Tu sozinho encherás
inteiramente o mundo.

Juan Rámon Jimenez
(1881-1958)
Trad. de José Bento.


AURORA BOREAL

Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.
 
António Gedeão
(1906-1997) 

domingo, 16 de setembro de 2012


COMUNHÃO

Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo eu no centro.
Nenhum tinha rosto.
Eram reconhecíveis pela expressão corporal e pelo que diziam no silêncio de suas roupas além da moda e de tecidos;
roupas não anunciadas nem vendidas.
Nenhum tinha rosto.
O que diziam escusava resposta, ficava, parado, suspenso no salão, objecto denso, tranquilo.
Notei um lugar vazio na roda.
Lentamente fui ocupá-lo.
Surgiram todos os rostos, iluminados.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Extrai Todos os Dias

Extrai do todos-os-dias
O hoje de todo-o-sempre
Até ao fim do mundo
Quando o sol gelar
A última eternidade.
Embala amanhã nos braços dos outros
A criança esquecida
Que foi agora atropelada
Por mil automóveis
Em todas as ruas do mundo.

Procura nas lágrimas recentes
Os olhos de hão-de chorá-las
Daqui a dez mil anos.

E se queres a glória
De ser ignorado
Pelo egoísmo do futuro
Ouve, poeta do desdém novo:
Canta os mortos das barricadas
E a volúpia das dores do tempo.

(Mas pede às rosas
que continuem a repetir-se
até o fim das pedras…

José Gomes Ferreira
(1900-1985)




CANÇÃO

À janela da casa,
Ave só na lembrança,
Já nem levanta a asa
Que a mãe lhe deu de herança.

A sua dor é clara:
Bate-lhe o sol em cheio;
Um sol branco, que vara
Tudo de meio a meio.

Não é sede nem fome
(Água tem ela à mão,
E comida, que não come),
Doença má também não.

Falta-lhe a liberdade.
Só essa dor lhe dói.
Mas só por ela há-de
Não ser o ser que foi.

Miguel Torga
(1907-1995)
Lisboa, Cadeia do Aljube, 30 de Dezembro de 1939
In "Diário I" (1941)






VOZ SEM ECO


Chamo para dentro de mim,
a ver se encontro o caminho,
a ver se sei o que sou.

Mas nenhum eco me responde,
nenhuma chama se acende,
nenhum fantasma desperta.

E vou dar com a minha sombra
a tirar estrelas de um poço.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "A Esperança Desesperada"
Edição de 1948 ( Dedicada "Ao Carlos de Oliveira e ao Joaquim Namorado")

sábado, 15 de setembro de 2012


TODA ESSA ANGÚSTIA...


Toda essa angústia que te esmaga os ombros
Esse morder de lábios impotentes
As próprias mãos nervosas e hiantes
São a linha da fúria - fúria aos tombos
nos teus olhos encovados e ardentes
atónitos retratando os cambiantes
da vida que te pesa nos sentidos
e em que todas as bocas estão fechadas
e todos os braços estão caídos
e todas as cabeças estão vergadas

Eu te conheço como aos dedos hirtos
duma criança morta de desprêso
eu via-a eu chorei-a eu senti
a dor da mãe sem caldo e sem remédios
(louca de fúria pobre louca aos gritos
arrepelando a morte no seu seio)
enquanto os dedos flácidos e nédios
guinam o carro desse homem cheio
na esquina escura deste bairro escuro
e o pão é ensopado no vinagre

(os farois iluminam num cartaz
qualquer marca de leite condensado)

Vinagre sim que as lágrimas e o sangue
são o fel deste povo condenado

Entretanto os jornais falam de paz
e os pobres adormecem sem telhado.

João Apolinário
(1924-1988)
In "O Guardador de Automóveis"
Edição de 29 de Dezembro de 1956
-500 exemplares impressos por conta e risco do autor-
(Poema escrito conforme o original)

ACRE E DURA CARNE


Pátria onde nasci Desespera
vê-la tão seca na matriz
Acre e dura carne (austera)
no coração do meu país

Flor de saibro O rosto mole
vem da névoa cega e fria
Rastros de carro do sol
carregando o corpo do dia

Ondas de pedra –a fúria nos arcos
da voz: Morda aguente e fique!
E os pinhais –cascos de barcos
que navegaram a pique

Mentira o Fado que se toca:
Na pedra mais pedra mais secreta
abre-se e rasga-se uma boca
onde um pássaro canta e dejecta

Lá a cabra o vento o poeta
naturais de alma e corpo ao léu
trazem nos ventres o demo
e à flor dos cornos o céu

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Ciclo de Pedras"
Edição de Maio 1964.

CARTA DE CHAMADA


Latitude Norte 1 de Janeiro

Meu irmão: porque não vieste?
Ando no mar Sou marinheiro
Mal sabes o bem que tu perdeste
Vogamos de porto em porto
Como as aves de ramo em ramo
Por isso quando te chamo
ao romper do novo ano
Sou mais livre e mais humano

E tu irmão absorto?

E tu irmão absorto
de fronte caída
nos mapas onde o mar é morto
e morta a vida?

Deixa os teus horizontes pequenos
e vem meu irmão e meu amigo
vem ver ao menos
o mar que trago comigo.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Ciclo de Pedras"
Edição de Maio de 1964.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012


CORREDOR

Cem metros à sombra – temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
Neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.

Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de pez.

E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.

E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha de railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes nos cais

E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)

ITINERÁRIO


Os milhares de anos que passaram viram
a nossa escravidão.

NÓS carregámos as pedras das pirâmides,
o chicote estalou,
abriu rios de sangue no nosso dorso.
NÓS empunhámos nas galés dos césares
os abomináveis remos
e o chicote estalou de novo na nossa pele.
A terra que há milhares de anos arroteámos
não é nossa,
e só NÓS a fecundamos!
E quem abriu as artérias? quem rasgou os pés?
quem sofreu as guerras? quem apodreceu ao abandono?

E quem cerrou os dentes, quem cerrou os dentes
e esperou?

Spartacus voltará: milhões de Spartacus!

Os anos que aí vêm hão-de ver
a nossa libertação.


Papiniano Carlos

terça-feira, 11 de setembro de 2012


MORNA

É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.

os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.

(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta!)

E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
- subtil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.

Daniel Filipe
(1925-1964)
In "A Ilha e a Solidão"

OS CAMELOS


No deserto,
no deserto,

cem camelos,
mil camelos.

De longe e de perto
todos dizem ao vê-los:

- Como pode ser deserto
se está cheio de camelos?

Sidónio Muralha
(1920-1982)

SONETO DA METAMORFOSE


Mãos, simples mãos, moldaram os meus versos
e pés humanos pisam o que escrevo.
Aos outros que conquistem universos
e a mim que pague ao povo o que lhe devo.

Mesmo que os dias sejam adversos,
é um trevo a missão a que me atrevo,
dia e noite seus gestos são diversos
- detesta o escuro, de dia abre-se o trevo.

Abre-se como o pranto, como as fontes
que irrompem das montanhas e dos montes,
descem aos vales, vão até às casas...

Um soneto estremece a manhã cálida
e o povo, num silêncio de crisálida,
forja, no sofrimento, as suas asas.


Sidónio Muralha

(1920-1982)



segunda-feira, 10 de setembro de 2012



OS CICLISTAS



Com um surdo rumor de escavadora
ressoa no subsolo a tua voz.
Muitos tapam os ouvidos delicados.
Outros escondem-se para a não ouvir.
E outros estremecem de pavor.
Mas, rápidos, os ciclistas pedalam
na bruma dos subúrbios ao teu encontro.
Rosto baixo, mãos no guiador, pés
bem firmes nos pedais, geram
o movimento, o ritmo alado
das máquinas frágeis que cavalgam
ao amanhecer. Perpassam como espectros
sob a bruma e juntam-se, confluem,
avançam como um rio poderoso
sobre a cidade adormecida.
Os ciclistas. Os que erguem os andaimes
E fazem girar os fusos dos teares.
Os que movem as gruas. Os que transportam
O dinamite nas mãos calosas.
Os que não sabem envelhecer de tédio
à mesa do café nem vivem de mercadejar
preservativos, palavras, casas pré-fabricadas.
Os que não sonham morrer em glória
como jovens deuses trespassados na batalha.
Os que não hão-de apodrecer, como muitos de nós,
roídos de lepra e desespero.

Esses merecem bem a tua voz, Orfeu.

Papiniano Carlos
In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"
Fevereiro de 1973.

SOBRE O LUGAR DO CANTO


A mentira e seus rebentos
O ódio
espesso e a sua constelação sombria

A cólera terrível da terra
que não sustenta a raiz do espaço
e se deita na terra de boca para baixo.

A palavra que nasce sem destino.

O sangue que não semeia mais que sangue.

O pão usurpado da habitação do homem.

A caridade opaca do usurário sórdido.

A simonia da inteligência.

O medo e os seus profetas.

Um fruto triste separa-se e cede
mais débil que a sua própria podridão.

Esta é a hora, este é o tempo
- sou filho desta história-
este é o lugar que um dia
foi chão prodigioso de uma casa mais vasta.

José Ángel Valente
(1929-2000)
IN "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

Cálice "Chico Buarque e Milton Nascimento"

Fausto " Cantiga do desemprego"

domingo, 9 de setembro de 2012


PRIMEIRO CANTAR SOBRE A ÍNDIA

Lisboa morre de fome
debaixo dos seus alpendres

a mesma fome
dos campos

o rei não paga
o que pede
de juros exorbitantes.

Quem se atreve a afirmar
que a nação se arruína?

vêm cheias de brilhantes
as naus que tornam
da Índia.

Os fidalgos trazem
escravos
e sapatos de pelica.

O pão não canta
no campo
nem os homens nas ruínas.

Que faz o rei
pelos campos donde os homens
se afugentam?

Lisboa constrói
a fome

e os fidalgos
opulentos.

A cânfora e a cambraia
não alimentam o povo

que faz o rei
da fazenda
e das rendas do tesouro?

Saem os homens
sedentos
das naus que vão para a Índia.

Lisboa constrói
a fome

E os campos sem homens
quem será que os afirma?

Maria Teresa Horta

In "Cancioneiro da Esperança"

Seara Nova 1971


BONÉ DE PALA DESFEITA


Boné de pala desfeita
Um estigma de servidão
Coroa de espinhos ferrada
dolorosamente estreita
profundamente marcada
na palma da tua mão

A cabeça inclinada
e uma moeda no chão

João Apolinário
(1924-1988)
in" O Guardador de Automóveis)
Porto 1956.


A CADA UM CHEGA UM POUCO...


A cada um chega um pouco
do que para todos chega.
Quem o quer diz-se que é louco.
Mas por que é que se lho nega?
É porque a verdade assusta
que a mentira persuade.
A unidade mais justa
nasce da variedade.
Querer só não é querer.
Não há querer sem acção.
O próprio pão, para o ser,
primeiro rebenta o chão.


Armindo Rodrigues

(1904-1993)



RESISTÊNCIA

Não. Digo à explosão de ameaça
e à rapada paisagem do desterro.
E não. Digo à minha carcaça
encalhada em bancos de ferro
e ao cordame dos nervos, fustigado,
a ranger no silêncio a sós:
Por cada nervo quebrado
que se inventem mais nós.

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)