segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Adolfo Casais Monteiro


AÇO


Quebre-se de encontro à dureza das arestas
cada desregrada ilusão da minha vida.
Que os bichos vão roendo o vão caruncho
da inútil poeira de astros que imagino.
Que — sei-o bem! — lá no mais fundo,
forte e imarcescível sob os golpes
resiste a minha força verdadeira.
E o poema sempre novo no meu sangue
conhece também sua glória de aço
que vê sem dor as pobres farsas
e os caminhos cruéis em que me perco.
Veio da luz inutilizando os laços
armados no caminho à minha espera,
mão de ferro erguendo-se dos limbos
e mandando-me fitar o sol em face!


Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)

domingo, 30 de janeiro de 2011

Sidónio Muralha


ROTEIRO


Parar. Parar não paro.
Esquecer. Esquecer não esqueço.
Se carácter custa caro
pago o preço.

Pago embora seja raro.
Mas homem não tem avesso
e o peso da pedra eu comparo
à força do arremesso.

Um rio, só se for claro.
Correr, sim, mas sem tropeço.
Mas se tropeçar não paro
- não paro nem mereço.

E que ninguém me dê amparo
nem me pergunte se padeço.
Não sou nem serei avaro
- se carácter custa caro
pago o preço.


Sidónio Muralha
(1920-1982)

Sidónio Muralha


AMANHÃ


Na hora que vem ao longe,
cresce e vem, cresce e vem,

- os que tiverem frio hão-de lançar os meus versos ao lume
e a chama há-de subir...
- os que tiverem fome hão-de lançar os meus versos à terra,
como se fossem estrume,
e a terra há-de florir...

Os meus poemas de tragédia são degraus
da hora que vem,
- cresce e vem... -
- cresce e vem... -
Nos meus poemas cresceu, e sofreu, e aprendeu
nos meus poemas revoltos,
por isso vem de longe, nua, nua,
e traz os cabelos soltos...

Hora que vens de longe,
de longe vens, de rua em rua;
- hás-de passar e hás-de parar por toda a parte,
nua, formosamente nua,

- para que já não possam desnudar-te.

Sidónio Muralha
(1920-1982)

Roteiro de Sidónio Muralha

Sidónio Muralha


OS PASSOS NA NOITE


Ouve, querida, na noite angustiada,
sem portas mas perfeita como um ovo,
como soa e ressoa a martelada
de cada passo do povo.

Ouve, na noite descarnada e enxuta,
o som que sobe, vertical e inteiro.
Ouve, querida, até às lágrimas, escuta
o oceano prisioneiro.

Noite implacável, arrepiada de vultos
como versos que mordem o papel
em que crianças, com gestos de adultos,
enchem de grãos de areia a nossa pele.

Noite aos quadrados, grades de gaiola,
cada quadrado fecha uma canção,
era aos quadrados no tempo da escola,
continua aos quadrados desde então.

Mas para lá dos barrancos, das ciladas,
para lá do engano e o desengano
cada pancada assobia madrugadas
cada pancada tem um som humano.

Compassados os passos, contra o vento,
escalam a noite descarnada e enxuta.
Viris, soam, ressoam no cimento,
ouve, querida, até às lágrimas, escuta.

Sidónio Muralha
(1920-1982)

Adolfo Casais Monteiro


TERRA MORTA

Um canto áspero, sem perfume,
Pela noite fora vem.
Vozes neutras e sem lume,
Nem amor têm.

Um canto álgido e soturno,
Canto de morte,
Vem como um vento contra as janelas,
Vento de noite de tempestade
Contra as janelas da nossa vida.

Como asas longas de morcegos
Lá fora a noite perpassa
Grande mãos frias sobre as coisas...

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)

Adolfo Casais Monteiro


PRECE


A máscara ri ou chora,
O ser olha, e impassível,
Deixa cair sobre tudo
Um olhar que diz:
Não importa.

Olhos de aflição
Querem fingir um sorriso,
Calar ao menos a mágoa
Não aflijam alguém...
O ser olha, e só murmura:
Não importa.

A quem, amigo, me abraça,
A quem, inimigo, me fere,
O ser distante contempla:
Não importa!

Senhor!
Dai ao meu ser interesse,
Por grandes, pequenas misérias,
Da minha vida real!
Dai-lhe o ódio, amor, piedade,
Crueza, ternura -- vida!
Não deixeis que eu assim viva,
Tendo em mim um indiferente
De tudo sempre distante!

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)

Carlos Drummond de Andrade


MUNDO GRANDE


Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.


Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

sábado, 29 de janeiro de 2011

Casimiro de Brito


A PAZ

Se eu te pedisse a paz, que me darias
pequeno insecto da memória de quem sou
ninho e alimento? Se eu te pedisse a paz,
a pedra do silêncio cobrindo-me de pó,
a voz rubra dos frutos, que me darias
respiração pausada de outro corpo
sob o meu corpo?

Perdoa-me ser tão só, e falar-te ainda
do meu exílio. Perdoa-me se não te peço
a paz. Apenas pergunto: Que me darias
em troca se ta pedisse? A sabedoria?
Um cavalo de olhos verdes? Um tronco de madeira
para nele gravar o teu nome junto ao meu?
Ou apenas uma faca de fogo, intranquila,
no centro do coração?

Nada te peço, nada. Visito, simplesmente,
o teu corpo de cinza. Falo-lhe de mim,
entrego-te o meu destino. E dele me liberto
só de perguntar-te: Que me darias se te pedisse
a paz
e soubesses de como a quero revestida
por uma crosta de sol em liberdade?

Casimiro de Brito

Mário Dionísio


PAÍS DE AZULEJOS PARTIDOS


País de azulejos partidos
de erva trepando entre paredes em ruína
País entregue à sua sina
sem olhos e sem ouvidos


País voraz ruminando o almoço
rindo ou chorando incapaz de sorrir
País de corpo aberto a quem está a seguir
País do rastejar entre a pele e o osso


Pulinhos para trás e para a frente
de polegar na cava do colete
foguetes procissões uns copos de palhete
país da pequenez de si mesma contente


País indiferente aos que dão por ele a vida
País herói se não há perigo em sê-lo
País de velhos do Restelo
dado à mão-baixa perto e consentida


País que tudo quer e nada quer tudo suporta
País do faz como vires fazer
País do quero lá saber
do quem vier depois que feche a porta


Mário Dionísio,"Terceira Idade",1982
(1916-1993)

Rui Knopfli


SE


Se, porventura,
a qualquer ponto do caminho
te surgir o instante de loucura
através do qual te possas libertar
num maravilhoso exercício de alegria
e exaltação

e tu resistas e renuncies

(é preciso, é preciso
aprender a não viver).

Se, casado
e rodeado de filhos,
souberes renunciar ao amor e à aventura
e manter a estabilidade
perante a solicitação de fugires
com a mulher do teu melhor amigo,
ou a extorquires com dor,
a puta ao chulo,
num tinir de copos e móveis partidos
pelo chão do cabaret.

Se, contabilista,
resistires à falsificação da escrita
à tentação da «caixa»;
se, empregado,
souberes oferecer ao patrão
o sorriso e a vénia modelares,
em vez do gesto indecente, descarado,
do gesto português

(é preciso, é preciso
aprender a não viver).

Se, perante o absinto,
o brandy, o gin com água tónica,
o uísque ou a mera aguardente de cana,
optares
pela moderação de um drink ocasional,
numa situação excepcional.

Se, à aventura e ao risco,
opuseres o sossego e a rotina,
se te souberes afeiçoar
à norma certinha, à teia
das relações familiares, sociais,
políticas e administrativas
num respeito deferente
para com a ordem estabelecida
e, ao próprio verso
- ainda uma ilusão de liberdade,
um exercício de íntima alegria
- responderes
com as formas prosaicas convenientes,

então, meu filho, serás um homem
geralmente respeitado e admirado
pelos teus concidadãos.

Entretanto, formulo um obscuro voto
para que, nalguma destas alternativas,
te percas, meu filho, sem remissão.

Rui Knopfli, Memória Consentida,
(1932-1997)

Eugénio de Andrade


SE PUDESSE

Se pudesse, coroava-te de rosas
neste dia -
de rosas brancas e de folhas verdes,
tão jovens como tu, minha alegria

Terra onde os versos vão abrindo,
meu coração, não tem rosas para dar,
olhos meus, onde as águas vão subindo,
cerrai-vos, deixai de chorar.


Eugénio de Andrade, in As Mãos e os Frutos
(1923-2005)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Gabriela Mistral (1889-1957)


RIQUEZA


ventura fiel
e a ventura perdida:
uma é qual uma rosa,
e a outra como um espinho.
De tudo o que me roubaram
nunca fui despossuída:
tenho a ventura fiel
e a ventura perdida,
e estou tão rica de púrpura
como de melancolia.
Ai, como é amada a rosa
e que amante é o espinho!
Como o duplo contorno
dos frutos que gémeos vivem,
tenho a ventura fiel
e a ventura perdida…


Gabriela Mistral, trad. José Bento in
Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2001

Sidónio Muralha


CANTO DA PRISIONEIRA GRÁVIDA


É toda cheia de tonturas esta mágoa.
Hoje, dentro de mim, ouvi o meu filho chorar,
não por fome de pão, nem por sede de água,
- Por fome e sede da «Sonata ao Luar».

Isto das grades é decerto um pesadelo...
Filho, meu filho, nós iremos passear
pelo campo florido... E hei-de soltar o cabelo,
hei-de soltá-lo na «Sonata ao Luar».

Aqui, julgam que ter um filho é chamar a parteira...
Mas o chão às vezes começa a dançar,
e eu tenho medo, e sinto náuseas e canseira,
e fome e sede da «Sonata ao Luar».

Pesa-me o corpo. Não quero ver as grades...
Quero passar as mãos por veludos macios,
suaves como lembranças de saudades...
Mas na prisão só há sombras, calafrios,
lábios mordidos porque não querem gritar...
Os minutos de calma são raros, tão raros...

Dêem-me... dêem-me a «Sonata ao Luar»,
para que o meu filho tenha os olhos claros.

Sidónio Muralha
(1920-1982)

Daniel Filipe


O QUE MENOS IMPORTA


O que menos importa é o fato surrado
afinal cada qual tem o seu próprio fado

Comer uma só vez por dia não tem importância
é até um bom preceito de elegância

Recear a prisão a pancada as torturas
ora quem os manda meter-se em aventuras

Não chegar o dinheiro para pagar o aluguer
nem para ir ao cinema nem para ter mulher

Disparates doutra forma o poder cai na rua
e lembrem-se senhores a revolução continua

Daniel Filipe
(1925-1964)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Alentejo em flor

Eugénio de Andrade


MUSICA MIRABILIS


Talvez a ternura
crepite no pulso,
talvez o vento
súbito se levante,
talvez a palavra
atinja o seu cume,
talvez um segredo
chegue ainda a tempo


- e desperte o lume.


Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Eugénio de Andrade


COMO SE A PEDRA


Escuto como se a pedra
cantasse. Como
se cantasse nas mãos do homem.
Um rumor de sangue ou ave
sobe no ar, canta com a pedra.
A pedra nas suas mãos
obscuras. Aquecida
com o seu calor de homem.
O seu ardor
de homem. Escuto
como se fora a minúscula
luz mortal que das entranhas
lhes subisse à garganta.
A sua mortalidade
de homem. Canta com a pedra.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

domingo, 23 de janeiro de 2011

Jaime Salazar Sampaio


SEJA ESTE MINUTO


seja este minuto
o minuto da paz

esta palavra a palavra amiga
e a mão sem versos
poise na tua fronte

seja este minuto
o minuto de silêncio que pediste

e a vida não deu não tinha

Jaime Salazar Sampaio
(1925-2010)

Armindo Rodrigues


PRANTO OPTIMISTA



Pois que de interrogar-se não descansa,
nem a quanto no mundo me rodeia,
na própria dor o sonho me põe esperança.

Pouco importa que a vida seja feia,
nalguma feia hora ocasional,
em que a razão, suspensa, se me enleia.

A interrogação é o essencial.
Resposta toda ela é passageira,
e como passageira apenas vale.

Assim, a noite espessa se aligeira
constantemente, embora nunca chegue
a alvorada última e primeira.

Porque é que a confusão então prossegue?
Como é que a confusão prossegue então,
se afirmação não há que se não negue?

Verdade é talvez só a negação,
motor e rumo máximo de tudo,
de tudo, ao mesmo tempo, fome e pão.

Nada espero do céu, visto que é mudo.
Do chão que piso é de o pisar que espero.
Aos mitos das suas vestes os desnudo.

Dos mais homens irmão me considero.
Irmão o considero o mais que existe.
Irmão o considero o que ouso ou quero.

Mas tal fraternidade em que consiste,
que significa, até onde me leva?
A consciência espreito, e fico triste.

À ciência me acolho e vejo treva,
para lá dos lampejos poderosos
dos subidos faróis a que se eleva.

Da arte os atractivos e os gozos
os meço agora como enganadores,
produto dos sentidos sequiosos.

Até da liberdade os desfavores
me doem menos, se medito nela,
se bem que teime em lhe tecer louvores.

Nem de outra ideia sei tão clara e bela.
Nem de outra norma sei tão exigente.
Nem de outra mágoa sei como não tê-la.

O meu caminho é o que tracei em frente.
E por ele prossigo, alheio aos perigos,
às fáceis seduções indiferente.

Guiam-me os passos, passos já antigos.
Chamam-me vozes de um destino novo.
Varro da mente crimes e castigos.

Ou é entre utopias que me movo?
Acaso se estará na pré-história
dos povos aspirando a um só povo.

Ou porventura seja o fim sem glória
que se avizinha, de uma humanidade
de que não reste nem sequer memória.

Já da explosão de crua impiedade
dos ódios desvairados da cobiça
se anuncia a geral esterilidade.

Já nem cabe chamar-se por justiça,
transformada a justiça em seu avesso,
desfeitos maus e bons na mesma liça.

Penso-o, e do orgulho à humildade desço.
O desespero acho-o vazio.
Tudo o antes precioso perde o preço.

Aceita, no entanto, o desafio,
meu forte coração inconformado.
Meu pensamento, aquece-me ao teu frio.

Só quem não tem esperança está errado.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)

José Afonso


CORO DOS CAÍDOS


Cantai bichos da treva e da aparência
Na absolvição por incontinência
Cantai cantai no pino do inferno
Em Janeiro ou em Maio é sempre cedo
Cantai cardumes da guerra e da agonia
Neste areal onde não nasce o dia

Cantai cantai melancolias serenas
Como trigo da moda nas verbenas
Canta cantai guisos doidos dos sinos
Os vossos salmos de embalar meninos
Cantai bichos da treva e da opulência
A vossa vil e vã magnificência

Cantai os vossos tronos e impérios
Sobre os degredos sobre os cemitérios
Cantai cantai ó torpes madrugadas
As clavas os clarins e as espadas
Cantai nos matadouros nas trincheiras
As armas os pendões e as bandeiras

Cantai cantai que o ódio já não cansa
Com palavras de amor e de bonança
Dançai ó Parcas vossa negra festa
Sobre a planície em redor que o ar empesta
Cantai ó corvos pela noite fora
Neste areal onde não nasce a aurora

José Afonso
(1929-1987)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Haja o que houver -Madredeus (Teresa Salgueiro)

Carlos Drummond de Andrade


FALAR É COMPLETAMENTE FÁCIL

Falar é completamente fácil,
quando se têm palavras em mente
que expressem sua opinião.

Difícil é expressar por gestos e atitudes
o que realmente queremos dizer,
o quanto queremos dizer,
antes que a pessoa se vá.


Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Carlos Drummond de Andrade


A PALAVRA

Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.
Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivêssemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Miriam Makeba - Mbube

EU NÃO VOTO CAVACO

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Menina dos Meus Olhos - José Mário Branco

Sidónio Muralha


OS OLHOS DAS CRIANÇAS


Atrás dos muros altos com garrafas partidas
bem atrás das grades de silêncio imposto
as crianças de olhos de espanto e de medo transidas
as crianças vendidas alugadas perseguidas
olham os poetas com lágrimas no rosto.

Olham os poetas as crianças das vielas
mas não pedem cançonetas mas não pedem baladas
o que elas pedem é que gritemos por elas
as crianças sem livros sem ternura sem janelas
as crianças dos versos que são como pedradas.

Sidónio Muralha
(1920-1982)

Miguel Torga


SÚPLICA


Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga
(1907-1995)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Miguel Torga


GOSTO DO MAR DESESPERADO


Gosto do mar desesperado
a bramir e a lutar
E gosto de um barco ainda mais ousado
Sobre esta rebeldia a navegar.

Miguel Torga
(1907-1995)

Joan Manuel Serrat canta Antonio Machado

Miguel Torga


À BELEZA

Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.

Miguel Torga
(1907-1995)

Jorge de Sena


SINAIS DE FOGO

Sinais de fogo, os homens se despedem.
exaustos e tranquilos, destas cinzas frias.
E o vento que essas cinzas nos dispersa
não é de nós, mas é quem reacende
outros sinais ardendo na distância
um breve instante, gestos e palavras.
ansiosas brasas que se apagam logo.



Jorge de Sena
(1919-1978)
in "Visão Perpétua"
Julho/Agosto 1967

Eugénio de Andrade


QUE MÚSICA ESCUTAS TÃO ATENTAMENTE



Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.



Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "Coração do dia"

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Rosa Albardeira / BAILE POPULAR

Joaquim Pessoa


OBRIGADO


Obrigado, excelências.
Obrigado por nos destruírem o sonho e a oportunidade
de vivermos felizes e em paz.
Obrigado
pelo exemplo que se esforçam em nos dar
de como é possível viver sem vergonha, sem respeito e sem
dignidade.
Obrigado por nos roubarem. Por não nos perguntarem nada.
Por não nos darem explicações.
Obrigado por se orgulharem de nos tirar
as coisas por que lutámos e às quais temos direito.
Obrigado por nos tirarem até o sono. E a tranquilidade. E a alegria.
Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.
Obrigado pela vossa mediocridade.
E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.
Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.
Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.
Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias
um dia menos interessante que o anterior.
Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.
Obrigado por nos darem em troca quase nada.
Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade.
Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade
e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.
E pelo vosso vergonhoso descaramento.
Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer,
o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.
Obrigado por serem o que são.
Obrigado por serem como são.
Para que não sejamos também assim.
E para que possamos reconhecer facilmente
quem temos de rejeitar.

Joaquim Pessoa

Manuel da Fonseca


RUAS DA CIDADE


Na noite calada e quieta como um grande segredo,
andando ao deus-dará nestas ruas desertas,
saio lá do fundo do meu sonho
e olho ao redor de mim.

Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:
o frio, e os altos prédios fechados,
e as ruas mortas como paisagem de cemitérios.

E a claridade fugidia dos candeeiros cansados,
como pálpebras que se vão fechar.
E o torpor saindo de todas as coisas
e pairando no ar, como um desmaio iminente...

Só eu ainda tenho passos para andar
e uma não sei que ternura
para todos que estão, para lá das paredes
adormecidos e descuidados
à morte que espreita escondida no mistério da noite...

Em que casa e andar estará dormindo
aquela de quem não sei o nome nem a vida,
mas descobri a cor dos cabelos e a melodia do corpo
quando nos cruzamos esta manhã?
Nesse momento,
ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra de gestos
das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam ou porque nos olhássemos de certa maneira que não saberei contar,
mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro — Hoje é um dia de glória!
Mas tão estranho me pareceu aquele milagre entre dois desconhecidos,
que nem voltei a cabeça para trás...

Agora este desânimo sem nome
de quem traiu um dia inteiro de vida
e teima ir pela noite dentro
á espera nem sabe de quê ...
De tantas horas iguais estou farto!

Mas ao fim e sempre a mesma esperança: “um dia virá..."
E eu que tenho a vida desarrumada
como se fosse um milionário bêbado,
ergo-me e saio para a rua deslumbrado
e ressuscitado, todos os dias, ao amanhecer.
E vai a coisa tão certa como uma religião,
quanto pressinto que me olham de todas as caras
como se espiassem um louco...
Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas?

E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado...
Ah, um dia, quando a morte chegar,
hei de erguer para ela os meus olhos molhados,
e hei de contar-lhe a indiferença do mundo
e a amargura dos altos sonhos desfeitos...
— assim como um menino fazendo queixas a sua mãe.

Manuel da Fonseca
(1911-1993)

sábado, 8 de janeiro de 2011

Rui Knopfli


NÃO FAÇO O QUE QUERO.


Não faço o que quero
faço o que posso.
E o que posso passa
pelo passo da dificuldade.

Palavras tenho poucas,
duras, despidas estacas,
complicando a minha escolha.

Ermas e perfiladas
ergo-as ao sol na vertical
e são monótonas e dão sombra.

Com elas levanto quatro nuas
paredes, um tecto em forma
de prece. Dificilmente
construo uma casa fácil

Fácil é fazer difícil,
difícil fazer o fácil.


Rui Knopfli (1932 - 1997)

António Ramos Rosa


UMA PALAVRA TE PROCURA


Uma palavra te procura
ao nível desta existência suave
dura
uma palavra não para ostentação mas para seguir na estrada
no seu ágil correr de fogo
para te abrir o dia
para te fazer mais pequeno do que o buraco
para te dar um breve crepitar
de um insecto
a fuga precipitada ou o vagaroso pêlo
o imperceptível movimento
da água na vereda
a existência ínfima
de qualquer animal
ou folha
uma partícula de poeira
ou sulco
um estalido
uma palavra como uma chama um pouco mais clara do que o dia
só levemente mais clara do que a tua mão
e escura ou parda como a estrada

António Ramos Rosa

Ruy Belo


EM CIMA DOS MEUS DIAS



Muita gente me tem falado a meu respeito
como quem me chamasse pelo nome e eu me voltasse
e nesse nome dito nessa boca fosse toda a minha vida
e eu morresse quando entre pinhais quem me chamara a fechasse

Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e decresço não reparo e anoitece
e já nem sei ao certo quantos dias meço
Regresso com o gado contra o sol rasante
Mas é de névoa ou fumo o algodão que cobre as casas
aonde regressamos atraídos pela luz que já nos campos se consome?

Os ciprestes os pássaros saúdam-me e eu passo
com um olho vazado transpareço o meu passado
e tudo esqueço e peço mesmo a Deus que esqueça quanto sou
além dessa medida simples onde me vasou
Sabermos nós que a face de algum mar ao pôr do sol pode mudar
e nenhum dia-a-dia consentir ao homem mais que a morna superfície
dos gestos por que troca a mais íntima morte que merece

Nada na minha poesia é meu
juro por Deus dizer toda a verdade
Ponho a mão na cabeça o dia é escuro e vago e eu respiro
Espero pela manhã como quem nasce
Ninguém sabe o meu nome porque
eu já perdi ao longe alguns dos olhos
e fui feliz em cafés de província onde me vi sentar

Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum

É de manhã caminho nem meus passos oiço
oitenta passos diz-se que darei
Vão-se fechando os dois alinhamentos das moradas
arredonda-se o largo, alguns problemas camarários
Duvido de mim próprio: quem serei?
O carro rega coisas tão profundas como esta
Meu Deus meu Deus, que mal eu fiz?
Eu estive em Dinard e vou talvez casar
Acordo e transistorizo os dois ouvidos numa música abundante

Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e minguo certas vezes anoitece
Sou coisa que se molha encolhe e envelhece
tudo me aquece e tudo me arrefece
Dois pés e duas mãos, algumas pás de terra
E sabem mesmo que o meu nome é Rá, por isso me conhecem
Sou a doença e sou onde me dói
sou sítio onde se nega que se morre
Tem graça haver quem fale a meu respeito.

Ruy Belo
(1933-1978)

Jimi Hendrix "FEEDOM"

Alexandre O'Neill


SONETO INGLÊS


Como o silêncio do punhal num peito,
O silêncio do sangue a converter
Em fio breve o coração desfeito
Que nas pedras acaba de morrer,

Vive em mim o teu nome, tão perfeito
Que mais ninguém o pode conhecer!
É a morte que vivo e não aceito;
É a vida que espero não perder.

Viver a vida e não viver a morte;
Procurar noutros olhos a medida,
Vencer o tempo, dominar a sorte,
Atraiçoar a morte com a vida!

Depois morrer de coração aberto
E no sangue o teu nome já liberto...

Alexandre O'Neill
(1924-1986)
in "No Reino da Dinamarca" (1958)

Cat Stevens "Peace Train"

Rainer Maria Rilke


PRESSENTIMENTO


Sou como uma bandeira rodeada de distâncias.
Pressinto os ventos vindouros e tenho de vivê-los,
enquanto as coisas em baixo ainda nem se tocam:
as portas ainda se fecham suaves e há silêncio nas chaminés;
as janelas não vibram ainda e o pó ainda é pesado.

Mas eu já conheço as tempestades e agito-me como o mar.
E estendo-me e afundo-me dentro de mim
e lanço-me à terra e estou completamente só
na tempestade imensa.

Rainer Maria Rilke (1875-1926)
"O Livro das Imagens"
(tradução: Maria João Costa Pereira)

Leonard Cohen "Anthem"

Bob Dylan "Blowin' in the Wind"

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Carlos Drummond de Andrade


MEMÓRIA


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Pablo Neruda


NÃO HÁ ESQUECIMENTO
(SONATA)

Se me perguntais onde estive,
devo dizer «Acontece».
Devo falar do chão que as pedras escurecem,
do rio que permanecendo se destrói:
não sei senão as coisas que os pássaros perdem,
o mar que ficou para trás ou minha irmã chorando.
Porquê tantas regiões, porquê um dia
se junta a outro dia? Porquê uma negra noite
se acumula na boca? Porquê mortos?
Se me perguntais de onde venho, tenho que conversar com coisas gastas,
com utensílios demasiado amargos,
com grandes animais muitas vezes já podres
e com meu angustiado coração.

Não são as lembranças que se atravessaram,
nem é a pomba amarelenta que no esquecimento dorme,
mas sim faces com lágrimas,
dedos na garganta, e o que se desmorona das folhas:
a escuridão de um dia decorrido,
de um dia alimentado com o nosso triste sangue.

Eis aqui violetas, andorinhas,
tudo o que nos agrada e aparece
nos doces cartões de visita de longa cauda
onde passeiam o tempo e a doçura.
Mas não penetremos para além desses dentes,
não mordamos as cascas que o silêncio acumula,
pois não sei que responder:
há tantos mortos,
e tantos molhes que o sol rubro partia,
e tantas cabeças que batem nos navios,
e tantas mãos que encerraram já beijos,
e tantas coisas que desejo esquecer.

Pablo Neruda
(1904-1973)
Tradução de José Bento.

Paco Ibañez "Romance del Desterrado"

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

António Ramos Rosa



A VITÓRIA ESSENCIAL


Foi sempre um único homem um pobre homem
que durante séculos e séculos
levantou esta mão que eu levanto agora
na solidão do mundo
em vão sempre e não em vão
em revolta absoluta de incontível humanidade
levanto esta mão que levanto agora
contra
a prepotência diabólica
que um dia será cinza da sua vergonha inominável
cinza sem futuro
absorvida pelo azul da realidade humana essencial.

António Ramos Rosa

domingo, 2 de janeiro de 2011

Manuel Vásquez Montalbán


SUA PELE VELHA BEM TRATADA


O carrasco envelheceu
passeia os netos
pelo parque
dá alpista às pombas
posa diante do flash de incenso
sua pele velha bem tratada
sorri com placidez de obra acabada
busca
o nada fugitivo dos remorsos
lembra-se bem
mente chega a esquecer
e até suas vítimas
desenlutam o ódio

apenas ás vezes o carrasco apodrece
nas águas venezianas do meu espelho quebrado.

Manuel Vásqiez Montalbán
(1939-2003)

Adolfo Casais Monteiro


PREGÃO DE REVOLTA


Escravos!
chegou o tempo de acabar
as canções de declínio!
Que se apaguem
os ecos das sujeições e dos receios
pois já os braços se erguem
sem medo das queimaduras!
Dor, aniquilamento, vozes de desânimo,
tudo isso,
mas nunca orar de mãos postas
ante as imagens grosseiras
da nossa própria cobardia!

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)

sábado, 1 de janeiro de 2011

Mário Quintana


EU ESCREVI UM POEMA TRISTE

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

Mario Quintana
(1906-1994)
in "A Cor do Invisível)

Fernando Pessoa


CHOVE. HÁ SILÊNCIO...

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Irene Lisboa


ESCREVER

Se eu pudesse havia de transformar as palavras
em clava.
Havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressonante, sem música.
Como um gesto, uma pancada brusca e sóbria.
Para quê todo este artifício da composição sintáctica e métrica?
Para quê o arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras, pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo.
Vejo, admiro, desejo?
Ou sim ou não.
E como isto continuando.

E gostava para as infinitamente delicadas coisas
do espírito...
Quais, mas quais?
Gostava, em oposição com a braveza do jogo da
pedrada, do tal ataque às coisas certas e negadas...
Gostava de escrever com um fio de água.
Um fio que nada traçasse.
Fino e sem cor, medroso.

Ó infinitamente delicadas coisas do espírito!
Amor que se não tem, se julga ter.
Desejo dispersivo.

Vagos sofrimentos.
Ideias sem contorno.
Apreços e gostos fugitivos.
Ai! o fio da água, o próprio fio da água sobre
vós passaria, transparentemente?
Ou vos seguiria humilde e tranquilo?

Irene Lisboa
(1892-1958)
(de Outono havias de vir, 1937)

Bertold Brecht


LOUVOR DO REVOLUCIONÁRIO


Quando a opressão aumenta
Muitos se desencorajam
Mas a coragem dele cresce.
Ele organiza a luta
Pelo tostão do salário, pela água do chá
E pelo poder no Estado.
Pergunta à propriedade:
Donde vens tu?
Pergunta às opiniões:
A quem aproveitais?

Onde quer que todos calem
Ali falará ele
E onde reina a opressão e se fala do Destino
Ele nomeará os nomes.

Onde se senta à mesa
Senta-se a insatisfação à mesa
A comida estraga-se
E reconhece-se que o quarto é acanhado.

Pra onde quer que o expulsem, para lá
Vai a revolta, e donde é escorraçado
Fica ainda lá o desassossego.

Bertold Brecht (10/02/1898- 14/08/1956). in 'Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas'
Tradução de Paulo Quintela