quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
domingo, 25 de dezembro de 2011
Daniel Filipe
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E DE NOVO A CIDADE...
E de novo a cidade ó ritmo esquecido
de estranhas convulsões cheiro de pecado visco
mãos esguias pedimos uma esmola negada
suave deslizar de carros inconcretos
E de novo a terrível sedução da manhã
o jeito da navalha no riso do playboy
a náusea pressentida o tem-de-ser agora
meu amor meu amor ver-nos-emos depois
E de novo a pastora na gravura da sala
o grito da ambulância o conto do vigário
o som da água corrente o choro da criança
tuas mãos distraídas preparando o almoço
E de novo a usura a promessa de emprego
a carta que não chega o anúncio interdito
o rosto seco e ardente frias salas de espera
vá passando por cá talvez tenha mais sorte
E de novo este pão não amassado de lágrimas
mas salgado de pranto mas comido com raiva
com desespero angústia tempero obrigatório
amargo condimento fel e raiz da esperança
Daniel Filipe
(1925-1964)
In "A Invenção do Amor e Outros Poemas"
Sidónio Muralha
sábado, 24 de dezembro de 2011
Jorge de Sena
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NATAL DE 1971.
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?
Jorge de Sena
(1919-1978)
Miguel Torga
domingo, 18 de dezembro de 2011
Thomas Jefferson
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«Acredito que as instituições bancárias são mais perigosas para as nossas liberdades do que o levantamento de exércitos. Se o povo Americano alguma vez permitir que bancos privados controlem a emissão da sua moeda, primeiro pela inflação, e depois pela deflação, os bancos e as empresas que crescerão à roda dos bancos despojarão o povo de toda a propriedade até os seus filhos acordarem sem abrigo no continente que os seus pais conquistaram.»
Thomas Jefferson, 1802
Fernando Pessoa
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NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO.
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
António Ramos Rosa
UM CAMINHO DE PALAVRAS
Sem dizer o fogo - vou para ele. Sem enunciar as pedras,
Sei que as piso – duramente, são pedras e não são ervas.
O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao
mesmo tempo que a vento. Tudo o que sei já lá está, mas não
estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho,
caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse
intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro
o meu caminho.
Mas entre mim e os meus passo há um intervalo também:
então invento os meus passos e o meu próprio caminho.
E com as palavras de vento e de pedras, invento o vento e
as pedras, caminho um caminho de palavras.
Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim
E porque a noite não tem limites
Alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe
Mas a noite existe
e a palavra sabe-o.
António Ramos Rosa
In "Sobre o Rosto da Terra"(1961)
Guerra Junqueiro
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FALAM OS HOSPITAIS:
Tossi, tossi, pulmões desfeitos,
Em vielas lôbregas sem ar!
Nos dormitórios faltam leitos...
Tossi, pulmões, nos largos peitos,
Tossi, que a Morte quer jantar!
Morrei de fome, no abandono,
Mendigos trôpegos, senis...
E invejai, não o rei no trono,
Mas os cães grandes que têm dono
E as feras más que têm covis!...
Loucos, d'olhar torvo d'assombros,
Brandindo em fúrias um bordão,
Farrapos trágicos nos ombros,
Por pinheirais, por entre escombros,
Uivai, uivai na escuridão!...
Lepras e cancros dissolventes,
Apodrecei nos tremedais...
Apodrecei, rangendo os dentes,
Medonhos monstros pestilentes,
Latrinas d'almas imortais!
E que essas almas, negra herança!
Se reproduzam com ardor
Em milhões d'almas de criança,
Rios de morte e de vingança,
Torrentes fúnebres de dor!
Rios de sangue miserando,
Maldito sangue de Caim,
Eternamente blasfemando,
E ao mar de vida derivando
Sempre! sem fim! sem fim! sem fim!...
Guerra Junqueiro
(1850-1923)
Guerra Junqueiro
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FALAM POCILGAS DE OPERÁRIOS:
Crianças rotas, sem abrigo...
A enxerga é pobre e a roupa é leve...
Quarto sem luz, mesa sem trigo...
Quem é que bate no meu postigo?
- A Neve!
A usura rouba a luz e o ar
E o negro pão que a gente come...
Inverno vil... Parou o tear...
Quem vez sentar-se no meu lar?
- A Fome!
Lume apagado e o berço em pranto
Na terra húmida, Senhor!
A mãe sem leite... o pai a um canto...
Quem vem além,torva de espanto?
- A Dor!
Álcool! Veneno que conforta,
Monstro satânico e sublime!...
Beber! beber.. e a mágoa é morta!...
Quem é que espreita à nossa porta?
- O Crime!
Doze anos já, e seminua!
A mãe, que é dela?... O pai no ofício...
Corpo em botão d'aurora e lua!...
Quem canta além naquela rua?
- O Vício!
A fome e o frio, a dor e a usura,
O vício e o crime... ignóbil sorte!
Ó vida negra! Ó vida dura!...
Deus! quem consola a Desventura?
- A Morte!
Guerra Junqueiro
(1850-1923)
Alexandre O'Neill
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PORTUGAL
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
*
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
Alexandre O'Neill
(1924-1986)
Poesias Completas
Alexandre O'Neill
Assírio & Alvim
Vieira da Silva
AMANHÃ SE TU QUISERES.
amanhã
se tu quiseres
vamos fazer desta terra
a nossa pátria sonhada
vamos
rasgar esta névoa
de esperança disfarçada
que não há nada a esperar
se nunca fizermos nada
vamos
quebrar o silêncio
com a força da coragem
e avançar contra o medo
que nos impede a viagem
vamos
antes que o futuro
não seja mais que a saudade
das cantigas que deixámos
pelas ruas da cidade
amanhã
se tu quiseres
vamos fazer um país
com a cor da liberdade
Vieira da Silva.
sábado, 10 de dezembro de 2011
Octavio Paz
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SILÊNCIO
Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.
Octavio Paz
(1914-1998)
In "Liberdade sob Palavra"
Tradução de Luis Pignatelli
domingo, 4 de dezembro de 2011
Fernando Pessoa / Alberto Caeiro
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O MEU OLHAR...
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
(1888-1935)
In "O Guardador de Rebanhos" (8-3-1914)
Federico García Lorca
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CHAGAS DE AMOR
Esta luz, este fogo que devora.
Esta paisagem gris que me rodeia.
Esta mágoa por uma só ideia.
Esta angústia de céu, de mundo e hora.
Este pranto de sangue que decora
Lira sem pulso já, lúbrica teia.
Este peso do mar que me golpeia.
Este lacrau que no meu peito mora.
São grinalda de amor, cama de ferido,
Onde, sem sono, sonho-te a presença
Entre as ruínas do peito meu sumido;
e embora eu busque o cume de prudência
dá-me teu coração vale estendido
com cicuta e paixão de amarga ciência
Federico García Lorca
(1898-1936)
In "Antologia Poética"
Trd. de José Bento.
Daniel Filipe
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
Carlos Drummond de Andrade
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FRAGA E SOMBRA
A sombra azul da tarde nos confrange.
Baixa, severa, a luz crepuscular.
Um sino toca, e não saber quem tange
é como se este som nascesse do ar.
Música breve, noite longa. O alfanje
que sono e sonho ceifa devagar
mal se desenha, fino, ante a falange
das nuvens esquecidas de passar.
Os dois apenas, entre céu e terra,
sentimos o espetáculo do mundo,
feito de mar ausente e abstrata serra.
E calcamos em nós, sob o profundo
instinto de existir, outra mais pura
vontade de anular a criatura.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
domingo, 27 de novembro de 2011
sábado, 26 de novembro de 2011
Juan Ramón Jiménez
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COMO, MORTE, TEMER-TE?
Como, morte, temer-te?
Não estás aqui comigo, a trabalhar?
Não te toco em meus olhos; não me dizes
que não sabes de nada, que és vazia,
inconsciente e pacífica? Não gozas,
comigo, tudo: glória, solidão,
amor, até tuas entranhas?
Não me estás a sustentar,
morte, de pé, a vida?
Não te levo e trago, cego,
como teu guia? Não repetes
com tua boca passiva
o que quero que digas? Não suportas,
escrava, a gentileza com que te obrigo?
Que verás, que dirás,aonde irás
sem mim? Não serei eu,
morte, tua morte, a quem tu, morte,
deves temer, mimar, amar?
Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Tradução de José Bento
quinta-feira, 24 de novembro de 2011
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
Álvaro de Campos
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SIM, ESTÁ TUDO CERTO:
Sim, está tudo certo.
Está tudo perfeitamente certo.
O pior é que está tudo errado.
Bem sei que esta casa é pintada de cinzento
Bem sei qual é o número desta casa -
Não sei, mas poderei saber, como está avaliada
Nessas oficinas de impostos que existem para isto -
Bem sei, bem sei...
Mas o pior é que há almas lá dentro
E a Tesouraria de Finanças não conseguiu livrar
A vizinha do lado de lhe morrer o filho.
A Repartição de não sei quê não pôde evitar
Que o marido da vizinha do andar mais acima lhe fugisse com a cunhada...
Mas, está claro, está tudo certo...
E, excepto estar errado, é assim mesmo: está certo...
Álvaro de Campos
(1888-1935)
domingo, 20 de novembro de 2011
Carlos Paredes - "Movimento Perpétuo"
"Aquilo que eu gostava, realmente, era que, se alguém ouvisse um disco meu, daqui a muitos anos, pensasse que eu tinha conseguido retratar, de algum modo, esse tempo" Carlos Paredes, 1983.
quarta-feira, 16 de novembro de 2011
Bertold Brecht
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QUEM NÃO SABE DE AJUDA
Como pode a voz que vem das casas
Ser a da justiça
Se os pátios estão desabrigados?
Como pode não ser um embusteiro aquele que
Ensina os famintos outras coisas
Que não a maneira de abolir a fome?
Quem não dá o pão ao faminto
Quer a violência
Quem na canoa não tem
Lugar para os que se afogam
Não tem compaixão.
Quem não sabe de ajuda
Que cale.
Bertold Brecht
(1898-1956)
terça-feira, 15 de novembro de 2011
Federico Garcia Lorca
José Blanc De Portugal
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SONETO MARTELADO
A tarde, e por de mais calma,
Afogou-me o que ficara da partida
Tudo que inventara, essa mentira querida
Que ficara fazendo as vezes da alma.
Passa e segue a triste gente calada
E o correio e a luz quebrada no muro
Trazem a tarde, recortando duro
O perfil triste e morno desta minha estrada.
E choca e vem de mim até ao céu polido
Liso e puro e sempre igual estendido
Sobre mim e a rua desolada,
Uma ilusão que nada tem de alada
E é feita de aço puro e diamantes:
Não querer tornar-me no que era dantes.
José Blanc De Portugal
(1914-2000)
In "Rosa Do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
segunda-feira, 14 de novembro de 2011
Francisco Brines
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QUANDO AINDA SOU A VIDA
Cerca-me a vida, como naqueles anos
já perdidos, com o mesmo esplendor
de um mundo eterno. A rosa esfaqueada
do mar, as luzes derrubadas
dos hortos, o fragor das pombas
no ar, a vida ao meu redor,
quando ainda sou a vida.
Com o mesmo esplendor, e olhos envelhecidos,
e um amor fatigado.
Qual será a esperança? Viver mais,
e amar, enquanto se esgota o coração.
um mundo fiel embora perecível.
Amar o sonho destruído da vida
e, embora não possa ser, não maldizer
aquele antigo engano do eterno.
E consola-se o peito, porque sabe
que o mundo pode ser uma bela verdade.
Francisco Brines (1932)
In " Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea)
Trad. de José Bento.
Francisco Brines
Juan Luis Panero
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ANTES QUE CHEGUE A NOITE
Antes que chegue a noite sobre o mar
e atire o vento da nortada
as minhas húmidas cinzas para o nada.
Antes que os gastos gestos se dissolvam,
tal como um sorriso que se transforma em esgar
ou os cansados espasmos de um amor extinto.
Antes, ainda, como este sol sobre as ilhas,
tenaz ponto de luz, cor intensa,
que as minhas palavras desenhem meu fantasma,
salvo e perdido, na pura intensidade da vida.
Juan Luis Panero (1942)
In "Poemas"
Trad. de Joaquim Manuel Magalhães.
domingo, 13 de novembro de 2011
sábado, 12 de novembro de 2011
Carlos Drummond de Andrade

ESPECULAÇÕES EM TORNO DA PALAVRA HOMEM.
Mas que coisa é homem,
que há sob o nome:
uma geografia?
um ser metafísico?
uma fábula sem
signo que a desmonte?
Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some?
Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome?
E não perde o nome
e o sal que ele come
nada lhe acrescenta
nem lhe subtrai
da doação do pai?
Como se faz um homem?
Apenas deitar,
copular, à espera
de que do abdômen
brote a flor do homem?
Como se fazer
a si mesmo, antes
de fazer o homem?
Fabricar o pai
e o pai e outro pai
e um pai mais remoto
que o primeiro homem?
Quanto vale o homem?
Menos, mais que o peso?
Hoje mais que ontem?
Vale menos, velho?
Vale menos morto?
Menos um que outro,
se o valor do homem
é medida de homem?
Como morre o homem,
como começa a?
Sua morte é fome
que a si mesma come?
Morre a cada passo?
Quando dorme, morre?
Quando morre, morre?
A morte do homem
consemelha a goma
que ele masca, ponche
que ele sorve, sono
que ele brinca, incerto
de estar perto, longe?
Morre, sonha o homem?
Por que morre o homem?
Campeia outra forma
de existir sem vida?
Fareja outra vida
não já repetida,
em doido horizonte?
Indaga outro homem?
Por que morte e homem
andam de mãos dadas
e são tão engraçadas
as horas do homem?
mas que coisa é homem?
Tem medo de morte,
mata-se, sem medo?
Ou medo é que o mata
com punhal de prata,
laço de gravata,
pulo sobre a ponte?
Por que vive o homem?
Quem o força a isso,
prisioneiro insonte?
Como vive o homem,
se é certo que vive?
Que oculta na fronte?
E por que não conta
seu todo segredo
mesmo em tom esconso?
Por que mente o homem?
mente mente mente
desesperadamente?
Por que não se cala,
se a mentira fala,
em tudo que sente?
Por que chora o homem?
Que choro compensa
o mal de ser homem?
Mas que dor é homem?
Homem como pode
descobrir que dói?
Há alma no homem?
E quem pôs na alma
algo que a destrói?
Como sabe o homem
o que é sua alma
e o que é alma anônima?
Para que serve o homem?
para estrumar flores,
para tecer contos?
Para servir o homem?
Para criar Deus?
Sabe Deus do homem?
E sabe o demônio?
Como quer o homem
ser destino, fonte?
Que milagre é o homem?
Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem?
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
In "Antologia Poética"
Carlos Drummond de Andrade

INSTANTE
Uma semente engravidava a tarde.
Era o dia nascendo, em vez da noite.
Perdia amor seu hálito covarde,
e a vida, corcel rubro, dava um coice,
mas tão delicioso, que a ferida
no peito transtornado, aceso em festa,
acordava, gravura enlouquecida,
sobre o tempo sem caule, uma promessa.
A manhã sempre-sempre, e dociastutos
eus caçadores a correr, e as presas
num feliz entregar-se, entre soluços.
E o que mais, vida eterna, me planejas ?
O que se desatou num só momento
não cabe no infinito, e é fuga e vento.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
In "Antologia Poética"
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
terça-feira, 8 de novembro de 2011
Albano Martins

SÃO ESTAS AS CORES.
Se alguém tens
de agradecer, agradece
primeiro a vida.Por isto,
quanto mais não seja: por teres
nascido de pé e de pé
resistires aos temporais
como as árvores
de raízes fundas.Como a elas,
só te arrancarão à força.Podem,
então, encher-te a boca
de terra os olhos olhos
de sal.São estas
as cores da vergonha.
Albano Martins
In "As Escarpas do Dia"
(Poesia 1950-2010)
Albano Martins
Bento de Jesus Caraça
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O HOMEM CULTO.
«O que é o homem culto?
É aquele que:
Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence;
Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano;
Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.»
Bento de Jesus Caraça(1901-1948), na conferência, «A cultura integral do indivíduo, problema central do nosso tempo», proferida em 25 de Maio de 1933, na inauguração da actividade da União Cultural «Mocidade Livre»
Albano Martins
sexta-feira, 4 de novembro de 2011
Mário Dionísio
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A SEIVA OCULTA
Quantas vezes estremeço
e quantas vezes nasço
Quantas vezes desfaleço
e quantas vezes renasço
Julgo-me o fim desisto e sofro tudo negro
caem-me os braços magros ao longo dos pensamentos
canto a morte e o mistério e os requintes eternos
Mas logo uma energia insuspeitada vem dos longes
de mim mesmo
e aquece humanamente o coração
à beira de parar
Julgam-te morto e afinal,
é apenas o passo atrás que dás
para avançar
Milhões de forças claras sempre alerta
milhões de vozes fortes sempre à espreita
milhões de risos brancos sempre à espera
sob a capa lodosa dos aspectos da hora enegrecida
Maior que os deuses e que a sombra dos deuses
maior que o medo dos deuses
Homem
o teu destino é modelar os montes e soprar as nuvens
mudar o curso dos rios e o coração dos homens
para a vida
Quantas vezes estremeces
e quantas vezes nasces
Quantas vezes desfaleces
e quantas vezes renasces
Mário Dionísio
(1916-1993)
in "As Solicitações e Emboscadas"
terça-feira, 1 de novembro de 2011
Manoel de Barros
Manoel de Barros
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Juan Ramón Jiménez
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A COR DA TUA ALMA
Enquanto eu te beijo, o seu rumor
nos dá a árvore, que se agita ao sol de ouro
que o sol lhe dá ao fugir, fugaz tesouro
da árvore que é a árvore de meu amor.
Não é fulgor, não é ardor, não é primor
o que me dá de ti o que te adoro,
com a luz que se afasta; é o ouro, o ouro,
é o ouro feito sombra: a tua cor.
A cor de tua alma; pois teus olhos
vão-se tornando nela, e à medida
que o sol troca por seus rubros seus ouros,
e tu te fazes pálida e fundida,
sai o ouro feito tu de teus dois olhos
que me são paz, fé, sol: a minha vida!
Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.
domingo, 23 de outubro de 2011
Armindo Rodrigues
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A VIDA É FEITA DE INSTANTES
A vida é feita de instantes
em constante oposição.
Nenhum é como foi dantes.
Foram-se uns, outros virão.
Em que é o homem igual,
a não ser em nunca o ser?
Quem sabe o que o mundo vale
mais tem de que se valer.
Uma esperança se quebranta?
Outra toma a dianteira.
O que mais na vida espanta
é a própria vida inteira.
Armindo Rodrigues
(1904-1993)
segunda-feira, 17 de outubro de 2011
José Gomes Ferreira
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CABARÉ-IV
Todos os punhais que fulgem nos gritos,
todas as fomes que doem no pão,
todo o suor que luz nas estrelas,
todas as cruzes no peso dos braços,
todos os crimes nas penas das pombas,
todas as lanças nos dedos de reza,
todas as feridas que cheiram nos cravos,
todas as sedes com asas nas nuvens,
toda a inveja na limpidez dos espelhos,
todos os soluços para ressuscitar os filhos mortos,
todos os desejos nos alçapões do Frio,
todos os assassinos que andaram ao colo das mães,
todos os olhos pegados nas jóias das montras,
todos os atestados de pobreza com lágrimas de carimbo,
todos os murmúrios do sol, no quarto ao lado, à hora da morte...
Tudo, tudo, tudo
se condensou de repente
numa nuvem negra de milhões de lágrimas
a humilharem-me de ternura
- eu que quero ser alheio, duro, indiferente...
... enquanto os Outros dançam, cantam, bebem,
vivem, amam, riem, suam
neste pobre planeta
magoado das pedras e dos homens
onde cresceu por acaso o meu coração no musgo
aberto para a consciência absurda
deste remorso sem sentido.
José Gomes Ferreira
(1900-1985)
Emily Dickinson
domingo, 16 de outubro de 2011
Jorge Luis Borges
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SÃO OS RIOS
Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
muda na água do espelho mutante,
no cristal que muda como o fogo.
Somos o vão rio prefixado,
rumo a seu mar. Pela sombra cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa.
Jorge Luis Borges
(1899-1986)
Vicente Huidobro
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MARINHEIRO
Aquele pássaro que voa pela primeira vez
afasta-se do ninho olhando para trás
Com o dedo nos lábios
Chamei-vos
Inventei jogos de água
na copa das árvores
Tornei-te a mais bela das mulheres
tão bela que enrubescias nas tardes
A lua afasta-se de nós
e lança uma coroa sobre o pólo
Fiz correr rios
que nunca existiram
De um grito ergui uma montanha
e em volta dançámos uma nova dança
Cortei todas as rosas
das nuvens do Este
E ensinei a cantar um pássaro de neve
Caminhemos sobre os meses desatados
Sou o velho marinheiro
que cose os horizontes cortados
Vicente Huidobro (1893-1948)
Tradução: José Bento
In "Rosa do Mundo 2001 poemas para o futuro"
Saúl Dias
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JÁ FOSTE RICO FORTE E SOBERANO
Já foste rico e forte e soberano,
Já deste leis a mundos e nações,
Heróico Portugal, que o gram Camões
Cantou, como o não pôde um ser humano!
Zombando do furor do mar insano,
Os teus nautas, em fracos galeões,
Descobriram longínquas regiões,
Perdidas na amplidão do vasto oceano.
Hoje vejo-te triste e abatido,
E quem sabe se choras, ou então,
Relembras com saudade o tempo ido?
Mas a queda fatal não temas, não.
Porque o teu povo, outrora tão temido,
Ainda tem ardor no coração.
Saúl Dias
(1902-1983)
In "Dispersos (Primeiros Poemas)"
Agostinho da Silva
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QUERIA QUE OS PORTUGUESES
Queria que os portugueses
tivessem senso de humor
e não vissem como génio
todo aquele que é doutor
sobretudo se é o próprio
que se afirma como tal
só porque sabendo ler
o que lê entende mal
todos os que são formados
deviam ter que fazer
exame de analfabeto
para provar que sem ler
teriam sido capazes
de constituir cultura
por tudo que a vida ensina
e mais do que livro dura
e tem certeza de sol
mesmo que a noite se instale
visto que ser-se o que se é
muito mais que saber vale
até para aproveitar-se
das dúvidas da razão
que a si própria se devia
olhar pura opinião
que hoje é uma manhã outra
e talvez depois terceira
sendo que o mundo sucede
sempre de nova maneira
alfabetizar cuidado
não me ponham tudo em culto
dos que não citar francês
consideram puro insulto
se a nação analfabeta
derrubou filosofia
e no jeito aristotélico
o que certo parecia
deixem-na ser o que seja
em todo o tempo futuro
talvez encontre sozinha
o mais além que procuro.
Agostinho da Silva
(1906-1994)
In "Poemas"
Juan Ramón Jiménez
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À SOLIDÃO
Solidão coroada de rosas, quem pudera
aprisionar teu corpo de sol e de harmonia;
estar dentro de ti toda esta primavera
de sangue, e folhas secas e de melancolia!
Que palpitasse, em sonho, teu coração sonoro
sobre o meu coração sequioso de ideais;
minha palavra fosse uma palavra de ouro
de teus inesgotáveis e puros mananciais!
Ai! Quem, iluminando a sombra alucinada
que de espinhos coroa minha pálida tristeza,
pudesse ser teu amor, oh deusa coroada
de rosas, solidão, — tu que és mãe da beleza!
Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.
Juan Ramón Jiménez
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ENCONTRO DE DUAS MÃOS
Encontro de duas mãos
que procuram estrelas,
nas entranhas da noite!
Com que imensa pressão
se sentem suas brancuras imortais!
Doces, ambas esquecem
sua busca sem sossego,
e encontram, um instante,
em seu cerrado círculo
o que buscavam sós.
Resignação de amor,
tão infinita como impossível!
Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.
sábado, 15 de outubro de 2011
António Lobo Antunes
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UM HOMEM COM GRIPE
Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisana e pão-de-ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.
António Lobo Antunes
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
Luis Cernuda
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UNS CORPOS SÃO COMO FLORES
Uns corpos são como flores,
Outros como punhais,
Outros como fitas de água;
Mas todos, cedo ou tarde,
Serão queimaduras que em outro corpo aumentem,
Convertendo pelo fogo uma pedra num homem.
Mas o homem agita-se em todas as direcções,
Sonha com liberdades, compete com o vento,
Até que um dia se apaga a queimadura,
Volta a ser pedra no caminho de ninguém.
Eu, que não sou pedra, mas caminho
Que cruzam ao passar os pés nus,
Morro de amor por todos eles;
Dou-lhes meu corpo para que o pisem,
Mesmo que lhes leve a uma ambição ou a uma nuvem,
Sem que nenhum compreenda
Que ambições ou nuvens
Não valem um amor que se entrega.
Luis Cernuda
(1902-1963)
Trad. De José Bento
In "Antologia Poética"
sábado, 8 de outubro de 2011
quarta-feira, 5 de outubro de 2011
Vítor Matos e Sá
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AUTOBIOGRAFIA
Estive convosco em muitas palavras.
Algumas levaram-me ainda mais perto.
Com outras fiquei apenas mais só.
De muitas não vi que rosto as guardava.
Por outras me dei a quem não pedia.
Onde foram mentira alguém me faltava.
Mas todas cumpri por quem me cumpria.
E passaram ardendo em novos combates,
cobriram silêncios, provaram mistérios,
fizeram amigos que nunca terei.
Por serem verdade me trazem aqui.
E quando as sonhais na vossa esperança,
Um irmão me procura por entre as cidades
com todos os rostos que perdi.
Vítor Matos e Sá
(1927-1975)
In "Esparsos"
Octavio Paz
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