segunda-feira, 21 de outubro de 2013

REGRESSO ETERNO


Altos silêncios da noite e os olhos perdidos,                             
Submersos na escuridão das árvores
Como na alma o rumor de um regato,
Insistente e melódico,
Serpeando entre pedras o fulgor de uma ideia,
Quase emoção;
E folhas que caem e distraem
O sentido interior
Na natureza calma e definida
Pela vivência de um corpo em cuja essência
A terra inteira vibra
E a noite de estrelas premedita.

A noite! Se fosse a noite...
Mas os meus passos soam e não param,
Mesmo parados pelo pensamento,
Pelo terror que não acaba e perverte os sentidos
À esquina do acaso;
Outros mundos se somem,
Outros no ar luzem reflectidos sem origem.
É por eles que os meus passos não param.
E é por eles que o mistério se incendeia.

Tudo é tangível, luminoso e vago
Na orla que se afasta e a ilha dobra
Em baías de precário sonho...
Tudo é possível porque a vida dura
E a noite se desfaz
Em altos silêncios puros.
Mas nada impede o renascer da imagem,
A infância perdida, reavida,
Nuns olhos vagabundos debruçados,
Junto a um regato que sem cessar murmura.




Ruy Cinatti
(1915-1986)

   In «O Livro do Nómada Meu Amigo» (Guimarães Editores, 1981
RETRATO.

Tens nos olhos a luz que me faltava.
Agora posso ver o que não via:
O rosto da alegria
No teu rosto.
Vinho ainda a sonhar
Na fervura do mosto,
Não sabes duvidar
Das ilusões.
És a vida que esperas...
Em ti, as estações
São todas primaveras.

Miguel Torga
(1907-1995)
POVO

É sempre a mesma história repetida.
É sempre o mesmo lodo, a mesma fome
É sempre a mesma vida mal vivida
De quem amassa o pão mas não o come.

É sempre a mesma angústia desgrenhada
De quem naufraga em terra olhando o oceano;
O rubro desespero, a mão crispada,
O sonho a desfolhar-se… e o desengano.

É sempre este horizonte de fuligem,
É sempre este arranhar em duro chão,
Com fúria até ao centro da vertigem
Em busca da raiz da salvação.

Aguinaldo Fonseca
In “Boletim Mensagem”, Ano III, nº 1, Janeiro de 1960

sábado, 5 de outubro de 2013

 EPÍGRAFE.
 
 
  Murmúrio de água na clepsidra gotejante, 
 Lentas gotas de som no relógio da torre, 
Fio de areia na ampulheta vigilante, 
Leve sombra azulando a pedra do quadrante, 
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre... 

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida, 
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça? 
Procuremos somente a Beleza, que a vida 
É um punhado infantil de areia ressequida, 
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...
 
 
Eugénio de Castro
(1869-1944) 
AS ÁRVORES ESTAVAM QUIETAS.

o céu era cinzento,
as colinas estranhamente
jaziam sem alento.

Os homens faziam algo,
pondo a terra de avessa,
como quem cava um tesouro,
mas calmos e sem pressa.

Tudo era decerto assim
no resto do planeta,
o mundo e a humana flora
têm uma liga secreta.

Isso andava eu a observar
com receio mas contente,
e os meus pés sempre a andar
por baixo, como boa gente.


Herman Gorter
(1864-1927)
Trad. de Fernando Venâncio.





 A DENSIDADE DO QUE NÃO É.


  A densidade do que não é,
a força do que não se tem,
amontoa a água da vida
e cria um rumor de fundo
para todos os gestos.

   Até o tecido preto da morte
 tem um pálido fio
onde a trama cede e se aligeira
porque lhe falta morte.

   E até o que nunca viveu
e nunca morrerá
ergue-se na greta de uma ausência
que lhe empresta seu corpo.

   A pedra do não ser,
a certeira condição negativa,
a pressão do nada,
é o último apoio que nos resta.

Roberto Juarroz
(1925-1995)
Trad. de José Bento.